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10 de julho de 2020
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22:28

Para professores de cursinhos populares, Enem em janeiro aprofunda desigualdade entre estudantes

Por
Luís Gomes
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Cursinho Popular Emancipa, de Porto Alegre, tinha 60 inscritos no início do ano letivo | Foto: Divulgação

Luís Eduardo Gomes

O Ministério da Educação anunciou nesta semana as novas datas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2020, que será realizado no início de 2021 em razão da pandemia do novo coronavírus. As provas impressas serão nos dias 17 e 21 de janeiro, enquanto a versão digital acontecerá nos dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro.

A medida, contudo, é vista por representantes de cursinhos populares como preocupante, uma vez que a grande maioria dos estados ainda não liberou o retorno das aulas presenciais. Além disso, destacam que a decisão desrespeita o resultado da consulta popular promovida pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), divulgado no início do mês. Com a participação de 1,1 milhão de estudantes inscritos no Enem, a enquete apontou que 49,7% preferiam que a prova fosse realizada no mês de maio, 35,3% no mês de janeiro e 15% ainda em dezembro de 2020.

“O adiamento do Enem não foi uma coisa muito positiva, porque não respeitou a própria consulta pública que eles estavam fazendo”, diz Eduardo Ogliari Boaria, professor de Linguagens no cursinho popular Esperança Popular Restinga e estudante de licenciatura em Letras na UFRGS. Segundo ele, a expectativa de professores e estudantes era de que o resultado da enquete fosse respeitado. “A gente está num contexto de uma pandemia que ainda não acabou. A gente ainda vive o isolamento social. Parece que o adiamento não levou muito em conta a realidade que estamos vivendo. Então, não foi muito sensato”, diz.

Márcio Fernandes, coordenador do cursinho popular Zumbi dos Palmares Pré-Vestibular, ministrado no Colégio de Aplicação da UFRGS, campus Agronomia, destaca que apenas 20% dos inscritos participaram da enquete, o que já sinalizava uma desvantagem para estudantes com dificuldades de acesso à internet, mas que ainda assim a maioria optou por um prazo maior de preparação. “Existem muitos alunos que não têm condições. Tem alunos que não estão tendo aula em EAD no Ensino Médio”, diz.

Estudantes e professores do Dandara dos Palmares se mobilizaram nas redes pelo adiamento do Enem | Foto: Reprodução

Vivian Cristine Saldanha Ayres, educadora popular no Dandara dos Palmares, ministrado no prédio do IFRS, no Centro de Porto Alegre, e no KiLomba, na Lomba do Pinheiro, avalia que a margem de adiamento não contempla as necessidade de tempo hábil de preparação de alunos que estão desde março sem aulas. “Esse adiamento por apenas um mês não contempla a nossa realidade, até porque, aqui no Rio Grande do Sul, por exemplo, e em outros estados que ainda estão com a linha de casos de covid em ascensão, a gente também não tem a perspectiva de retomada das aulas para tão logo. Em alguns estados do Brasil, isso já tem sido viável, já tem sido possível. Tem estados que vão voltar agora no mês de agosto, que já voltaram de alguma forma no mês de julho. Mas nós aqui não temos nem perspectiva de retomar as atividades de forma presencial. Então, agora os estudantes têm uma perspectiva de prova em janeiro, mas não tem perspectiva nenhuma de quando as suas aulas de ensino médio e de preparação para o vestibular vão voltar”, diz.

Condições inadequadas para a preparação

Rodrigo Nickel, professor e coordenador do Emancipa em Porto Alegre avalia que, como as aulas do Ensino Médio ainda estão suspensas, não há condição concreta para que os estudantes se preparem para a prova. “Se tu pensar que muitos ainda estão no Ensino Médio, que está com as aulas suspensas, fica difícil dizer que há uma preparação para o Enem. O que nós conseguimos em alguns trabalhos é manter algum nível de contato com estudo, com conhecimento, e aí acompanhando os desdobramentos para ver como a gente vai organizando isso na sequência”, diz.

No caso do Emancipa, que atua em diversos estados e cidades do Rio Grande do Sul, algumas unidades conseguiram implantar uma rotina de atividades e contato com os estudantes, enquanto outras sequer conseguiram manter esse contato. “Tudo passa por uma questão, que fica mais explícita ainda, que é a desigualdade social. A maioria esmagadora daqueles que estudam conosco, que é a juventude trabalhadora, periférica, da educação pública, infelizmente não tem acesso a tecnologia em condições de fazer qualquer atividade em EAD com mais qualidade. Se a gente pensar nas situações concretas, em casa, trabalho e tudo, a situação está bastante crítica”, afirma.

Ester Santana da Silva, 21 anos, concluiu o Ensino Médio em 2016 e se matriculou no Emancipa de Porto Alegre para tentar uma vaga no curso de Psicologia. Ela diz que tinha a expectativa de que o Enem fosse realizado em maio, o que seria mais democrático para os estudantes. “Foi uma afronta para esse projeto que a gente tinha conseguido, de adiar o Enem. No fim, acabou não adiando muito, então muitos estudantes não vão ter um rumo para estudar até lá, porque não sabem como vai estar a situação das escolas públicas”, diz.

No caso do Emancipa de Porto Alegre, ela conta que toda a segunda-feira uma turma de cerca de 60 alunos participa de uma reunião por vídeo e que, ao longo da semana, os professores distribuem conteúdos por grupos e por meio do Google Classroom, onde os alunos podem acessar conteúdos de cada disciplina. “Uma hora eu me pego estudando e não consigo mais prestar atenção, porque é difícil ter esperança em alguns momentos”, diz. “Está bem complicado de conseguir se concentrar, focar nos estudos, com todo esse problema”.

Eduardo Ogliari diz que muitos dos estudantes do Esperança Popular trabalham em áreas consideradas como essenciais e não pararam durante a pandemia, como supermercados. “Além disso, muitos dos nossos estudantes também são pais, são mães”, diz. Ele avalia que a realidade não tem favorecido a participação dos estudantes. “Eles têm uma carga horária, uma demanda em casa, que já é muito grande, e ainda assim pensar em uma preparação para o Enem, que até há pouco tava uma coisa do tipo ‘vai acontecer, não vai, não se sabe quando'”.

Esperança Popular Restinga tem alunos da UFRGS entre os professores | Foto: Arquivo Pessoal

Eduardo diz que os professores têm tentando oferecer alternativas para ao menos manter o contato com os alunos, seja por meio do envio de textos, vídeo-aulas, chamadas em vídeo, correção de exercícios por áudio, entre outras. “O que a gente tem procurado é consolidar o vínculo entre os estudantes e os professores, como algo muito mais efetivo para a gente conseguir caminhar junto até o Enem, até a prova do vestibular, porque esse modelo de aula em EAD não favorece muito essa criação de vínculos, parece que falta um certo contato. A gente tem procurado fazer algumas lives, fazer algumas atividades e outros modelos que favoreçam esse vínculo para que as aulas sigam acontecendo”.

Ele diz que, em média, o Esperança Popular Restinga tem pouco mais de 50 estudantes, mas que nem todo mundo consegue acompanhar as atividades. “Volta e meia um estudante avisa que não vai conseguir participar das aulas porque teve que cuidar do filha ou da filha de noite”, diz, destacando que já aconteceu de nenhum aluno aparecer para uma vídeo-aula.

O cursinho Zumbi dos Palmares também registrou um grande número de desistências neste ano. Em março, 80 estudantes haviam feito matrículas, mas apenas 33 seguem acompanhando as aulas virtuais de preparação para o Enem. “A gente conversa de segunda a sábado, porque a preparação para as provas a gente faz nas noites e sábado, pela tarde. Ainda receio que vai haver mais desistências. Tende a dar uma caída no segundo semestre”, diz Márcio Fernandes. “A gente vê a dificuldade do estudante acessar as aulas em EAD, em vista da infraestrutura da sua residência e também da nossa, dos professores. A gente não estava preparado para isso, ninguém estava, mas a gente ajuda como pode”.

Desigualdade mesmo entre cursinhos populares

Neste cenário de preparação precária, fica óbvio para todos os professores que os alunos da rede pública, que são aqueles que mais dependem das notas do Enem para o ingresso no ensino superior, seja por meio do Sisu ou do Pró-Uni, vão ficar em desvantagem ainda maior do que em outros anos em relação aos alunos da rede privada, que conseguem ao menos ter uma rotina de aulas e acesso a conteúdos online.

Contudo, Vivian Ayres diz que, mesmo o Dandara e o KiLomba sendo ambos cursinhos populares, já se verifica distinção de capacidade de acesso entre os alunos. No caso do Dandara, cujas aulas são na região central da cidade, ela percebe que os alunos têm acesso a equipamentos eletrônicos, smartphone ou celulares, com wi-fi ou 3G/4G de uso pessoal, o que permite a distribuição de conteúdos por meio de plataformas de reuniões virtuais e grupos nas redes sociais. Já no KiLomba, a maior parte dos alunos não têm um computador ou smartphone com acesso a internet de uso pessoal, dependendo de empréstimos e compartilhamento com outros membros da família.

“Na Lomba, a gente tentou implementar aulas por plataforma compartilhada em e-mail, não se fez a adaptação para vídeo-aulas ou para grupos de aulas virtuais pelo zoom ou pelo meet porque seria impossibilitar o aluno a ter obtenção de qualquer tipo de material didático. Então, eles estão tendo um tipo de ensino muito precário”, diz. “O ensino está muito diferenciado, a preparação está sendo não isonômica, mesmo dentro da rede pública, mesmo dentro da rede popular. Então, não há condições de preparação para uma prova como o Enem que seja igualitária, que dê as mesmas condições para a maior parte dos estudantes”, explica.


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