Geral
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28 de março de 2021
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11:42

Fome atinge aldeias indígenas no RS em meio a denúncias de falta de socorro dos governos

Por
Luciano Velleda
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 Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21

No mês em que a pandemia completa um ano, combinada com o agravamento da crise sanitária no País, suas consequências econômicas e sociais também atingem um momento dramático. Nesse cenário em que diferentes camadas da sociedade são afetadas, os grupos tradicionalmente mais vulneráveis enfrentam as piores condições para suportar a crise, como é o caso dos povos indígenas no Rio Grande do Sul. Nas aldeias guaranis e kaingangs do Estado, a fome tem sido uma companhia indesejada. A impossibilidade de obter recurso por meio da venda do artesanato, o fim do auxílio emergencial e a assistência deficitária da Fundação Nacional do Índio (Funai) criaram o quadro de extrema dificuldade pelo qual passam os indígenas no RS.

“Para nós, bateu a miséria e a fome na casa dos indígenas. Tá muito feia a situação”, afirma Delclides de Paula, coordenador kaingang no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI). A liderança kaingang diz que tem havido um “jogo de empurra” entre os governos federal, estadual e municipais, com a responsabilidade em socorrer os povos indígenas sendo transferida de um ente para outro. Com a falta de ajuda e a barriga vazia, o temor agora é de que os indígenas não aguentem a situação e comecem a sair das aldeias pra tentar vender artesanato nas cidades, se expondo ao coronavírus.

O coordenador kaingang diz que a vacinação tem ocorrido bem entre os indígenas adultos, o medo é maior com o que pode acontecer com os jovens e crianças. Sem ter com quem ficar nas aldeias, os pais vão levá-los junto às cidades. “Estamos na beira do abismo. Minha preocupação é que vai começar a morrer criança desnutrida ou que pegue covid nas cidades. O índio se contenta com pouco, o mínimo pra ele já tá bom. Nossas comunidades ficam satisfeitas assim, não se queixam”, comenta Delclides de Paula. Se a simplicidade é tradição, passar fome não é opção.

A situação que aflige as aldeias kaingang afeta igualmente as aldeias guaranis — somadas, são pouco mais de 100 comunidades no Rio Grande do Sul. Entre os guaranis, ainda que algumas aldeias consigam um pouco mais de recursos, a situação dramática é generalizada. Claudio Acosta, coordenador guarani no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI), afirma que a comida não é suficiente e a assistência dos órgãos públicos é deficitária.

“Não tem apoio nenhum. A comunidade está passando muita necessidade, principalmente no interior, a dificuldade é muito grande. Quanto mais retirada a aldeia, mais difícil”, diz Acosta.    

Ele explica que houve mais apoio dos governos no começo da pandemia, porém a ajuda foi diminuindo com o tempo. Um pouco de arroz, feijão, açúcar, farinha de trigo e óleo de soja chega por meio da Funai, mas em pouca quantidade. A ajuda varia entre as prefeituras e, com a mudança nos governos municipais em 2021, algumas que antes davam apoio deixaram de auxiliar. Por parte do governo do Estado, a liderança guarani diz que nada tem sido feito.

Assim como acontece com os kaingangs, a perda da receita advinda da venda do artesanato igualmente afeta muito a renda dos guaranis. O trabalho eventual na colônia também foi prejudicado. A soma de todas as dificuldades criou o quadro atual entre os indígenas no RS. “Quem não tem o Bolsa Família passa ainda mais dificuldade, porque o Bolsa ajuda um pouco”, afirma Acosta.

O coordenador guarani no Conselho Estadual dos Povos Indígenas (CEPI) tem certeza do movimento desesperado dos indígenas em direção às cidades para tentar vender artesanato. “A vacina tá chegando, o adulto toma, mas a criança não e pra sair pra vender, a criança vai junto.”

Decisões do governo Bolsonaro prejudicam ainda mais a já difícil situação dos povos indígenas. Foto: Guilherme Santos/Sul21

O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul), Roberto Liebgott, explica que a atual situação de fome nas aldeias indígenas é consequência dos erros e omissões cometidos pelos governos ao longo da pandemia. Desde o começo da crise sanitária, a  impossibilidade do livre trânsito causou dificuldade de auto-sustentabilidade, colocando os indígenas em situação de vulnerabilidade alimentar, agravada pelo que ele define como falta de preocupação do Estado em suprir essa necessidade.

“As comunidades não viram alternativa de como enfrentar a pandemia já que não havia um plano de governo”, afirma Liebgott. Com o avanço da crise em 2020 e as constantes denúncias, ele explica que tanto o governo do Estado quanto a União, de forma paliativa, começaram a distribuir um pouco de alimento. Com o tempo, porém, a entrega se tornou escassa, piorando desde novembro do ano passado.

Liebgott explica que a responsabilidade principal é do governo federal e que o governo estadual agia de modo complementar. Ele diz que os alimentos distribuídos pelo governo estadual nas aldeias foi aquele que já seria disponibilizado às escolas. “Não houve um acréscimo, houve aquilo que já era para ter sido enviado em condições normais. É importante referir isso porque o Estado não fez nada que não faria se não houvesse pandemia.”

No plano federal, o coordenador do Cimi-RS explica que os servidores da Funai foram orientados a não entrar nas aldeias no período da pandemia, sob a justificativa de evitar risco de contágio dos indígenas. A determinação, avalia Liebgott, desencadeou um processo “perverso”. “Não acessar, não significa não prestar apoio”, afirma.

Outro problema foi o critério estipulado pelo governo de Jair Bolsonaro para ajudar as comunidades. As informações que os indígenas obtiveram com funcionários da Funai são de que o auxílio só deveria ser oferecido, quando fosse, em territórios demarcados. Para o coordenador do Cimi-Sul, essa decisão excluiu mais da metade da população indígena no RS. “As comunidades que mais receberam algum tipo de assistência, mesmo que precária, nesse período todo, foram em áreas demarcadas ou nas reservas indígenas criadas ainda no século passado, que são poucas”, explica, citando as reservas de Nonoai e Guarita.

Liebgott destaca que os guaranis têm menos terras demarcadas ou reservas no RS, situação que os prejudicou ainda mais. “Eles vivem em áreas ainda não caracterizadas como terras da União, são terras que os indígenas ainda lutam por elas, mas a regularização não se deu efetivamente porque os governos anteriores não concluíram o processo e o atual paralisou todos os procedimentos demarcatório. Desde que o Bolsonaro assumiu, não demarcou um centímetro de terra em lugar algum do País”, afirma.

O cálculo do Cimi é que em torno de 60% da população indígena ficou afastada dos benefícios assistenciais e de uma possível política indigenista que viesse a ser constituída. “Possível”, enfatiza Liebgott, porque a política efetivamente implementada ele define como “anti-política” ao seguir a linha da desconstitucionalização dos direitos e da desterritorialização dos povos e integração forçada à sociedade.

O coordenador do Cimi-Sul critica a cesta com poucos produtos entregue pela Funai, insuficientes para a alimentação das aldeias. “A Funai deixa de fornecer o essencial. Como é que você não vai fornecer leite? Para os guaranis, a farinha é fundamental. E a cesta ainda não fornece a proteína animal, nem legumes, verduras e frutas. Então eles estão abastecidos basicamente por carboidrato.”

A crise alimentar nas aldeias indígenas no Rio Grande do Sul tem sido discutida na Justiça desde o ano passado. Em março de 2020, no começo da pandemia, a Defensoria Pública da União (DPU) ingressou com ação civil pública na Justiça Federal de Porto Alegre, cobrando dos governos federal e estadual a execução de políticas assistenciais nas comunidades indígenas, especialmente nutricional.    

Decisão da 9º Vara Federal de Porto Alegre concedeu liminar obrigando os governos Bolsonaro e Eduardo Leite a fornecerem alimentos às comunidades. União e governo estadual ingressaram com recurso no Tribunal Regional da 4 Região (TRF-4) argumentando que estavam pondo em prática um programa de alimentação nas aldeias indígenas. O recurso foi aceito e, com isso, se suspendeu os efeitos da liminar anterior.

Em função das novas denúncias, a Justiça determinou a realização de audiência pública na próxima segunda-feira (29) para discutir o problema e ouvir as partes envolvidas. O coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi-Sul) espera que a Justiça Federal dê andamento ao processo, o que possibilitará cobrar ações efetivas dos governos para implementar um programa de atenção às populações indígenas em período de pandemia e pós-pandemia, independentemente dos indígenas estarem ou não em área demarcada.


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