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29 de julho de 2020
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18:25

Educação vigiada: Em troca de parcerias ‘gratuitas’, governos entregam a grandes empresas dados da educação pública

Por
Luís Gomes
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Parcerias firmadas entre órgãos públicos e empresas privadas no setor educacional geram preocupação sobre a vigilância de dados | Arte: Carlitos Astrada/Sul21

Luís Eduardo Gomes

No dia 9 de julho, o governador Eduardo Leite (RS) realizou uma transmissão pelas redes sociais ao lado do apresentador Luciano Huck para anunciar uma parceria com a plataforma Resolve Sim, da qual o global é representante, que trará conteúdos preparatórios para o Exame Nacional do Ensino Médio a estudantes da rede estadual de ensino. Na ocasião, o governador afirmou que a “plataforma será gratuita, tanto para os alunos como para o Estado”.

 

Em junho, a Secretaria Estadual de Educação do Rio Grande do Sul (Seduc-RS) já havia firmado uma parceria com a Google para o uso da plataforma Classroom (ou Sala de Aula, em português) para que alunos e professores pudessem criar uma conta para ter acesso a ambientes de aulas virtuais e a um e-mail que daria acesso a internet “patrocinada” para docentes e discentes durante o período de enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Conforme anunciado, a ideia era usar a plataforma da Google para proporcionar a criação de mais de 37 mil turmas espelhadas e mais de 300 mil ambientes virtuais divididos por componentes curriculares.

A pergunta que fica é: essas parcerias são realmente gratuitas?

Doutor em Antropologia e professor do Mestrado em Divulgação Científica e Cultural e do Laboratório de Jornalismo da Unicamp, Rafael Evangelista pesquisa os modelos de negócios baseados no tratamento e comercialização de dados, o chamado capitalismo de vigilância.

“Eles têm o interesse nos dados porque eles fazem perfil de consumidor para depois vender para agências de propaganda que vão criar estímulos e campanhas direcionadas para vários desses públicos e tentar prever comportamento das pessoas, porque eles têm acesso instantâneo aos dados das pessoas assim que elas utilizam”, diz. “Essas fronteiras não são muito fáceis de delimitar. Eu posso não ter informações suas de compra, mas tenho informações sobre os seus hábitos de gosto e posso eventualmente produzir uma campanha direcionada a esses seus gostos e aí sim ter uma operação comercial. Ou então, eu posso fazer previsões de comportamento para preparar o comércio de uma mercadoria. Então, essas fronteiras são muito difíceis de estabelecer entre o que é comercial, o que não é”.

Contudo, salienta que, no caso da educação, o interesse das empresas não necessariamente é com a comercialização dos dados para fins de publicidade, algo que a Google afirma não fazer, mas sim em relação aos dados produzidos por quem acessa estas plataformas. Além disso, afirma que o setor educacional tem sido usado como “ponta de lança” para a expansão da base de clientes e o uso desses sistemas em outras áreas das vidas das pessoas. “Isto é, você não usar aquilo apenas em seu momento de lazer, mas na escola, profissionalmente, etc. Isso vai dando para eles um escopo bastante grande sobre a vida das pessoas, porque a missão é entrar o máximo possível na vida das pessoas, coletar o máximo possível de dados, para fazer essa prática de leitura de dados e utilizar esses dados para fazer campanhas publicitárias, tentativas de previsão e modificação de comportamento. Faz parte de um fenômeno mais geral que tem sido chamado de capitalismo de vigilância”, afirma.

Evangelista explica ainda que, junto com as grandes plataformas, há empresas menores que estão responsáveis por fazer uma espécie de “passagem” no local, isto é, um trabalho de intermediação junto a governos e vender também seus produtos, onde poderia entrar a plataforma promovida por Luciano Huck. “A gente não tem bem claro quais acordos existem entre eles. Tem toda essa imagem de modernidade, progresso, mas, na verdade, estão vendendo uma tecnologia empacotada, feita em outro lugar, com outros propósitos, com outra visão do que é educação”, afirma.

Leonardo Ribeiro da Cruz, professor de Sociologia da Universidade Federal do Pará (UFPA) e pesquisador da Rede Latino Americana de estudos sobre Vigilância, Tecnologia e Sociedade (Lavists), tem se dedicado a estudar o avanço das parcerias entre plataformas educacionais privadas e a rede pública de ensino e avalia que o interesse das empresas está nos dados produzidos de forma automática pelos usuários que aderem a estas plataformas. Isto é, quanto tempo ele ficou em tal página, por qual aparelho acessou a plataforma, quanto tempo levou para fazer uma tarefa, etc. “Esses dados, dependendo da quantidade de uso dessas plataformas, podem apontar tendências educacionais. ‘Quanto tempo os alunos de quinta série de todo o estado demoraram para fazer uma lição de história e de matemática?’ Todos esses dados agregados podem se transformar em várias curvas de tendência de aprendizado, que são dados preciosos para construção de políticas púbicas, para construção de conteúdos educacionais e são ao menos esses dados que elas conseguem coletar e produzir valor em cima”, diz.

Neste sentido, apesar de existir um valor mercadológico nos dados pessoais e nos chamados dados sensíveis — como orientação sexual, histórico de doenças na família, etc. –, o maior valor provavelmente está nestes dados produzidos a partir do uso das plataformas, chamados de metadados. Cruz ressalta ainda que, quanto mais alunos acessam uma plataforma, mais dados são gerados e mais valorosos eles se tornam, o que faz ser rentável para uma empresa como a Google expandir os seus produtos para o maior número de pessoas possível de forma “gratuita”. “A ideia é que, quanto mais gente está produzindo sociabilidade dentro desses espaços, sejam relações educacionais, sejam relações de compra, mais lucrativos se tornam esses negócios”.

Clarice Dal Médico, vice-diretora da Escola Estadual Cândido José de Godói, localizada na zona norte de Porto Alegre, afirma que, desde o início da pandemia, a direção da escola tem se preocupado com a proteção dos dados dos estudantes e professores nas plataformas digitais. “No momento em que a gente posta uma coisa numa plataforma que outras pessoas têm acesso, a gente não tem certeza do que vai ser feito com o que está postado”, diz.

Em razão disso, optou por adotar um plataforma diferente da Google Sala de Aula, acessada por meio do e-mail, por onde também é feito o contato com os alunos. Em maio, também enviou um documento à Seduc perguntando sobre quais eram as salvaguardas para a proteção de dados dos alunos, dos professores e das aulas postadas na plataforma da empresa norte-americana. “O governo não nos respondeu até hoje”.

Para acessar a Google Sala de Aula, um aluno da rede estadual de ensino precisa criar um e-mail educacional @educar.rs, que exige informações como o nome completo, endereço da escola, nome dos pais, entre outros. Em seguida, precisa acessar o Gmail, serviço de e-mails da Google, para ativar a conta. Ao acessar a plataforma, terá acesso a informações como horários, quais são os professores de cada disciplina, entre outras. “O governo não tem uma plataforma, ele está jogando a vida de todo mundo dentro da Google sem ter menção alguma que isso vai ser protegido”, diz Clarice. “Uma coisa que tem que ficar claro é que as escolas não são contra a tecnologia, a gente até queria que tivesse mais, que todos os nossos alunos tivessem. O que a gente exige do governo é que tenha uma proteção”, complementa.

Uma preocupação dela é o fato de que, como as direções podem ser responsabilizadas pelo que acontece na escola, isso também se estenda aos ambientes digitais e a eventuais desvios na utilização desses dados. “A gente, ciente de que quem é responsável pelos nossos alunos e professores somos nós, da equipe diretiva, não podemos ficar tirando dados dos alunos para uma plataforma que a gente não sabe quem é”.

Expansão de parcerias em todo o Brasil

A formalização de parcerias “gratuitas” com empresas de tecnologia faz parte de um processo que já vinha ocorrendo mesmo antes da pandemia do coronavírus em vários níveis da educação pública. Em janeiro deste ano, a Universidade Federal do Pará (UFPA) anunciou uma parceria com a Google para disponibilizar a plataforma G Suite para os alunos, o que permite acesso à Google Sala de Aula, mas também a outras ferramentas da empresa. A adesão à plataforma significou que os alunos deixariam de receber seus e-mails e acessarem às redes da universidade por meio de uma plataforma própria da instituição e passariam a receber pela Google.

Na ocasião, o diretor do Centro de Tecnologia da Informação e Comunicação (CTIC) da UFPA, Marco Aurélio Capela, afirmou: “Para você manter um serviço de e-mail com qualidade para toda comunidade acadêmica precisa de investimento alto e constante, é um custo de pessoas capacitadas para trabalhar, mas também de investimento em equipamentos, computadores, rede, armazenamento. E é um custo constante. O G Suite oferece isso gratuitamente, então esperamos que todos façam a adesão”.

A UFPA ainda destacou em janeiro que este mesmo tipo de parceria há havia sido formada com mais de 40 universidades brasileiras. Questionada sobre o assunto pela reportagem, a Google Brasil informou que não abre os dados do número de parcerias firmadas, mas disse que a Google for Education “está presente na maioria dos estados brasileiros”.

Uma pesquisa realizada pela iniciativa Educação Vigiada, que reúne acadêmicos de diversas partes do Brasil, aponta que 70% das universidades públicas e secretarias estaduais de educação do País já firmaram parcerias com empresas que têm como modelo de negócio a extração de dados pessoais via inteligência artificial, sendo 67,61% desses acordos com as companhias representadas pelo acrônimo Gafam (Google, Apple, Facebook, Amazon e Microsoft). Segundo a pesquisa, intitulada Capitalismo de Vigilância e a Educação Pública do Brasil, grande parte dos acordos com instituições públicas de ensino refere-se à transferência dos serviços de e-mail para as empresas privadas.

O levantamento indica que 17 secretarias estaduais de educação têm ao menos algum tipo de acordo com estas empresas, bem como 29 institutos federais, 37 universidades federais e 36 universidades estaduais. Somente a Google tem acordos com 11 secretarias, 28 institutos federais, 34 universidades federais e 30 estaduais.

“É uma área da educação pública que está sendo delegada para empresas privadas e a maioria desses contratos são, entre aspas, gratuitos. Na verdade, estamos pagando com dados. A gente sabe que o modelo de negócio é baseado na extração de dados e metadados”, diz a professora Priscila Gonsales, diretora do Instituto Educadigital e que justamente pesquisa como universidades públicas e secretarias estaduais de educação estão transferindo transferindo dados educacionais para servidores de instituições privadas.

Um dos pontos de sua pesquisa são os termos de uso aos quais os usuários têm que aderir ao acessarem as plataformas pela primeira vez. “A gente sabe que os termos de uso não são lidos, que as secretarias ignoram a questão e os usuários têm que aceitar termos que são das empresas privadas, embora a lei geral de dados peça que seja uma gestão compartilhada”, diz.

Ela também avalia que há um desconhecimento por parte dos gestores sobre como funciona o modelo de negócios baseado na comercialização de dados. “Se não tem custo para a gestão pública, é bom. Só que esse custo está embutido, é um custo invisível”, afirma. “Não tem como ser grátis, é um serviço. É o modelo de negócio dessas empresas, elas estão prestando um serviço. Se elas estão dando ‘grátis’ para uma determinada rede pública, seja de ensino superior ou básico, alguma coisa elas estão ganhando em relação a isso, desde o uso de dados para comercialização, pode ser fidelização de usuários, entendimento de rastreamento para fazer outros tipos de tecnologia, são pontos que não ficam claros”.

Leonardo Cruz avalia que, mesmo que tivesse interesse, um governo sequer teria capacidade de controlar a geração de metadados. “É muito difícil, quando a gente está pensando em regulação, porque parte do negócio é ocultar o mercado que elas produzem. Então, a gente tem muito pouca informação. Mesmo se você ler os termos de uso, é muito difícil você encontrar um negócio ali. Por exemplo, elas podem falar que capturam dados de utilização para a melhoria do serviço. Agora, o que é a melhoria do serviço? Ela pode usar esses dados para produzir conteúdos educacionais, por exemplo”.

Nesse sentido, ao firmarem parcerias com o governo do Estado, a Google e a Resolve Sim passam a ter acesso, por exemplo, a todos os hábitos e rotinas digitais de professores e estudantes para a produção e realização de atividades educacionais, o que acaba se tornando uma grande vantagem competitiva em relação a outras empresas que não têm acesso ao mesmos dados. E conquistada às custas do bem público. “Ao você entrar em uma universidade que tem parceria com a Google, você compulsoriamente tem que entrar no modelo de negócio da Google. Não tem outra opção. É uma perversão entre o que é público e o privado muito forte”, afirma Cruz.

Pesquisa aponta que ao menos 17 secretarias estaduais de educação já firmaram parcerias com empresas privadas | Foto: Luiza Castro/Sul21

TCEs de olho nos dados

No dia 6 de julho, o Comitê Técnico da Educação do Instituto Rui Barbosa (CTE-IRB), instituição de assessoria criada pelos Tribunais de Contas do Brasil, divulgou uma nota técnica em que traz uma série de questionamentos a respeito das medidas adotadas pelos gestores públicos para garantir a proteção de dados dos estudantes, familiares e professores quando da utilização de plataformas digitais de educação. Assinada por Cezar Miola, conselheiro do Tribunal de Contas do Rio Grande do Sul (TCE-RS), a nota serve como recomendação para os órgãos estaduais atuarem na fiscalização de contratos e parcerias firmadas durante a pandemia do novo coronavírus.

O documento elenca 13 questões a serem observadas pela fiscalização destas parcerias, que incluem como essas relações são formalizadas, se as tecnologias podem ser usadas sem o fornecimento de dados, quais são os dados que precisam ser disponibilizados, se há transferência ou tratamento de dados, se dados sensíveis (como origem racial ou étnica, convicções religiosas ou políticas, questões de saúde e orientação sexual) são disponibilizados, se é necessário que profissionais, pais ou alunos assinem termos de consentimento, se os dados coletados ficam no Brasil, sobre quem delimita a finalidade dos dados, se há fiscalização do Estado e sobre qual é o destino dos dados após encerramento do uso da tecnologia.

Leo Arno Richter, auditor do TCE-RS e assessor técnico do conselheiro Cezar Miola, destaca que o entendimento do Supremo Tribunal Federal é de que dados pessoais são patrimônio pessoal dos indivíduos e não podem ser usados para outros fins. Neste sentido, parcerias entre o poder público e empresas privadas no setor de educação não estariam proibidas, mas sim precisariam garantir a proteção dos dados. “Proteção de dados é um direito fundamental, essa foi uma decisão do STF. A questão é qual a proteção que esses dados terão, quem vai manejar esses dados?”, diz.

Richter explica que o interesse do TCE é entender o que consta nos contratos sobre o uso desses dados, porque, como trata-se de contratos novos, o órgão ainda não tem essa informação. Por isso, a ideia da nota do IRB foi de orientar os tribunais de contas de todo o Brasil a apresentar questionamentos para as secretarias de educação estaduais e municipais. Em caso de constatação de que dados de estudantes e professores estejam sendo compartilhados em violação à decisão do STF, Richter explica que os gestores públicos poderiam vir a ser responsabilizados pelos TCEs com multas e até com a rejeição de contas.

A partir da nota técnica do IRB, a reportagem enviou uma série de questionamentos aos grupos Estácio e Eleva, responsáveis pela plataforma Resolve Sim. As perguntas foram: Há transferência ou tratamento de dados de estudantes e professores que acessam a plataforma Resolve Sim? Quais dados são disponibilizados por quem acessa a plataforma? Há a disponibilização de dados sensíveis (como, por exemplo, origem racial ou étnica, convicções religiosas ou políticas, questões biométricas e relacionadas à saúde e à vida sexual)? Os dados disponibilizados são apenas os necessários para a realização das atividades? Onde ficam armazenados esses dados? Eles podem ser utilizados para treinar inteligência artificial? Qual o destino dos dados?

A assessoria do grupo Eleva informou que quem poderia responder os questionamentos seria o grupo Estácio, que se limitou a declarar: “A plataforma tem o objetivo de auxiliar os estudantes do ensino médio, disponibilizando conteúdos acadêmicos gratuitamente. A inscrição no programa é facultativa, feita a partir de um cadastro online, sem que o interessado precise informar qualquer dado sensível”.

Questionamentos semelhantes foram encaminhados a Google Brasil e à Secretaria de Educação do Estado do Rio Grande do Sul. A assessoria da Google informou que todos as perguntas poderiam ser respondidas por meio de explicações prévias já postadas pela empresa. Nessas postagens, a empresa afirma que os dados das escolas continuam pertencendo às instituições de ensino e que a empresa garante a segurança dos dados de professores e alunos. Da mesma forma, destaca que o pacote G Suite voltado para a educação não tem anúncios e não permite a coleta de dados para fins de publicidade ou comerciais. “Não vendemos dados para terceiros”, diz uma postagem do blog oficial da Google para o Brasil. Além disso, informa ainda que os serviços adicionais que fazem a captura de dados, como YouTube, Mapas e Blogger, só podem ser usados pelas contas do G Suite quando o administrador do domínio da escola habilita o acesso a eles.

A Google diz ainda que as regulações de privacidade do pacote estão de acordo com as legislações nacionais e internacionais. “Nosso compromisso com privacidade e segurança ajuda educadores e gestores de instituições de ensino a criar um ambiente saudável e protegido – garantindo, ao mesmo tempo, que o processo de aprendizado seja produtivo, personalizado e colaborativo”, diz a empresa.

A reportagem enviou duas perguntas adicionais a Google, questionando se os dados produzidos por estudantes e alunos após acessarem a plataforma de Sala de Aula poderiam ser transferidos ou utilizados para treinamento de inteligência artificial, mas a resposta apenas remeteu à mesma postagem do blog, que não aborda o tratamento de metadados.

Já o governo do Estado afirmou que os dados disponibilizados pelos alunos ficam retidos em um servidor de propriedade do Estado e que o exigido são apenas o nome, data de nascimento, matrícula, nome do responsável e turma. “Nenhum dos dados sensíveis dos alunos são colocados nesse servidor ou são manipulados pela empresa consultora ou pela Google”, diz a Seduc.

A Seduc afirma ainda que a Google, através dos Termos e Condições, se compromete a não enviar publicidade nem utilizar os dados pessoais obtidos para oferecer propaganda nos seus serviços e que não consentirem sobre o uso das plataformas por seus filhos poderão solicitar a exclusão da conta educacional. Diz ainda que a Google segue protocolos internacionais, mas não informou se há protocolos próprios estabelecidos pelo governo estadual.

Para Priscila Gonsales, é obrigação do poder público se responsabilizar pelo destino dos dados produzidos por estudantes e professores. “Você vai exigir que os alunos da minha escola façam o login nessa plataforma. E aí? Qual é o tipo de tratamento de dados que vai ser dado? E não só dados pessoais. A gente sempre fala mais de dados pessoais porque eles são mais palpáveis de entender, mas têm uma série de dados estratégicos relacionados a desempenhos dos estudantes, relacionados à população, à nível econômico, quando é universidade, a projetos científicos, de pesquisa. Tem uma série de coisas que estão sendo entregues sem uma regulação e sem uma preocupação”, diz.

Ela pontua ainda que isso se torna uma preocupação ainda mais relevante diante do fato de que a adesão a estas plataformas, na verdade, acaba sendo compulsória, uma vez que, caso não houvesse a adesão do aluno, ele ficaria excluído da educação pública neste período de pandemia. “É muito fácil pensar que, se a pessoa aceita, ok que os dados sejam usados comercialmente, mas, se ela não aceitar, ela não vai ter acesso àquela plataforma que a secretaria está obrigando-a a usar”.

Contudo, ela acredita que o principal problema dos gestores públicos na área é a falta de formação e o desconhecimento sobre como as empresas operam. “Não acredito que seja má fé, que seja corrupção, não tem a ver com isso, é um desconhecimento misturado com deslumbramento do que essas grandes plataformas fazem e oferecem de ferramentas”, diz. “Esse caráter do gratuito é que a gente precisa entender melhor. O dinheiro não é mais aquele só em papel, a gente tá num outro cenário que é essa economia baseada em dados”.

Há ainda um questionamento se os dados não estão sendo usados para fins desconhecidos. Richter, do TCE, lembra que não há uma série de aplicativos criados para recolher dados de usuários cujos fins não são transparentes. “Sabe aquele aplicativo que quase todo mundo baixa que mostrava o cara mais novo ou mais velho, o Face App, ele só tinha uma finalidade: era pegar os teus dados. Esses dados são compartilhados para uso comercial, em princípio. Mas, isso é um direito fundamental teu, que os teus dados não podem estar sendo compartilhados”, diz.

Para Rafael Evangelista, a princípio, não se trata de um ecossistema de vigilância que estaria sendo montado com fins desconhecidos, pois os interesses são, sobretudo, econômicos. Contudo, salienta que a Google vende análises de dados para clientes e, uma vez comercializadas, não há como avaliar qual será o destino dos dados.

“O produto deles é o dado, os fins quem vai definir é quem compra os dados, não nós que somos produtores e trabalhadores. O fim do cliente pode ser político. Por exemplo, eu tenho essa base de dados e quero entender o que as pessoas estão utilizando para eu poder formular minha análise política sobre eles. Então, você não tem, de fato, nenhuma garantia de que esse dado não vai ser vendido para algum ator que tem interesses políticos. É um terreno complicado porque a Google vai dizer ‘nós nos comprometemos a não vender os dados no Google Classroom’. Só que o Google Classroom é conectado com um conjunto outro de aplicativos que todos funcionam numa mesma plataforma, numa mesma suíte, e que tem toda essa facilidade de integração. Então, eles podem até não capturar exatamente o dado da plataforma de educação, mas eles vão capturar nas outras e praticamente vai ter o mesmo efeito”, afirma.

Educação plataformizada e empacotada

O professor Rafael Evangelista avalia que, para além da captura de dados, outra consequência da “plataformização” da educação é o fato de estar acontecendo a “compra” (gratuita ou não) de pacotes educacionais sem a discussão do ponto de vista de políticas públicas. “São pacotes que têm uma filosofia que não necessariamente tem a ver como a nossa realidade. E a gente está abandonando a possibilidade que o sistema público ou os educadores construam o seu espaço com outras prioridades que não a de uma assimilação de conteúdo, que é a dessas plataformas”, diz. “Esses sistemas estão levando em conta as nossas necessidades locais? Estão levando em conta a nossa realidade? Nós estamos podendo trazer a nossa experiência didática para esse outro ambiente e tentando criar uma outra coisa nesse ambiente? Isso não tem acontecido. Fora que a transposição de uma aula real para uma aula online não é a mesma coisa. Você não está lidando com meios que são neutros. Tanto o meio presencial tem a sua dinâmica, política organizacional, como a rede também tem sua dinâmica política e organizacional, que colocam para a gente problemas diferentes, nos quais a gente não estava acostumado a pensar”.

O professor Leonardo Cruz destaca que outro efeito preocupante da expansão dessas parcerias é que as instituições públicas de ensino superior, ao firmarem acordos com empresas privadas, acabam abrindo mão de produzir, elas próprias, alternativas de softwares educacionais, de redes de servidores e outras ferramentas que poderiam resultar em ambientes com maior proteção aos dados.

Em entrevistas que fez com representantes da UFPA, da Unicamp e da USP sobre a adesão aos serviços da Google para a sua pesquisa, Cruz apurou que um dos temores de professores da federal do Pará reside no fato de não haver transparência sobre a segurança de pesquisas em desenvolvimento que acabam tendo que, obrigatoriamente, passar pelas plataformas privadas. “Tem professores de Antropologia que fazem etnografia indígena aqui no Pará, ou participam de processos de demarcação de terra, todos eles estão desesperados porque estão colocando dados muito sensíveis, que deviam estar sob sigilo ou alguma forma de controle de acesso, num servidor que eles não sabem quem pode acessar”, diz.

Já nas entrevistas com os gestores, ele ouviu como argumento para a adesão que as parcerias eram economicamente vantajosas para as instituições, que, de outra forma, não teriam como investir na ampliação de data centers, por exemplo. No caso da UFPA, a parceria resultou na oferta de e-mail ilimitado para os estudantes, quando antes não conseguia chegar a 1 GB de espaço. “É uma pulga atrás da orelha, porque a Google oferece como se fosse algo filantrópico, que eles querem melhorar e inovar a educação no mundo. O grande problema é que essa questão não é nada discutida e esse tipo de mercado se tornou tão obscuro que a gente não tem nem condições de discuti-lo na tomada de decisões”.

Neste sentido, Cruz destaca que esse processo só tende a se aprofundar em cenários de crise econômica. “A crise econômica e agora a crise da covid é uma vantagem para essas empresas, porque, na verdade, elas estão oferecendo serviços para as instituições públicas nos quais o estado diz que não pode mais investir”, diz. “A questão da privacidade e de segurança de dados não é nem discutida”, complementa.

Na mesma linha, Rafael Evangelista avalia que o avanço dessas parcerias é resultado de um sucateamento da infraestrutura tecnológica do sistema educacional, o que acaba também justificando a “necessidade” de repasse de serviços e soluções tecnológicas para empresas privadas. “O que a gente tem visto é uma adoção sem discussão, com disciplinamento legal muito frágil, mesmo as universidades tomando decisões de adoção de uma maneira muito apressada, passando por comitês meramente técnicos dentro da própria universidade, sem uma discussão mais política, aprofundada, e isso também na educação básica. Você pode até ter um disciplinamento legal, que até o momento tem sido bastante fraco, mas você tem uma questão fundamental que mesmo que os dados da aplicação de educação fiquem no Brasil, os outros dados estarão todos na Califórnia. E dado você copia, você pode ter o dado aqui, ter o dado lá. A Google pode dizer que não está vendendo a base de dados, mas o que ela pode vender é inteligência que produz em cima da base de dados”.

Clarice Dal Médico destaca que o sucatamento da infraestrutura de tecnologia foi aprofundado em toda a rede estadual a partir da adoção do rigoroso ajuste fiscal imposto à educação. “Os laboratórios de informática das escolas estão fechados há anos, desde o governo Sartori, e o atual só fez mais acelerar a desigualdade e o sucateamento das escolas. Nós, do Godói, somos uma escola de Ensino Médio e os nossos alunos passam até na UFRGS. Com muito custo, fazem um bom Enem e tal, mas há quase dez anos a gente não tem professor de Informática na escola. E aí? Essa gurizada sabe mexer em computador? A gente não aprende a mexer do nada. Para mexer em bobagem, até que sim, mas para pesquisar tem que ter aula, tem que ter orientação. A nossa gurizada do 3º ano nunca teve professor de Informática na escola”, diz.


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