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25 de maio de 2010
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06:00

O exemplo do Brasil na reforma das Nações Unidas

Por
Sul 21
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Clarissa Pont

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O acordo mediado há uma semana entre Brasil, Turquia e Irã teve mais um capítulo importante anunciado no início desta semana. A entrega da carta por parte do Irã à Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) mostra que o pacto começa a ser cumprido. O governo iraniano aguarda agora a reação oficial da AIEA. “Depois da carta, teremos as conversas com a Agência, o depósito do urânio na Turquia e o prazo para que o Irã receba o urânio enriquecido. Se isso acontecer, é o cumprimento da primeira parte do nosso acordo”, afirmou o presidente Lula em seu programa semanal Café com o Presidente.

Revestido de significados estratégicos, o acordo transformou-se em um dos episódios mais emblemáticos em que a diplomacia brasileira esteve envolvida nos últimos anos, e seu significado supera o tema em si. Para o professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Paulo Vizentini, o Brasil agora não se candidata apenas a uma posição permanente no Conselho de Segurança da ONU, mas dá as cartas para uma necessária reforma dentro das instâncias das Nações Unidas.

A avaliação positiva do secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon, acerca da interlocução brasileira, em entrevista à Agência Estado nesta segunda-feira (24), corrobora a análise do acadêmico. Segundo o secretário-geral, o ingresso da diplomacia brasileira no impasse nuclear iraniano representou uma importante medida de confiança que poderá abrir caminho para uma real solução negociada da questão nuclear iraniana.

Um grupo de trabalho das Nações Unidas já trabalha para a reforma do Conselho de Segurança. Existe acordo quanto ao fato de a composição do Conselho já não refletir fielmente a realidade econômica e política mundial. O grupo de trabalho estuda, entre outras questões, o aumento do número de membros permanentes e não-permanentes, a criação, dentro do Conselho, de postos rotativos ou partilhados, o direito de veto e as relações entre o Conselho, a Assembléia Geral e outros órgãos das Nações Unidas. O Brasil ocupa, durante o biênio de 2010-2011, um dos postos não-permanentes reservados à América Latina e ao Caribe.

Segundo Vizentini, que também é presidente do Centro de Estudos Internacionais sobre Governo, o Brasil apoia uma reforma baseada em três pilares. Primeiro, um reparo no Conselho de Segurança, com a inclusão dos países derrotados na Segunda Guerra Mundial e dos países emergentes do Terceiro Mundo, “embora não seja suficiente, porque é uma ilusão achar que isso mudaria a estrutura de poder no mundo”, ressalva o professor.

Segundo, uma maior representação da Assembléia Geral, na qual todos os países possuem cadeira. E terceiro, a definição do Conselho Econômico e Social como o cérebro da ONU, “para focar no espraiamento do desenvolvimento do planeta, e discutir questões essenciais como a ambiental. E questão ambiental não só como uma coisa ética, ‘eu gosto das florestas’, não se trata disso, mas sim que o modelo de consumo de mundo vai ter que ser alterado nas próximas décadas. E isso dentro do capitalismo como está desenhado hoje, não é realizável. Estou falando de uma grande mudança de paradigma. É nesse sentido que a reforma da ONU funciona”.

Lula: Brasil provoca ciúmes

Em diversas ocasiões, o presidente Lula deixa clara a vontade da ampliação do protagonismo diplomático brasileiro. Em abril deste ano, por exemplo, o presidente fez um balanço da política externa e rebateu críticas. “Eu disse uma dia ao Celso Amorim: você precisa tomar muito cuidado, porque o Brasil está começando a ficar importante. E quando um país fica importante, começa a gerar ciúmes e começa a arrumar inimigos”, disse o presidente, segundo a BBC Brasil, em discurso durante a formatura de novos diplomatas no Itamaraty. “Aqueles que não foram capazes de fazer o que você está fazendo vão começar a ser contra. Até porque durante muito tempo nós fomos induzidos a um complexo de vira-lata. O importante era não ser ninguém”, acrescentou Lula.

Como defende Vizentini, este período recente é sinônimo de um Brasil que defendia a leitura passiva da globalização, com um viés neoliberal. “O país desenvolveu uma política muito abaixo da sua capacidade. Por exemplo, aceitou uma série de imposições internacionais sem pedir nada em troca. Isso não existe, é como negociação coletiva de trabalho: tu pedes 100, para ganhar 80. Acho que a realização do Fórum Social Mundial também teve uma representatividade muito grande na mudança deste pensamento, trouxe discussão, rearticulou. O que o Brasil conseguiu com foi uma credencial para a primeira divisão”.

Imprensa internacional

As últimas declarações do presidente Lula e a atuação diplomática brasileira também geraram uma enxurrada de editoriais e matérias na imprensa internacional sobre o país. Na semana passada, o jornal britânico Financial Times publicou editorial sobre a política externa brasileira. O texto do diário liberal defendeu que o acordo, independentemente de seu resultado, prova que o Brasil tornou-se uma “ponte” entre o ocidente e “os emergentes”. A Turquia, do outro lado, serviu de elo entre os ocidentais e “o mundo islâmico”. Segundo definição do Financial Times, a diplomacia brasileira fez questão de exaltar sua condição de potência emergente “aliada ao Ocidente, mas com uma agenda semiautônoma”. O diagnóstico do jornal, no entanto, também afirma que o Brasil como ator global pleno pode gerar desconfortos ao redor do mundo.

Possuir influência não significa, no entanto, comprar brigas, segundo a visão de Vizentini. “Nós estamos nos chocando com os Estados Unidos. Com os Estados Unidos que querem uma guerra a qualquer preço, ou os que almejam resolver o problema no Oriente Médio? O Brasil simplesmente apóia o segundo. O governo Obama quer resolver esta questão, e isso mexe com interesses muito poderosos. Por outro lado, Obama não conseguiu nem controlar a máquina do estado. Na área da segurança e defesa, permanecem as mesmas pessoas do governo Bush. O Obama está ainda na defesa da agenda social, agora chegou na regulamentação dos bancos, ele só vai alcançar a área da segurança e da defesa se tiver um segundo mandato”.

Por isso, ainda é cedo para avaliar se a possibilidade de um conflito bélico na área está superada, ou não. “Quem achou que o Brasil não teria condições, se surpreendeu. Não se sabe se isso evitará uma guerra ou não, mas o Brasil se tornou sim um grande interlocutor mundial. E a reação que houve das forças mais belicistas do mundo foi violenta. Uma história muito parecida com aquela de 2003, no Iraque. Agora, se os Estados Unidos querem cometer mais um erro como já cometeu, depende deles”.

De qualquer forma, os argumentos de que Brasil e Turquia estariam sendo ingênuos em negociar com o Irã, parecem ter caído por terra.

Segundo entrevista para o jornal O Globo, concedida à jornalista Deborah Berlinck, Thierry Coville, do Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas (Iris) de Paris, diz que, ao rejeitarem o acordo assinado em Teerã, os Estados Unidos podem destruir o pouco de confiança restabelecida entre Irã e comunidade internacional. “É a primeira vez que países emergentes intervêm de forma tão explícita sobre um dossiê tão importante, tratado desde o início pelos países do Conselho de Segurança. A reação de Washington é surpreendente e arriscada. Tenho a impressão de que alguns países não querem solucionar a crise. É preciso reconhecer que a iniciativa brasileira e turca foi a melhor maneira de solucionar a crise. Eles não reinventaram: retomaram as bases do que havia sido negociado no final de setembro. O que há de ingênuo nisso?”, pergunta-se Coville.

Crítica vem de São Paulo

Vizentini, por sua vez, se diz preocupado justamente com esta confusão gerada diariamente por análises que afirmam que o Irã estaria passando a perna no Brasil e na Turquia (ver notícias relacionadas). “A confusão é gerada porque alguns defendem uma política externa pequena, uma visão de certa forma colonizada. Mas isso tem muito a ver com o período eleitoral, é um problema de política interna. E não é por nada que vem do âmbito paulista, e da maior parte de quem controla a grande mídia, o ataque constante. O Brasil vai lá e faz algo que deveria ser motivo de orgulho para todo cidadão brasileiro e a notícia se torna uma confusão, como se o país tomasse atitudes irresponsáveis. O engraçado é que a análise que vem de fora é ao contrario, querem saber por que o país assumiu uma postura tão altiva. Parece que o adversário esta dentro da trincheira, e não fora dela”.

Tomando esta análise como base, Vizentini grifa que uma possível reforma no Conselho de Segurança da ONU “não virá de um plano maravilhoso e tranqüilo, mas de uma correlação de forças. É assim que a política é”. De todo modo, segundo ele, “essa correlação de forças já esta nascendo com ascensão de pólos de poder em todas as partes do mundo. O Brasil na América do Sul, a África do Sul na África, a Índia no sul da Ásia, o retorno da Rússia, a posição da China, do Japão, da União Européia. Apenas uma área do mundo não possui uma potência aglutinadora: o Oriente Médio. E aí é possível entender o jogo tão pesado, já que o Irã é um país com credenciais para isso. Na mesma região, só Israel poderia assumir o mesmo papel, e Israel tem sim armas nucleares. É necessária uma grande cooperação na região para que os países tenham confiança e façam com que o dinheiro do petróleo não vá apenas para armas e sim para o desenvolvimento daquela massa de gente pobre que vive em uma região tão rica do mundo”, completa.

ONU Brasil: É necessário reformular o Conselho de Segurança da ONU?

Terra Magazine: Irã pode ter usado Brasil para ganhar tempo, diz pesquisador

Estadão: Uma moldura pesada demais. Para embaixador, Brasil deveria conter seu excesso de protagonismo em região tão complicada e em assunto tão turvo

Terra Magazine: Especialistas dizem que acordo fracassou e Brasil sofrerá conseqüências


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