Últimas Notícias>Internacional
|
29 de julho de 2015
|
14:17

Quando o silêncio é a melhor canção: os ativistas que lideram o boicote contra Israel

Por
Sul 21
[email protected]
Caetano e Gil estão em nova turnê conjunta | Foto: Reprodução/Instagram
Caetano e Gil estão em nova turnê conjunta | Foto: Reprodução/Instagram

Patrícia Dichtchekenian,
Opera Mundi

Nem sempre o silêncio é um sinal de resignação. Ser calado é um dos mais perversos tipos de opressão, mas calar-se pode ser um gesto político. Seja de luto, seja de resistência. Quem prova isso são cinco ativistas estrangeiros consultados por Opera Mundi que apoiam o boicote cultural contra Israel como uma resposta não violenta às políticas do governo israelense perante civis palestinos.

Nas últimas semanas, a turnê europeia dos músicos brasileiros Caetano Veloso e Gilberto Gil foi alvo dos holofotes nacionais e internacionais não só pela expectativa dos espetáculos que marcam 50 anos da carreira dos tropicalistas, mas pela polêmica escala em Tel Aviv, cidade israelense que recebe nesta terça-feira (28) o show da dupla brasileira.

A apresentação gerou desavenças entre Caetano e o ex-Pink Floyd Roger Waters, ativista de longa data da causa palestina, mas também mobilizou nomes como o Nobel da Paz sul-africano e líder antiapartheid, Desmond Tutu, e o ex-ministro de Direitos Humanos brasileiro Paulo Sérgio Pinheiro, que também fizeram coro pelo cancelamento ao show.

Em entrevistas a Opera Mundi, o palestino Omar Barghouti (Boycott, Divestments and Sanctions); o israelense Ofer Neiman (Boycott from Within); as norte-americanas de origem judaica Naomi Dann (Jewish Voice for Peace) e Anna Baltzer (US Campaign to End the Israeli Occupation); e o especialista britânico Ben White explicam por que Caetano e Gil deveriam ter optado pelo silêncio.

Barghouti e o líder sul-africano antiapartheid Desmond Tutu: amigos de longa data | Foto: Arquivo Pessoal/ Omar Barghouti
Barghouti e o líder sul-africano antiapartheid Desmond Tutu: amigos de longa data | Foto: Arquivo Pessoal/ Omar Barghouti

‘Se Desmond Tutu não os convence, eu não sei quem mais conseguiria’

Omar Barghouti, de 51 anos, é um dos mais conhecidos boicotadores contra Israel. Confundador da campanha global BDS (Boicote, Desinvestimentos e Sanções), ele pediu gentilmente que todas as suas declarações fossem mantidas no melhor contexto possível. Ativista palestino, ele é alvo de demonização do governo israelense desde 2005, quando o movimento foi formalmente fundado.

Segundo o palestino, há uma razão clara para boicotar Israel. Para ele, trata-se “do último regime mundial que combina ocupação, colonialismo e apartheid”. Portanto, governos, empresas e instituições que apoiam esses princípios do Estado israelense “são direta ou indiretamente responsáveis por seus crimes e violações do direito internacional”.

Inspirado no modelo de boicote ao apartheid sul-africano, a BDS parte de três princípios fundamentais: o fim da ocupação em territórios palestinos e árabes que ocorre desde a Guerra dos Seis Dias, em 1967; a extinção do sistema de discriminação racial contra cidadãos palestinos (que se encaixa na definição de apartheid estipulada pela ONU); bem como o direito ao retorno de refugiados palestinos (que representam dois terços da população) a seus lares de origem.

Sobre o show de Caetano e Gil, o ativista palestino esclarece que a BDS nunca pediu pelo boicote aos músicos brasileiros especificamente. “Não é assim que funciona. Nós pedimos para que esses dois brilhantes artistas não manchassem suas boas reputações com um concerto em Tel Aviv”, explica. “Nós exortamos por uma pressão moral para convencê-los a cancelar a apresentação, como fazemos com outros artistas que decidem intencionalmente cruzar nosso piquete e ignoram nossos direitos humanos”, completa.

O cofundador da BDS recorda ainda uma carta que o sul-africano Desmond Tutu enviou aos tropicalistas, em que o arcebispo destaca a importância do boicote cultural e do cancelamento do show, com frases de impacto, como “em situações de opressão, a neutralidade significa tomar o lado do opressor”.

“Se essas frases não os convencem, eu não sei o que poderia convencê-los”, suspirou Barghouti, que afirma que a BDS continuará a protestar pela decisão dos músicos brasileiros da maneira mais “civil, não violenta e respeitosa” possível.

‘A reputação deles está sendo testada agora’

Neiman relata experiência pessoal de ser israelense, mas contrário às políticas do governo | Foto: Arquivo Pessoa/ Ofer Neiman
Neiman relata experiência pessoal de ser israelense, mas contrário às políticas do governo | Foto: Arquivo Pessoa/ Ofer Neiman

Ofer Neiman tem 44 anos, nasceu em Jerusalém Ocidental e se considera um cidadão privilegiado. Ele é um dos quatro líderes do Boycott from Within (“Boicote de dentro”, em tradução livre), movimento formado por judeus israelenses que se inspira nos princípios e compartilha os mesmos objetivos da BDS de Barghouti.

“Eu tive um processo gradual. Via cada vez mais e mais a realidade em torno de mim e quando você mora em Jerusalém Ocidental, a realidade da ocupação em Jerusalém Oriental é muito próxima. Além disso, os restos dos vilarejos palestinos, que passam por uma limpeza étnica desde 1948 [data que marca a criação do Estado de Israel], não podem ser ignorados”, explica o israelense.

De acordo com Neiman, a música brasileira é muito popular no seu país e Caetano e Gil são vistos como artistas de renome internacional que têm um histórico pessoal de apoio aos direitos humanos. “Esperava-se que dessem exemplos. A reputação deles está sendo testada agora, com o mundo assistindo-os e com pessoas que esperam que eles não ajam como os músicos que tocaram no apartheid sul-africano em violação ao pedido de boicote”, argumenta.

“O fato mais triste é que a maioria dos israelenses, além do governo, não vai fazer nada para acabar com o apartheid aqui a menos que haja uma forte pressão internacional”, diz o ativista. “Ocasionalmente, eu recebo ameaças, mas ainda sou um cidadão israelense privilegiado, já que sou judeu, não palestino. Cidadãos israelenses deveriam usar seus privilégios para agir em solidariedade com palestinos”, acrescentou.

‘Boicote é um meio de alto nível para demonstrar que a opressão é inaceitável’

Ameaças e constrangimentos perante judeus que criticam as políticas do governo israelense contra palestinos atravessam o oceano e atingem também os norte-americanos de origem judaica. É o caso de Naomi Dann, que faz parte da Jewish Voice for Peace (Voz judaica pela paz), um grupo criado nos EUA que luta pela igualdade plena de palestinos em Israel.

Para Naomi, ameaças contra ativistas estão piores com governo israelense mais conservador | Foto: Arquivo Pessoal/ Naomi  Dann
Para Naomi, ameaças contra ativistas estão piores com governo israelense mais conservador | Foto: Arquivo Pessoal/ Naomi Dann

“Nos Estados Unidos, os judeus que apoiam os direitos de palestinos são chamados de ‘self-hating jews’ (‘judeus que odeiam a si mesmos’, em tradução livre)”, explica a norte-americana de 23 anos. “Além disso, o ativismo em solidariedade aos palestinos enfrenta uma significativa oposição, com a repressão acadêmica e os ataques ad hominem [argumentos retóricos falaciosos, pois não possuem embasamento lógico]”, acrescenta.

Segundo a militante, a Jewish Voice for Peace é uma organização inspirada na tradição judaica de trabalhar pela justiça e pela igualdade de todos os povos tanto em Israel, quanto na Palestina. E uma das ferramentas mais poderosas para isso, diz a jovem, é o boicote. “A campanha que pede que Caetano e Gil boicotem o show em Tel Aviv é importante, pois é um meio de alto nível para demonstrar que as políticas israelenses que oprimem palestinos são inaceitáveis e exigem mudanças”, explica.

Embora more nos EUA e não em Israel, Naomi Dann acredita que, em sua condição de judia norte-americana, ela tem uma dupla responsabilidade de falar sobre esse assunto. “Em nome dos judeus de todo o mundo, Israel está desenvolvendo políticas que estão em oposição aos nossos valores. Como norte-americana, meus impostos vão no sentido de permitir e de defender as políticas israelenses”, critica.

‘Espero que eles escutem esses pedidos e se posicionem no lado certo da história’

Assim como Naomi, Anna Baltzer, 36, é considerada muitas vezes uma “self-hating jew” em território norte-americano. Organizadora nacional da US Campaign to End the Israeli Occupation (Campanha dos EUA pelo fim da ocupação israelense), ela classifica as políticas do governo do conservador primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, como “crimes monstruosos perpetrados contra o povo palestino”.

Anna, em checkpoint de acesso à Faixa de Gaza em uma de suas viagens a territórios palestinos | Foto: Arquivo Pessoal/ Ana Baltzer
Anna, em checkpoint de acesso à Faixa de Gaza em uma de suas viagens a territórios palestinos | Foto: Arquivo Pessoal/ Ana Baltzer

“Estou ultrajada com o que Israel está fazendo em meu nome e com o que os EUA fazem com meus impostos. Eu sei que a segurança dos judeus nunca poderá vir de uma retirada dos direitos de outras pessoas e isso não honra a história da minha família”, diz Baltzer, neta de sobreviventes do Holocausto.

“Eu sei que não há nada de judaico em ocupações militares, colonização, encarceramento em massa, demolições de casas e assassinatos extrajudiciais… e não há nada de anti-judaico em falar contra essas coisas. Na verdade, é uma obrigação moral e um interesse de todas as pessoas que acreditam em liberdade, justiça e igualdade para todos”, acrescenta.

A campanha que Anna Baltzer lidera é uma coalizão de mais de 400 organizações norte-americanas que trabalham pelo fim do apoio dos EUA à militarização israelense.

“Se Veloso e Gil se posicionassem, eles enviariam uma mensagem de solidariedade e de paz para o povo palestino. Eles também enviaram uma mensagem política e de transformação educacional para seus fãs no mundo inteiro, incluindo Brasil e Estados Unidos. Eu espero que eles escutem esses pedidos e se posicionem no lado certo da história”, diz a norte-americana.

‘Como Caetano e Gilberto sabem muito bem, arte e política não são categorias separadas’

Para o ativista politico britânico Ben White, de 32 anos, a recusa de uma performance em Israel é parte central dos pedidos de boicote cultural dos palestinos. Nas palavras do especialista no conflito Israel-Palestina, a consequência imediata desse boicote é o isolamento de um país “que busca validação externa e celebra cada performance de um artista internacional como um símbolo de legitimidade” de seu poder.

Ben White é também jornalista freelancer e já escreveu para veículos como The Guardian e Al Jazeera | Foto: Arquivo Pessoal/ Ben White
Ben White é também jornalista freelancer e já escreveu para veículos como The Guardian e Al Jazeera | Foto: Arquivo Pessoal/ Ben White

Segundo White, o intuito do boicote é isolar também instituições culturais e acadêmicas que são “cúmplices de violações de direitos humanos e de discriminação”. Para o britânico, que é autor de livros como “Israeli Apartheid: A Beginner’s Guide” (“Apartheid em Israel: um guia para iniciantes”), trata-se de seguir a mesma direção que o sistema segregacionista sul-africano foi obrigado a tomar depois que a pressão do boicote forçou uma mudança no interior de seu injusto status quo.

Além disso, o ativista britânico, que morou durante dois anos no Brasil, expressou preocupação com o concerto dos tropicalistas em Tel Aviv. Na capital israelense, os dois músicos brasileiros chegaram a se reunir na segunda-feira (27/07) com um grupo de crianças judias e palestinas para dar apoio ao diálogo e à tolerância.

“Seria muito decepcionante se dois artistas com um histórico de se opor à injustiça optassem por ignorar o pedido de boicote do oprimido. Como Caetano e Gilberto sabem muito bem, arte e política não são categorias separadas”, diz White. “Ir a Israel e apenas criticar as suas políticas nunca terá o mesmo impacto de um respeito ao pedido de boicote. Às vezes, o silêncio é a música mais poderosa”.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora