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12 de fevereiro de 2021
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15:10

Duas décadas depois, trem privatizado é serviço caro e de má qualidade no Rio

Por
Sul 21
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Risco de acidentes cresceu nos últimos anos: na foto, colisão de dois trens na Zona Norte do Rio de Janeiro. (Foto: Tânia Regô/Agência Brasil)

Maurício Thuswohl

Rio de Janeiro – No escaldante calor da Zona Norte carioca, em plena tarde de fevereiro, centenas de passageiros decidem abandonar um trem que havia descarrilado na Estação de Ramos e, após forçarem as portas emperradas da composição, começam a caminhar por sobre os trilhos da SuperVia, concessionária que administra o transporte ferroviário do Rio de Janeiro. Nas horas seguintes, a falta de uma manutenção rápida e o alto risco de acidentes faz com que a empresa paralise outros trens e ramais, causando um efeito dominó que acaba afetando todo o transporte público urbano e provocando dezenas de quilômetros de engarrafamento em toda a cidade.

A cena ocorrida no dia 4 não foi inédita e retrata a realidade dos trens urbanos do Rio após 22 anos de o serviço ter sido entregue à iniciativa privada. O acúmulo de problemas e defeitos ocorridos nos últimos anos – e agravados nos meses de pandemia – mostra um sistema castigado e que não atende às necessidades básicas de conforto, segurança e pontualidade dos usuários. Isso, apesar de a passagem cobrada na Supervia ser a mais cara do país, com previsão de aumento para R$ 5,90 no início de março.

Paralelamente, a empresa Gumi, líder do consórcio que controla a malha ferroviária privatizada do Rio e braço da gigante japonesa Mitsui, iniciou o ano de 2021 repetindo os pedidos de ajuda para enfrentar uma perda que teria se acumulado em R$ 285 milhões no ano passado. Se o poder público estadual ou federal não viabilizar o necessário socorro financeiro, afirma a Gumi, a SuperVia está fadada a “ter dificuldade em operar” os trens e a “entrar em colapso” antes do fim do ano.

Segundo a empresa, as perdas foram agravadas pela pandemia de Covid-19, já que, com o isolamento social, a venda diária de passagens caiu de 600 mil para 200 mil bilhetes. Apesar da grande vulnerabilidade da população frente à doença, sobretudo dos trabalhadores que se aglomeram diariamente nos trens urbanos, a crise sanitária não provocou adaptações positivas no sistema. Ao contrário, a pandemia é usada pelos gestores privados da SuperVia como argumento para justificar a falta de qualidade de um serviço que foi concedido pelo poder público e é considerado essencial.

A Mitsui já manifestou interesse na proposta de privatização da Trensurb| Foto: Luiz Soares/Trensurb

O atual cenário de crise do sistema ferroviário privatizado do Rio de Janeiro é lembrado por usuários e trabalhadores neste momento em que se fala na privatização dos trens urbanos em outras cidades ou estados brasileiros. A própria Mitsui já manifestou seu interesse na proposta de privatização da Trensurb, empresa pública que opera os trens de Porto Alegre e está incluída no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) do governo federal. Mas, o modelo fluminense de privatização dos trens é alvo de inúmeras críticas.

“No início da privatização, achávamos que esta seria a solução ideal para o desastroso serviço então oferecido pela Companhia Fluminense de Trens Urbanos. Mas, com o passar do tempo, vimos que isso não aconteceu. Para se ter uma ideia, um passageiro que embarcava em um trem na estação de Japeri na década de 80 levava de 1h30 a 1h40 para chegar ao Centro do Rio. A mesma viagem hoje leva mais de duas horas. Outro exemplo é o término de funcionamento do ramal de Belford Roxo que, no domingo, para de funcionar por volta de 16 horas”, diz Fábio Paixão, coordenador do Movimento em Defesa dos Trens (MDT), entidade criada pelos usuários e que atua há duas décadas no estado.

Indagado sobre sua avaliação do serviço prestado pela SuperVia, Paixão é taxativo: “É a mesma de todos os usuários dos diversos ramais da Supervia. O serviço tem sido péssimo”, diz. Entre os “muitos problemas”, o coordenador do MDT cita aqueles que considera principais: “Primeiro, a velocidade reduzida, devido à falta de manutenção e investimentos em infraestrutura, tais como trilhos, dormentes, sistemas de sinalização, controle de tráfego e fios de captação de energia elétrica. Há também os problemas na frota de trens, como baixa qualidade de reforma, poucos trens novos e com pouca manutenção e muitas baixas de material rodante devido a descarrilamento ou abalroamento”.

Reajuste de 1.000%

Sejam ferroviários, metroviários ou condutores de VLT, os “trabalhadores sobre trilhos” do Rio estão em permanente e unificada mobilização. Neste sábado (13), um ato conta o aumento das passagens de trem organizado por diversas entidades será realizado no Calçadão de Madureira, ao lado da quadra do Império Serrano. Presidente do Sindicato dos Metroviários do Rio de Janeiro (Simerj-RJ) e um dos organizadores das manifestações, Elias José Alfredo é outro crítico da SuperVia privatizada: “Passado esse período de duas décadas do regime de concessão e privatização do sistema de transporte ferroviário, chegamos à conclusão que houve uma regressão na qualidade do serviço prestado”, diz.

“No passado nós tínhamos um transporte que girava 24 horas com um preço popular para os usuários do sistema. Era um transporte público, né? Já que o transporte também é dever do Estado. Agora, os trabalhadores que usam o modal da SuperVia diariamente nos deparamos com limitações como, por exemplo, o fato de antes das onze horas da noite se encerrar a circulação dos trens. Antes da pandemia, o último horário era 22h50 e depois reduziu mais ainda. Para quem depende de um transporte eficiente, como deveria ser o transporte sobre trilhos, é muito ruim que isso aconteça”, diz o sindicalista.

Com o custo de operação praticamente repassado aos usuários nas duas últimas décadas, “é dramática a situação dos trabalhadores que dependem da SuperVia para ir e vir de casa ao trabalho”, afirma Elias: “Um problema muito grave é a questão do custo das passagens. Se nós botarmos na ponta do lápis o que significa o custo de 1998, quando começou a concessão, para cá, temos mais de 1.000% de reajuste nas tarifas. Tem mais um reajuste programado para os próximos dias para R$ 5,90. É um absurdo”.

Fábio Paixão afirma que a maior preocupação dos usuários de trens no Rio, grupo composto em sua maioria por pessoas de baixa renda, é que lhes seja oferecido um serviço de qualidade: “O que falta é uma política voltada para esse setor. Veja bem: em uma área metropolitana com mais de cinco mil quilômetros quadrados e que tem 18 municípios só há 270 quilômetros de linhas”, exemplifica.

Na visão do MDT, os problemas devem começar a ser resolvidos pelo investimento na infraestrutura: “A melhoria da via permanente faria com que os trens alcançassem maiores velocidades, diminuindo os descarrilamentos e com isso, colocando menos trens em manutenção devido a esse tipo de acidente. É preciso melhorar também a rede aérea, fazendo com que não haja cortes de energia para as composições e diminuindo o número de intervenções que prejudicam o tráfego. A modernização no sistema de tráfego controlado e sinalização faz com que haja fluidez e diminuição de intervalos e aumento da capacidade de passageiros. Também o aumento da frota, melhorando a oferta de lugares com um maior rodízio entre as composições, o que melhoraria a manutenção preventiva e consequentemente diminuiria o número de trens avariados durante as viagens”, enumera Paixão.

Superlotação e atrasos são problemas recorrentes (Foto: Reprodução/TV Globo)

Descaso na pandemia

Uma característica da privatização dos trens no Rio, dizem os críticos, é a despreocupação com o usuário pobre. Esse sentimento ficou ainda maior durante a pandemia: “Nesses onze meses, a SuperVia reduziu a quantidade de trens, estabeleceu a suspensão dos trens paradores Deodoro-Central do Brasil e colocou o antigo trem direto Santa Cruz-Central do Brasil para ser parador. Isso aumentou sensivelmente tanto a lotação dos trens quanto a duração da viagem, e as consequências são as mais dramáticas durante a pandemia”, diz Elias Alfredo.

Segundo o sindicalista, dados oficiais recentes da Secretaria de Saúde revelam que a Zona Oeste, onde circulam esses trens, é a região da cidade do Rio de Janeiro que mais concentra pessoas contaminadas pelo coronavírus e também aquela que registra o maior número de casos fatais: “Campo Grande, Bangu e Realengo são os bairros da região com a maior quantidade de vítimas”, diz.

A indiferença da concessionária privada com o povo trabalhador beira a crueldade, segundo o relato de Elias: “Nós não temos mais aquele sistema de transporte que atendia os trabalhadores durante a semana nem tampouco nos finais de semana. O trabalhador não pode mais utilizar o trem para seu lazer. Logo após a concessão, no ramal de Belford Roxo foi eliminada a circulação de trens nas primeiras horas do dia de domingo. Algo que era muito comum para as famílias como, por exemplo, fazer um lazer na Quinta da Boa Vista (Zona Norte), não foi mais possível após a concessão. O lazer foi eliminado para todas as pessoas que utilizam essa linha auxiliar da SuperVia”.

Já o coordenador do MDT alerta que a privatização de algumas linhas nas últimas décadas caminhou de mãos dadas com o abandono e o sucateamento de outras, menos atraentes para o capital privado: “Alguns municípios mais afastados, como Itaguaí, Itaboraí e Petrópolis, já tiveram trens no passado, inclusive ainda com linhas abandonadas. Na década de 2000, foram abandonados quilômetros de trilhos entre os municípios de Itaboraí e Magé, nada foi feito para que essas linhas fossem utilizadas por trens urbanos. Em Itaguaí, uma cidade em ascensão industrial com o porto e a chegada da Marinha e seu estaleiro de submarinos, nada está sendo feito para viabilizar o deslocamento das pessoas através de trens”, enumera.

Atualmente, afirma Paixão, a maior reivindicação dos usuários é a duplicação do trecho que liga Jardim Gramacho à Saracuruna, na Baixada Fluminense: “Essa linha singela faz com que haja baldeações demais, troca de trens exagerada para os usuários que vêm de Saracuruna e das extensões de Vila Inhomirim e Guapimirim”. Ele conta que o MDT e outras entidades representativas de usuários de trens vêm discutindo o tema em várias audiências públicas na Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) e junto ao secretário estadual de Transportes: “Muitas entidades têm entrado com pedidos para a retomada de trechos que poderiam, hoje, dar uma melhor mobilidade ao tão sofrido povo da Baixada Fluminense que tanto pena na Via Dutra e seus engarrafamentos”.

Crise generalizada

Para os sindicalistas do setor sobre trilhos, a crise específica da SuperVia se insere em uma crise geral do sistema de transporte público no Rio de Janeiro que vem de décadas e foi agravada desde que os serviços forem concedidos à iniciativa privada: “Há a constatação da redução da qualidade no atendimento do transporte público no geral e na SuperVia não é diferente”, avalia Elias Alfredo.

“Tudo isso que a gente está experimentando é fruto do período de concessão. Caiu muito a qualidade do sistema de transporte ferroviário, mas também do metroviário. Se o metrô no passado, antes da concessão, era visto como o melhor serviço público do Rio de Janeiro, hoje é um dos piores. A tarifa de R$ 5 é uma das mais caras do país”, diz.

E não para por aí: “As barcas também têm uma tarifa absurda, hoje já na casa dos R$ 5,90. Se a gente fizer uma comparação com o período antes da concessão desses modais – trem, barca e metrô – o mais em conta era a barca que ligava a Praça XV no Rio ao Terminal Arariboia em Niterói. Custava R$ 0,15 em 1998, enquanto o trem custava R$ 0,25 e o metrô R$ 0,35. Hoje, a tarifa mais cara do transporte de massa é a barca”, diz o presidente do Simerj-RJ.

Elias ressalta que por trás das privatizações está um modelo econômico que não deu certo: “A crise é fruto de toda uma política dos governantes, na lógica neoliberal, que afirmava a necessidade de o Estado não intervir mais no serviço público. Mas, ao mesmo tempo, contraditoriamente, o Estado continua a ser o sujeito de onde se obtém o recurso para manter o funcionamento desses transportes, seja trem, metro, barca ou bonde”, diz.

Os exemplos são vários: “A expansão do sistema metroviário, por exemplo, foi toda garantida com recursos financeiros do Estado. A aquisição das composições novas chinesas pela SuperVia foi toda realizada com recursos do Estado. O mesmo aconteceu com a aquisição das novas barcas e novos bondes. A iniciativa privada só administra o lucro, esse é o resultado pós-concessão. Aí, o erário público também tem prejuízo. Parte da crise econômica vivida hoje pelo Rio de Janeiro é puxada pelo setor de transportes”.


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