Geral
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22 de julho de 2020
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10:00

Ciclones-bomba: assim como o coronavírus, crise climática já faz parte do nosso cotidiano

Por
Marco Weissheimer
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Foto: Reprodução/Twitter MetSul
Foto: Reprodução/Twitter MetSul

Assim como está ocorrendo no terreno da medicina, em função da pandemia do novo coronavírus, a população do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná está sendo levada a incorporar na sua linguagem cotidiana alguns conceitos e expressões que, até bem pouco tempo, eram de uso praticamente exclusivo da comunidade científica das áreas da climatologia e da meteorologia. A novidade não é apenas lingüística, mas resultado da experiência direta com os eventos climáticos extremos que vêm atingindo a região nas últimas décadas. Ciclones extratropicais, ciclones- bomba, tornados, micro-explosões e até furacões passaram a freqüentar o noticiários dos meios de comunicação, a vida cotidiana das pessoas e a agenda política dos governos de estados e municípios, que estão sendo obrigados a aprimorar seus sistemas de previsão e de atendimento de emergência, bem como a sua capacidade de inteligência para entender o que está acontecendo.

No final de junho e início de julho, Rio Grande do Sul e Santa Catarina, principalmente, foram atingidos por dois ciclones-bomba, de características diferentes, mas ambos causadores de perdas de vidas humanas e grandes prejuízos materiais em residências na área urbana e rural, estradas, plantações e diferentes atividades econômicas. Esse é um cenário que veio para ficar e até se intensificar nos próximos anos, diz Francisco Eliseu Aquino, do Departamento de Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, coordenador do Laboratório de Climatologia, do Centro Polar e Climático da Divisão de Climatologia Polar e Subtropical da UFRGS. Aquino participou, na tarde desta terça-feira (21), de uma live promovida pelo Clima Info, que abordou a relação entre as mudanças climáticas no planeta e eventos extremos como os ciclones-bomba que atingiram o extremo sul do Brasil há cerca de três semanas.

Francisco Aquino falou sobre o tema em live promovida pelo Clima Info (Youtube)

Segundo o climatologista, a região Sul do Brasil e o Rio Grande do Sul em particular estão localizados em um ambiente atmosférico sensível e favorável à formação desses eventos extremos e, em virtude do aquecimento global da temperatura, esse quadro deve se acentuar nas próximas décadas. Desde o início da década de 1980, assinalou Aquino, o aumento da temperatura média global tornou-se mais significativo. Nos últimos 30 anos, a temperatura média global subiu um pouco mais de um grau Celsius. Destaque para 2016, o mais quente do século até aqui, que atingiu temperaturas até 5 graus Celsius acima da média em determinadas regiões. E 2020, até aqui, só perde para 2016, no ranking do ano mais quente do século.

Até 2045, disse o pesquisador, estima-se que a população do planeta será de 9 bilhões de pessoas e que cerca de 70% do sistema terrestre não será mais original e estará impactado pela ação antrópica, o que terá repercussões nos sistemas de suporte de vida em todo o planeta. A dimensão e as conseqüências desse impacto dependerão da velocidade e da direção de alguns fenômenos nos próximos anos. Francisco Aquino citou um artigo publicado na revista Nature, em dezembro de 2019, alertando que esses impactos podem disparar uma sequência de outros efeitos ainda maiores quando atingirmos o patamar de aumento de 1,5 graus Celsius na temperatura média global. Se ultrapassarmos a casa dos 2,0 graus de aumento da temperatura média, observou, corremos o risco de atingir um ou mais pontos de inflexão importantes, com uma aceleração dos efeitos das mudanças climáticas. Na mesma linha, a edição de julho deste ano da revista Time dedicou a ilustração de sua capa para alertar sobre a proximidade de um ponto de ruptura.

O Rio Grande do Sul e a região do extremo sul do Brasil estão no caminho de uma rota que conecta fenômenos que acontecem na região amazônica e na Antártica. Desde 2004, Francisco Aquino participa do trabalho de pesquisadores brasileiros no interior do continente antártico, coletando, por meio de testemunhos de neve e gelo, dados sobre a concentração de Dióxido de Carbono na atmosfera. A Antártica, destaca o pesquisador, concentra cerca de 90% do gelo do planeta, com uma espessura média que varia de dois a cinco quilômetros, em alguns pontos. Essa camada de gelo tem um papel fundamental no resfriamento da água e do ar. Os dados obtidos pelos testemunhos de neve e gelo indicam que a concentração de CO2 na atmosfera nunca esteve tão alta quanto hoje. De 1960 a 2010, passaram de 320 partes por milhão (PPM) para mais de 400 PPM, número este que só aumentou de lá para cá. “Os testemunhos de neve e gelo nos ajudam a entender como o sistema climático terrestre está sendo governado hoje pela atividade humana”, assinalou.

Imagem de satélite do ciclone que atingiu sul do Brasil no dia 30 de junho. (Reprodução)

O aumento da temperatura também provocou o maior aquecimento da troposfera, a camada atmosférica mais próxima da superfície terrestre, o que, por sua vez levou a mudanças significativas na circulação do ar, com impactos importantes na região sul do Brasil, em particular no Rio Grande do Sul. O Estado está localizado numa área de trânsito tanto do fluxo de ar quente que vem da Amazônia, quanto de massas de ar frio que vem do Sul. Toda a circulação atmosférica do nosso continente, destacou Francisco Aquino, está sendo afetada pelo reordenamento do sistema climático, alterando também as relações entre as massas de ar das regiões amazônica e polar.

Essa cadeia de mudanças ajuda a entender o aumento de eventos climáticos extremos no extremo sul do Brasil e na Bacia do Prata. Entre 1980 e 2010, apontou ainda o professor da UFRGS, ocorreram 78 eventos envolvendo ciclones explosivos na Bacia do Prata. No entanto, só 20% deles ocorreram sobre a região continental, quando os danos são maiores.

Esses eventos, alertou o pesquisador, devem ser melhor compreendidos, pois seu potencial de dano é muito grande. O ciclone bomba que atingiu a região no último dia 30 de junho, por exemplo, teve um grau de impacto superior ao do furacão Katarina, em 2004, pois acabou se desenvolvendo no continente. Em Porto Alegre, em apenas dois dias – 30 de junho e 1o. de julho, a precipitação pluviométrica (117mm) foi quase igual a toda chuva esperada para a capital no mês de junho (132mm).

Nos dias 6 e 7 de julho, outro ciclone bomba atingiu a região. Este foi menos sentido, disse Aquino, porque, como se desenvolveu na costa do Atlântico e não no continente, acabou sendo percebido pela chuva e não pelo vento. Assim, só no primeiro semestre de 2020, dois ciclones-bomba já atingiram o sul do país, causando grandes estragos. Em dois ou três dias, entre o final de junho e o início de julho, a precipitação pluviométrica que se abateu sobre o Rio Grande do Sul e Santa Catarina equivale à média de chuva de dois meses. O resultado, além de danos materiais, foram cerca de 4 mil pessoas desabrigadas por inundações em pleno auge da pandemia da covid-19.

Registro do ciclone chegando a Itajaí (SC), dia 30 de junho. (Youtube)

Esse volume de chuvas também vem acompanhado por uma anomalia, pois, até então, a região vivia uma das maiores estiagens das últimas décadas. Podemos ter assim um cenário de, ao mesmo tempo, aumento do volume total de chuva e estiagens severas. O problema é que as chuvas estão ocorrendo de modo mais concentrado em curtos espaços de tempo.

Toda essa região envolvendo a Bacia do Prata e os estados do Sul do Brasil, historicamente, se caracteriza por apresentar os maiores sistemas convectivos (linhas de instabilidade) da America do Sul, com grandes volumes de precipitação. Segundo Aquino, as tempestades nesta região são muito vigorosas, especialmente quando combinadas com a entrada de massas de ar polar. Atualmente, há pesquisas em curso para determinar se o aquecimento ainda maior da atmosfera pode intensificar ainda mais esse quadro de instabilidade e de possibilidade de eventos extremos. “Se existe uma região excepcionalmente sensível às mudanças climáticas globais, essa é uma delas”, resumiu.

Francisco Aquino traçou um paralelo entre os desafios colocados para os cientistas que lutam para tentar frear o aquecimento global e aqueles relacionados à luta para conter a pandemia do novo coronavírus. “Temos que achatar a curva do aquecimento global, assim como temos que fazer com o coronavírus. Não podemos ultrapassar a barreira do aumento de 1,5 graus, muito menos a dos 2 graus”, advertiu o pesquisador. Mesmo nas condições atuais, os cenários apontados pelas pesquisas não são muito animadores. Segundo Aquino, os cenários projetados até 2100 apontam cada vez mais períodos grandes sem chuva e eventos extremos envolvendo grande quantidade de chuva e vento, com ciclones bomba, tornados e outros fenômenos. Para o extremo-sul do Brasil, os impactos das mudanças climáticas não são mais tema para filmes futuristas apocalípticos, mas sim tema para políticas públicas urgentes.


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