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5 de novembro de 2020
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21:49

Advogadas sobre caso Mariana Ferrer: ‘O escandaloso é que isso acontece diariamente’

Por
Sul 21
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Após divulgação de vídeo do caso de Mariana Ferrer, ativistas realizaram ato em São Leopoldo | Foto: Douglas Garcia, agência Help!

Débora Fogliatto

Na última semana, as imagens divulgadas pelo Intercept do julgamento de André de Camargo Aranha causaram indignação por mostrarem a vítima de estupro, a influencer Mariana Ferrer, sendo humilhada pelo advogado de defesa do acusado. Mariana relata ter sido estuprada por Aranha há cerca de dois anos em uma festa, mas enquanto ele foi absolvido das acusações, ela teve fotos pessoais expostas e sua virgindade questionada durante uma audiência.

Na ocasião, o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho citou a situação financeira da vítima para acusá-la de tirar proveito econômico da “desgraça dos outros” e ainda mostrou fotos dela que classificou como “posições ginecológicas”, entre outras agressões. A vítima começou a chorar e implorou para ser tratada de forma digna, mas o advogado então prosseguiu dizendo que eram “lágrimas de crocodilo”.

A situação é chocante e o vídeo, assim como o texto do Intercept sobre o caso, viralizaram nas redes sociais. Porém, infelizmente, o caso não é exceção. “O que a gente percebe na nossa prática acompanhando mulheres em situação de violência e, principalmente, violência sexual, é que infelizmente essa é a regra. As mulheres são desacreditadas em todas as esferas, muitas vezes desde o atendimento de saúde, passando pela polícia civil, até chegar no processo criminal”, aponta a advogada Renata Jardim, coordenadora de programas da Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos.

O Sul21 conversou com quatro advogadas que relataram percepções semelhantes: as mulheres vítimas de violência são, muitas vezes, revitimizadas ao buscarem acolhimento e ao denunciarem o ocorrido. “O que é escandaloso é que isso acontece diariamente”, lamenta Gabriela Souza, advogada feminista e coordenadora jurídica do Me Too Brasil, sobre o ocorrido no caso de Mariana. “Infelizmente é comum, na verdade é quase uma regra. E isso se aplica não só a violências sexuais, mas também em processos de divórcios, de violência doméstica, de alienação parental, em processos de assédio. E isso precisa mudar. O mundo não tem mais espaço para esse pensamento”, completa ela.

Intercept divulgou vídeo em que vítima é humilhada na audiência | Reprodução/ Youtube/The Intercept Brasil

No ano passado, em Porto Alegre, o Tribunal de Justiça absolveu um motorista acusado de estuprar uma passageira e culpou a jovem por ter consumido álcool, argumentando que ela se “colocava em situação de risco”. Em 2014, uma vítima de estupro de 13 anos foi chamada de “mentirosa” e “criminosa” pelo promotor responsável pelo caso, após garantir o direito de aborto legal. Na situação, que ocorreu na cidade de Júlio de Castilhos, no interior do Estado, ele chegou a dizer que gostaria que a menina voltasse a ser estuprada e a tratou como culpada pela interrupção da gravidez, mesmo que o processo em questão fosse contra o pai dela, acusado de cometer a violência sexual contra a criança.

Outro caso emblemático para o movimento feminista, que voltou ao debate com as violências cometidas contra Mariana, foi o assassinato de Ângela Diniz, que ocorreu ainda nos anos 1970. Na época, não se discutia se o assassino, Doca Street, havia realmente cometido o crime. O julgamento dele se tornou, isso sim, um espaço para julgar a vítima. As argumentações utilizadas pelos advogados e largamente pela mídia da época culpavam Ângela pelo próprio assassinato e convenceram o júri de que Doca tinha o direito a assassiná-la. Após muita mobilização feminista, quando foi cunhado o lema “quem ama não mata”, o caso voltou a ser julgado alguns anos depois, quando ele foi então condenado a 15 anos de prisão.

Gabriela destaca as formas como essa mentalidade se perpetua ao longo do tempo, desde a época em que homens eram absolvidos ao matarem suas esposas por “legítima defesa da honra”, até hoje em dia. “Nós, mulheres, temos direitos há muito pouco tempo na história do mundo, o patriarcado nos manteve afastadas dos nossos direitos e tivemos que lutar para conquistá-los. E isso é ainda mais visível para a mulher negra. As leis e o sistema jurídico como um todo foram criados por homens brancos, para homens brancos, com o objetivo de mantê-los com o status de poder. A gente muda um pouco o discurso, mas quando mulheres buscam o exercício de seus direitos, questionam a quem pertencem os nossos corpos, sofrem as mesmas perseguições”, pontua.

Três décadas e diversos avanços legislativos depois do assassinato de Ângela Diniz – afinal, as mulheres já conquistaram a Lei Maria da Penha e a do feminicídio –, casos em que a vítima é considerada culpada pela violência que sofre continuam ocorrendo. “Principalmente em se tratando de delitos sexuais, é recorrente vermos o uso desse tipo de argumento para desqualificar a mulher como sendo uma vítima ‘digna’ da tutela estatal. O que se percebe é que o sistema de justiça criminal recria categorias de mulheres respeitáveis e que possam figurar adequadamente na posição vitimizada”, observa a advogada Domenique Goulart, mestranda em Ciências Criminais pela PUCRS e sócia da Themis.

Em Porto Alegre, ato pedindo justiça por Mariana e por vítimas de estupro ocorreu na frente do TJ | Foto: Divulgação

A naturalização da violência sexual contra as mulheres é parte de um contexto maior, a chamada cultura do estupro. O que acaba saindo fora dessa norma, então, são as mulheres que denunciam e se insurgem contra essas violências, explica Domenique. Para desqualificá-las ao fazerem isso é que “acabam sendo criados mecanismos morais de descrédito de quem figura na posição de vítima. Criam-se estratégias de julgamento da conduta sexual e moral daquela mulher, levando ela própria ao lugar de provocadora daquele delito, pois o ato de denunciá-lo é percebido como um ataque à ordem patriarcal”, complementa.

De forma semelhante, Ariane Leitão, advogada e coordenadora da Força-tarefa contra os Feminicídios no RS, afirma sobre o vídeo que viralizou: “o que vimos ali foi essa cultura do estupro materializada nos poderes brasileiros, nas instituições brasileiros. A palavra da vítima nunca conta”. Ao se comparar com outros crimes, Ariane menciona a forma como as vítimas de estupro são tratadas. “O estupro é o único crime em que a vítima precisa provar. Porque se tu chegar na polícia e disser que foi assaltado, a polícia vai acreditar. Mas o estupro não, as perguntas já vão ser ‘mas onde tu estava? Tu tem certeza?’, porque envolve um tabu absurdo do corpo das mulheres como um elemento público da sociedade”, coloca.

Em casos como o de Mariana, é o Estado, a partir do Ministério Público, o responsável pela acusação. Sendo assim, o órgão deve obter provas para o processo, enquanto a vítima cumpre um papel semelhante ao de uma testemunha. “O que acontece na prática é que a vítima precisa provar, o tempo inteiro, que ela passou por uma situação de violência, quando na verdade o Estado é que deveria ir atrás”, destaca Renata Jardim.

A violência institucional e o medo de denunciar

As advogadas apontam que são situações como essa que fazem com que as mulheres tenham medo ou receio de denunciar quando sofrem violências. “É a violência institucional que permite todas essas culturas que violentam os corpos das mulheres. Há mulheres que são assediadas ou violentadas dentro do trabalho que sequer vão denunciar, especialmente trabalhadoras mais vulneráveis, negras e pobres. O que nos preocupa é que situações como essa façam com que mulheres cada vez denunciem menos”, reflete Ariane.

Em casos de violência sexual, Renata aponta que grande parte das mulheres não chega a denunciar e até abre mão de procurar atendimento de saúde. “Isso é um grande problema. Tem casos de gravidez decorrente de estupro em que as mulheres nem conseguem garantir seu direito à interrupção prevista por lei. Então há um descrédito das mulheres em relação ao sistema de justiça, de uma forma geral, quando se fala em violência de gênero. Entende-se que o Estado não vai dar uma resposta da forma como ela precisa”, afirma.

Mesmo que a lei brasileira, assim como mecanismos internacionais, garanta os direitos da mulher, na prática isso nem sempre se cumpre. “Queremos garantir o acesso e que não haja reiteração de estereótipos de gênero e discriminatórios em relação às mulheres, isso é uma revitimização. A lei garante que todo o processo seja feito de forma que as condutas não sejam revitimizadoras, isso é um princípio de direitos humanos, e a gente vê como na prática ainda se precisa avançar”, complementa Renata.

Manifestantes denunciaram absurdos do caso em São Leopoldo | Foto: Douglas Garcia, agência Help!

As advogadas apontam que o Judiciário, assim como a sociedade brasileira, é em geral machista e opressor para as mulheres. Para Gabriela, pode-se dizer que é “um dos responsáveis pela perpetuação de inúmeras violências contra mulheres”. O caso da Mariana Ferrer é emblemático porque “nos faz perceber que há uma deficiência muito séria em relação a isso. Então, é preciso que se amplie urgentemente esse debate e se crie essa consciência em todo o Judiciário, no Ministério Público, Defensoria Pública, e na sociedade como um todo”.

Domenique também destaca a face preconceituosa do Judiciário, que define como “profundamente comprometido com mecanismos machistas, racistas e elitistas de manutenção dessa ordem” e defende que sejam realizadas capacitações para mudar essa realidade nas diversas esferas. “É imprescindível que haja uma qualificação permanente e aprofundada a respeito de promoção de equidade de gênero e de raça, porque o nosso imaginário social é formado por referências machistas e racistas. Então, para operadores de direito conseguirem abdicar desses preconceitos e integrar uma perspectiva de respeito é necessária a existência de capacitação e qualificação nesse sentido, seja através de ações do Conselho Nacional de Justiça, seja através de atuações de associações e entidades representativas de cada categoria”, resume.

Mobilização popular

O caso de Mariana Ferrer gerou repercussão imediata nas redes sociais e manifestações indignadas com a forma como a vítima foi tratada. Domenique vê o grande impacto e comoção gerados pelo caso como um sinal de que “nossa capacidade de indignação não está anestesiada”. Para Renata, o fato de o caso ter se tornado público em tempos de muito uso das redes sociais faz com que ele exemplifique bem o que as mulheres sofrem nos diversos espaços.

“As redes sociais têm uma potência nesse sentido, a gente consegue ver o que aconteceu, não é só ela dizendo que sofreu uma violência. Nesse sentido, gerou uma grande comoção e acho que é também uma exaustão do movimento de mulheres em geral. Vivemos uma situação de extremo machismo, com discursos de ódio, discursos anti-mulheres, isso está permeado na sociedade cada vez mais”, diz Renata.

Ao mesmo tempo em que houve grande revolta por parte da sociedade, o fato de, politicamente, o país estar vivendo um momento em que atitudes como essa não são condenadas pode ter colaborado para que ocorressem manifestações como a do jornalista Rodrigo Constantino, dizendo que se o mesmo ocorresse com a sua filha, iria culpá-la pelo estupro. “Hoje é possível publicamente fazer um discurso de ódio, tem um contexto de legitimação do discurso de ódio contra as mulheres. No caso desse jornalista, como que ele se legitima a falar sobre isso publicamente? O contexto diz muito também e legitima essas práticas. Quando um presidente da República tem discursos misóginos, isso fica mais legitimado, permitido”, complementa a coordenadora da Themis.

Cartazes na manifestação na venida Paulista contra a cultura do estupro, em 2016 | Foto: Agência Brasil

Ariane também aponta o governo Bolsonaro como um legitimador de práticas e discursos que culpabilizam as mulheres: “agora temos governantes que estimulam isso, então ele [o advogado do caso] já está autorizado a fazer isso tudo”, destaca. Para ela, seria preciso ter respostas mais duras por parte do Judiciário e do Ministério Público sobre o ocorrido. “Nos parece um grande conluio, e que esses homens e esse sistema representado por esses homens brancos confiam na impunidade. Porque pra fazer aquilo tem que confiar muito na impunidade. E eu acho que a repercussão está muito fraca do ponto de vista das instituições. A OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) vai dar só uma advertência para o advogado, esse senhor não deveria mais poder advogar”, opina.

Em diversas cidades, movimentos feministas realizaram manifestações após a divulgação do vídeo em que Mariana é humilhada na audiência. Em geral, elas pedem respeito às vítimas e, também, a condenação de Aranha. Em Porto Alegre, o ato ocorreu na última quarta-feira (4) em frente ao Tribunal de Justiça e, mesmo tendo sido apartidário, contou com a presença de diversas candidatas mulheres que concorrem nas eleições municipais. “Tivemos representações de todas as candidaturas femininas de Porto Alegre no ato, esse é um elemento importante para irmos trabalhando. Tomara que Porto Alegre consiga fortalecer a união das mulheres cada vez mais”, afirma Ariane, que foi uma das organizadoras do ato. Em São Leopoldo, a manifestação ocorreu em frente ao Judiciário e ao Ministério Público da cidade, de forma silenciosa e com cartazes.


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