Educação
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23 de julho de 2020
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10:00

‘O professor está tendo que reinventar o ensino, e muitas vezes sem as melhores condições’

Por
Luciano Velleda
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A crise causada pelo coronavírus mudou radicalmente o curso do ano letivo de 2020, com possíveis consequências para os próximos anos. Foto: Luiza Castro/Sul21
A crise causada pelo coronavírus mudou radicalmente o curso do ano letivo de 2020, com possíveis consequências para os próximos anos. Foto: Luiza Castro/Sul21

As escolas públicas e privadas do Rio Grande do Sul estão sem aula presencial há quatro meses. A urgência da maior crise sanitária dos últimos 100 anos obrigou as instituições de ensino a fecharem as portas praticamente de um dia para o outro, em meados de março. A partir de então, alunos e professores dos diferentes níveis, desde os primeiros anos do ensino fundamental, médio e até o superior, foram obrigados a vivenciar uma realidade para a qual não estavam preparados: as aulas on-line. 

Escolas privadas se organizaram melhor e foram as primeiras a disponibilizar aulas de modo remoto, com o conteúdo oferecido aos estudantes por meio de sites ou aplicativos e “encontrando” o professor em ambiente virtual. O mesmo caminho a rede pública busca implementar, com algum atraso e dificuldades operacionais. Apesar dos esforços, as perdas no processo de aprendizagem são realidade no anormal ano letivo de 2020. Por outro lado, há aspectos positivos que poderão ser aproveitados no futuro.

“Estamos fazendo alguma coisa no improviso, lutando com as armas que se tem. Alguma perda teremos”, afirma Rosane Aragón, professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS). “Não estávamos preparados em nenhum dos níveis de ensino, talvez no superior um pouco mais porque se usa mais tecnologia. Acho que o impacto maior está sendo na educação infantil e no ensino básico.”

Pesquisadora em Aprendizagem em Ambientes Digitais, atuando principalmente com  educação à distância, formação de professores e informática na educação, Rosane usa a metáfora do caminhante que entra numa trilha sem os instrumentos necessários. “Não sabemos o quanto podemos confiar nesse tipo de trabalho”, avalia. “O professor está na linha de frente e tendo que reinventar o ensino, e muitas vezes sem as melhores condições.”

A professora da UFRGS destaca que o ensino remoto posto em prática de modo emergencial pelas escolas é completamente diferente do ensino à distância (EAD), comum no ensino superior. Nas faculdades, os cursos de EAD são planejados, com profissionais especializados e ambiente tecnológico estruturado, além de alunos conscientes das particularidades de tal modalidade educacional.

Rosane explica que o ensino remoto praticado agora busca usar a tecnologia para tentar reproduzir a atuação na sala de aula, lógica distinta da desenvolvida nos cursos EAD, formatados a partir de outros parâmetros. “O presencial funciona de uma forma diferente do que se faz na EAD, mas como os professores não têm o preparo específico, só conseguem imaginar a sua aula sendo transmitida”, afirma. 

A interação com os colegas, fator importante no processo de aprendizado e desenvolvimento do estudante, se tornou impraticável em 2020. Com alunos menores, a socialização é ainda mais importante, e tal aspecto não se consegue reproduzir na aula on-line, apesar do esforço feito pelos professores. “A criança aprende a se colocar no mundo, a se relacionar, são elementos que ela tem mais facilidade na aula presencial”, explica a pesquisadora.

Ainda que tenha um olhar crítico para o ensino remoto, Rosane Aragón pondera que a situação de completa anormalidade impõe alguns aprendizados, afinal, não há alternativa; não há como acabar com a pandemia num estalar de dedos e tampouco se pode voltar no tempo para treinar os professores a darem aula no ambiente virtual. “Vai ser um ano em que as crianças vão aprender alguma coisa. Vai ter alguma perda, mas também podemos ter ganhos em termos de reconhecimento do trabalho do professor. O professor precisa ser mais valorizado”, afirma.

A professora da Faculdade de Educação da UFRGS diz que há muitos anos se tenta introduzir a tecnologia no ambiente das escolas, porém, há resistências de professores e  por parte de governos e mantenedoras em mudar o modelo de ensino. Com o ensino remoto “imposto” pela pandemia do coronavírus de modo abrupto, Rosane acredita que agora, talvez, educadores e o corpo diretivo das escolas encarem a tecnologia de outra forma. 

“Eles estão vendo que não estavam preparados. Podemos aprender a trabalhar mais a formação do professor, a inserir mais a tecnologia, porque quem já conhecia está agora tendo mais facilidade. O melhor resultado é saber adaptar o que se faz para outros recursos, outras mídias”, explica a professora da UFRGS. “Para muitas coisas vamos aprender que não precisa da aula presencial, enquanto para outras o presencial é a melhor forma. Temos que distinguir e saber usar cada situação para compor uma educação melhor e uma vida melhor também.”

A suspensão das aulas presenciais afeta estudantes de todas as idades, ainda que não de modo igual. Isso porque alunos do ensino superior têm autonomia no estudo, enquanto adolescentes do ensino médio têm menos, mas ainda assim, conseguem estudar sozinhos. O problema maior são as crianças, principalmente dos anos inicias do ensino fundamental, entre o primeiro e o terceiro ano.

“O ensino remoto é muito difícil de ser usado com crianças, elas não têm autonomia, estão se alfabetizando e isso limita o estudo”, explica Renata Sperrhake, professora do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (FACED/UFRGS).

Renata enfatiza que o ambiente presencial e a interação com os professores é importante para crianças dos primeiros anos do ensino fundamental. Nas séries iniciais, a mediação da aprendizagem é um elemento vital no ambiente da sala de aula. “Essa mediação vai sendo ajustada para se adequar ao que cada aluno precisa. As intervenções (do professor) são ajustadas à fase do aluno, ao que ele precisa, pois sabemos que o contexto é heterogêneo. E nesse contexto de ensino remoto, isso fica difícil de ser feito.”

Especializada em alfabetização, a professora diz conhecer relatos de colegas que, além de pensarem a aula, ainda têm que orientar os pais das crianças a ajudarem no processo. “Ninguém tava preparado pra isso, os professores não foram treinados pra isso. Os recursos digitais necessitam de formação e, nessa situação, não houve planejamento. Os professores têm saberes da profissão que, agora, precisam ‘lançar mão’ para encontrar saídas.”

A professora não gosta de usar o termo “perda”. E explica: Renata diz que as aprendizagens esperadas em cada ano escolar são “convenções”. E com o atípico ano de 2020, essas convenções estão suspensas. “Vai precisar haver uma reorganização ao que se espera que as crianças aprendam”, afirma. Para que essa reorganização aconteça no futuro, professores e escolas precisarão de tempo e estratégia, de modo a criarem práticas escolares que deem conta do que não foi trabalhado em 2020.

A professora do Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS, acredita que a experiência vivida pela crise do coronavírus poderá ser inserida no processo de aprendizagem. Como exemplo, ela cita a abordagem sobre o cuidado com o outro e a vida em sociedade. Para Renata, trabalhar esses aspectos poderá ajudar as crianças a entenderem tudo o que tem acontecido. “Elas precisam pensar e ressignificar o que viveram, tanto no âmbito da família, como também na escola.”

O aprendizado obtido com o uso das aulas virtuais, avalia Renata, também poderá ter aproveitamento no futuro, ao ser inserido nos currículos e integrar as competências desenvolvidas pelas escolas. A professora da UFRGS imagina a realização de determinados trabalhos em pequenos grupos, com objetivos específicos. “Talvez esse ajuste mais personalizado seja algo que influencie a questão didática dos professores.”

O histórico ano letivo de 2020 tem pesado também para as crianças da educação infantil, de 0 a 5 anos de idade. Depois de meses com as escolas fechadas, há quem defenda, inclusive, que o retorno das aulas presenciais comece justamente pelas crianças dessa faixa etária, sob a justificativa de ajudar os pais a retomarem suas atividades no trabalho.

Para essas crianças, o ensino remoto tem ainda menos eficácia, pois o “olho no olho” e o contato com os professores e colegas é fundamental. “Os professores dos primeiros anos são a base fundante, os que ensinam a começar a pensar”, avalia Dulcimarta Lino, professora de educação infantil especializada em educação musical da Faculdade de Educação da UFRGS. “As primeiras vezes das crianças são marcas fundamentais.”

Dulcimara explica que, no ensino infantil, o “tempo livre” com os colegas e as brincadeiras no pátio são elementos da aprendizagem e do “aprender a pensar”. Com as aulas presenciais suspensas e as crianças confinadas em casa, ela acredita que parte desse ensinamento pode ser passado pelos pais ou responsáveis do aluno. 

“Acho que podemos aprender muito por estar em pandemia. Toda a aprendizagem do cotidiano da casa, a criança fazer o bolo com a vó, arrumar a cama, organizar suas coisas, os pais não são pedagogos, mas podem compartilhar a convivência. São coisas do cotidiano da casa que perdemos há muito tempo… então penso que as crianças podem ganhar”, afirma a professora.

Crítica do modelo de ensino focado na transmissão de conteúdo do professor para o aluno, Dulcimara enfatiza que as crianças, principalmente entre 0 e 5 anos, aprendem nas relações pessoais, que inclui pegar no colo e dar beijo. “Não quero competir com o conteúdo, estou preocupada com os processos. Nossa realidade é a pandemia no mundo, então há narrativas que podemos escolher, e podemos usar o ficcional para sonhar, para aprender a pensar. Aprender a pensar é fazer escolhas.”

Para a professora, a situação inédita tem possibilitado que os educadores estejam tendo mais tempo para debater e refletir sobre todas as questões pertinentes ao seu ofício. Dulcimara conta que há grupos de professores organizados em redes e coletivos, se dedicando à formação continuada, um tempo de estudo que, antes da paralisação das aulas presenciais, era difícil haver. “Nós, educadores, temos que entender que estamos ganhando em convivência”, explica a professora de música, na busca de encontrar brechas positivas em meio à histórica crise de 2020.


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