Geral
|
30 de junho de 2020
|
23:31

Entregadores de aplicativos param neste 1º de julho: ‘Nos tratam como mato, que podem cortar a qualquer momento’

Por
Luís Gomes
[email protected]
Foto: Roberto Parizotti

Luís Eduardo Gomes

Nesta quarta-feira (1º), entregadores de alimentos que trabalham por aplicativos vão paralisar suas motos e bicicletas em todo o Brasil, o chamado #BrequedosApps, como tem sido divulgado nas redes sociais. Na pauta da categoria, a reivindicação pelo aumento do valor pago pelos aplicativos por quilômetro rodado, aumento da tarifa mínima, fim dos sistema de pontuação e restrição de local, fim de bloqueios indevidos, oferta de seguro contra roubos, acidente e vida para os trabalhos e auxílio com equipamentos de proteção e licenças durante a pandemia.

Sob o lema “basta de precarização das condições de trabalho”, o movimento tem ganho destaque nacional pela articulação de entregadores em São Paulo. Contudo, apesar de ter sido organizado mais tarde, a expectativa é que também atraia um bom contingente de pessoas em Porto Alegre. Uma concentração está sendo chamada para a Praça da Alfândega, em frente ao Shopping Rua da Praia, às 10h30.

Gabriel | Foto: Arquivo Pessoal

Gabriel*, 25 anos, começou a trabalhar com aplicativos de entrega em janeiro de 2020, depois que se formou em licenciatura de História, atuando, principalmente, de quinta a domingo, com foco no turno da noite. Ele conta que, inicialmente, resolveu aderir aos aplicativos como complemento de renda e por já ter o costume de andar de bicicleta diariamente. Com a dificuldade de encontrar emprego como professor e com o início da pandemia do coronavírus, o que era para ser um “quebra-galho” acabou virando sua única fonte de renda.

Lucas Carvalho de Souza, 28 anos, conta que havia se cadastrado na Uber já em 2019, mas, como estava empregado como auxiliar de atendimento no Grêmio, posto que manteve por oito anos, ainda não tinha começado a fazer entregas. Aderiu após ser demitido. “Foi a única opção que encontrei para ter uma renda.” Ele diz que, diariamente, trabalha das 10h às 15h para atender as entregas do almoço, faz uma pausa, e retorna para mais um turno das 19h às 23h. “Às vezes, eu fico um pouco mais, principalmente sexta e sábado, que o pessoal pede mais e eu acabo passando do tempo se tão pedindo bastante entrega”. Folgas, só em dias como esta terça-feira (30), em que a chuva torna trabalhar muito perigoso. “Semana normal, é de domingo a domingo”.

Gabriel é um dos entregadores que participam do Coletivo Independente de Trabalhadores de Aplicativo (C.I.T.A.), entidade que está participando ativamente da convocação para a paralisação de amanhã em Porto Alegre. “O que me levou a participar da mobilização é a indignação com os aplicativos, que insistem em nos tratar como parceiros, insistem em dizer que a gente não é trabalhador, não querendo admitir a nossa posição. Nós somos trabalhadores desses aplicativos e, por eles não reconhecerem isso, a gente vive constantemente sem direitos, recebendo uma remuneração muito baixa e numa lógica de que a gente tem que trabalhar cada vez mais para ganhar mais. Só que chega num ponto que o cara não tem como trabalhar mais”, diz.

Lucas | Foto: Arquivo Pessoal

Lucas não fazia parte do grupo de WhatsApp da C.I.T.A que discute a mobilização até a manhã desta terça, quando recebeu o link de um amigo entregador. Ele diz que, até então, vinha conversando com colegas sobre a mobilização desta quarta-feira apenas no “boca a boca”. “Eu já estava pensando em parar e isso ganhou força”, diz. Questionado sobre os motivos de aderir às mobilizações, responde: “O primeiro [motivo] é que eles estão pagando pouco. Tipo a Uber, a dinâmica eles só botam quando tá bombando, senão a tele é R$ 3,50 por banda, entendeu. É um valor muito pequeno para uma profissão de perigo. É perigoso estar na rua de moto, perigando pegar doença, ser assaltado, ter um acidente, então é muito pouco o que eles estão pagando”. “A gente só quer que seja bom pro nosso lado também”, complementa.

Entre a Medicina e a correria das entregas

O estudante de Medicina da UFRGS, Pedro*, 45 anos, conta que começou a trabalhar com os três principais aplicativos de entrega de comida em dezembro passado. Cursando um estágio obrigatório pelo último ano do curso, que é gratuito, diz que estava com dificuldades para arranjar outros empregos e viu nos aplicativos uma oportunidade de ter renda. “Eu tenho que pagar o aluguel, tenho contas para pagar, como todo mundo. A alternativa que sobrou para mim foi fazer entrega de aplicativo”, diz.

A combinação do estágio com o trabalho de entrega toma quase todo o tempo que passa acordado. Começando a rotina às 7h30. “De dia, eu estou no hospital. Eu saio do hospital por volta das quatro, cinco horas. Vou para casa, como alguma coisa, dou uma descansada. Em torno de seis, seis e meia, já saio para fazer as entregas. Eu vou para algumas localizações que são mais movimentadas, que chamam mais, e fico ali esperando. Fico até por volta da uma da manhã. Nos finais de semana, fico quase a noite inteira, até de manhã”, relata. “Durante a semana, chego em casa uma e meia, duas horas. Vou dormir pelas duas horas e sete horas tô de pé já”.

Pedro reconhece que, por estar quase se formando em Medicina, a perspectiva de que terá salários melhores no futuro o coloca em uma posição de privilégio na comparação com outros membros da categoria. “Eu tenho uma perspectiva de me formar e isso vai mudar um pouco, mas eu tô sentindo na pele o que os caras que tem isso como renda principal, e não têm uma previsão de ter outra, estão passando. E outra, eles têm filhos e tudo. Eu, não, moro sozinho, tenho a minha namorada que tem a renda dela. Mas, para esse pessoal que tem filhos, é bem complicada a questão da remuneração dos aplicativos”.

Ele destaca que, entre os aplicativos, o que paga melhor é o iFood. Recebia entre R$ 6 e R$ 6,50 por corrida de bicicleta e as entregas de moto pagam um pouco melhor. No Uber, diz que a média é de R$ 3,50 por entrega. No Rappi, segundo ele, o que compensa são as entregas depois da meia-noite, que acabam superando o valor do iFood. Pedro avalia que consegue se “segurar” porque toma café da manhã, almoça e janta no hospital em que estagia. “Mas pensa quem tem filho em casa, que depende do dinheiro entrando toda a semana para comer, para comprar remédio, para comprar uma roupa, pagar uma luz. Não pode ser do jeito que eles fazem”.

Para o estudante, os valores estão muito longe do ideal e da realidade que eles precisam enfrentar diariamente. Ele cita como o exemplo uma entrega que buscou de madrugada na casa de uma família da Vila Planetário que vende pizzas caseiras. “Teve uma vez que eu tomei uma batida da polícia. Fui para a parede, me revistaram e o cara me falou: ‘eu tenho que te revistar porque a gente não sabe se tá entregando pizza mesmo ou se tá fazendo aviãozinho pros caras’. Passei por esse tipo de situação, peguei a entrega ali, fui lá em cima na Independência, na esquina com a João Telles, uma banda relativamente média para a bicicleta, duas horas da manhã, para chegar lá e o pagamento da entrega ser R$ 3,50. É bem ruim”, diz.

Ele conta que faz entre 12 e 15 entregas por dia, a uma média de 2 km por corrida, batendo na casa dos 30 km diários. “No meu caso, era uma bicicleta motorizada, mas vem a mesma corrida para mim que vai para um cara de bike normal. Então, esses caras tão pedalando 30 km por dia com esse valor bem baixo”. Devido à constante necessidade de manutenção do equipamento, que o levava a perder dias de trabalho, acabou comprando uma moto recentemente.

Pedro diz que começou a participar da mobilização para o ato desta quarta após conversar, no final da semana passada, com outro entregador enquanto aguardavam em um restaurante da Terceira Perimetral. O rapaz, que já estava envolvido, levava na sacola térmica de sua moto um cartaz da convocação para o ato em São Paulo e o convidou para entrar em um grupo de WhatsApp, que, na manhã desta terça, já contava com mais de 160 membros e estava recebendo novas adesões “a todo momento”.

Por ter tido uma experiência como presidente de diretório acadêmico na universidade, resolveu aderir e participar da organização, mesmo ainda não fazendo parte do C.I.T.A. Além disso, por sua formação em andamento em Medicina, compartilhou com os demais entregadores um “mini tutorial” do protocolo do Hospital de Clínicas para a proteção em relação à covid-19.

As reivindicações do 1º de julho

Para Gabriel, o movimento ganhou força porque envolve pautas concretas e que tocam no dia a dia dos entregadores. “O aumento do valor por quilômetro é algo que nos ajudaria demais e o fim dos bloqueios injustos pela sensação de que a gente é tratado que nem lixo, tratado que nem mato. Cada vez mais as empresas têm nos colocado como se a gente fosse mato, que podem nos cortar a qualquer momento, porque existe um milhão de pessoas atrás, o que não deixa de ser verdade. O aumento do desemprego construiu isso, porque a única opção das pessoas são esses trabalhos precarizados. É importante que a gente crie essa união enquanto categoria para também não estar aceitando qualquer coisa deles”.

Uma pauta importante da categoria destacada por Pedro é a discriminação enfrentada rotineiramente. “Tu chega em um lugar para buscar um pedido, com a loja completamente vazia, e o papo do atendente é sempre o mesmo: ‘Tem que aguardar lá fora’. Às vezes, no verão, tá muito calor e dentro tá com ar ligado e tu fala: ‘Vou esperar aqui’. ‘Não, tem que aguardar lá fora’. ‘Não, vou esperar aqui, quando tiver pronto o pedido tu me avisa e eu vou ali e pego na janelinha de entrega’. Eles ficam com uma cara, sabe. E no inverno isso é muito ruim, porque tem lugares que não têm onde receber os entregadores, então o cara vai ficar do lado de fora, na chuva, como se fosse um bicho. Isso é uma das coisas ruins”, diz.

O acesso a banheiro é outra situação dramática, segundo ele, citando como exemplo uma experiência recente que teve numa loja de uma grande rede de lanchonetes que trabalha com drive-thru. “Eles demoram muito para entregar os pedidos ali, porque dão preferência para o drive e para as pessoas que ficam na fila para buscar. Anteontem [no domingo, 28], eu fiquei ali 40 minutos para um pedido que era dois sanduíches. Aí tu pede para ir no banheiro e eles dizem que não pode”, diz.

A reclamação do tempo de espera é compartilhada por Lucas. “Esses dias, eu fiquei 45 minutos esperando. Isso é ruim, porque o cliente fica brabo, dá deslike, a gente perde tempo e não ganha mais nada por ter ficado parado esperando o pedido”.

Quanto aos bloqueios, Pedro diz que muitas vezes os trabalhadores acabam tendo o acesso a entregas suspenso por um ou mais dias antes mesmo de receberem uma explicação para a penalidade. “Eu já fui bloqueado no Uber por dois dias. Eu perguntei o porquê e me disseram que era por muita recusa de entregas, sendo que eu nunca recusei corrida na Uber, muito menos depois que eu já tinha aceito. Fiquei três, quatro dias esperando resposta. É ruim, porque aí tu não consegue trabalhar e nem sabe o porquê”, diz.

Outros problemas comuns, segundo Pedro, ocorrem quando corridas são canceladas pelo cliente e o valor da entrega é cobrado dos trabalhadores e nos casos em que o aplicativo indica entregas em restaurantes que estão fechados, mas os aplicativos não os ressarcem pelo deslocamento. “Eu comunico eles que tá fechado, eles conseguem conferir que tá fechado, mas eles não pagam o deslocamento se não retirar a mercadoria. Agora, qual é a minha responsabilidade se o restaurante está fechado? É zero, e eles não pagam. Às vezes, o cliente cancela a corrida e, quando tu vê, gerou uma dívida para ti no valor da entrega. Tu manda mensagem para o suporte e não recebe retorno”, diz.

Por fim, Pedro explica que a revolta com o sistema de pontos dos aplicativos é porque ele acaba premiando apenas aqueles entregadores que enfrentam mais risco ou trabalham muitas horas, uma prática que ele considera, inclusive, que deveria configurar vínculo trabalhista. “Para tu fazer pontos, tu tem que fazer entregas, e para onde que te mandam? Sarandi, São João, São Geraldo, te mandam longe para caramba e para lugares mais perigosos. E aí tu fica sem ter onde trabalhar, porque, sem pontos, tu não pega essas regiões mais movimentadas. Como assim? Isso aí é coisa de vínculo trabalhista”, diz. O estudante explica que foi afetado pelo sistema quando, recentemente, precisou consertar sua bicicleta. “Quando eu voltei, tinham tirado todos os meus pontos e desceram o meu nível e eu fiquei vários dias sem receber uma corrida”.

*Os entregadores pediram para não ter o nome completo creditado para evitar retaliações. 


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora