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16 de maio de 2020
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12:31

‘O Brasil precisa voltar a ser o laboratório da esperança’, diz deputado espanhol

Por
Sul 21
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‘O Brasil precisa voltar a ser o laboratório da esperança’, diz deputado espanhol
‘O Brasil precisa voltar a ser o laboratório da esperança’, diz deputado espanhol
Deputado eleito por Barcelona, Gerardo Pisarello acredita que a atual crise de saúde oferece a oportunidade de mudar o rumo das politicas neoliberais. Foto: Arquivo Pessoal

Luciano Velleda

Esperança, apesar das mortes e da angústia causada pela pandemia do novo coronavírus. Oportunidade, ainda que o momento seja duro e o horizonte enevoado. Ambas as ideias têm permeado as reflexões do espanhol Gerardo Pisarello, deputado federal pela coalizão de esquerda En Comú Podem. Eleito por Barcelona, ele reconhece que a crise de saúde que está “sacudindo” o planeta tem piorado os problemas sociais e econômicos de muitos países. Ainda assim, acredita que a pandemia proporciona a oportunidade de mudar rumos.

“Estamos na melhor situação possível para defender que a saúde tenha que ser pública, e que deve haver forte investimento em saúde pública. Estamos no melhor momento para defender nossos cientistas. Estamos no melhor momento para entender que o planeta é importante. Tudo ao contrário do que Bolsonaro está fazendo no Brasil”, afirmou Gerardo Pisarello, durante conversa por vídeo com deputados estaduais do PT.

A conjuntura, o parlamentar espanhol sabe que é difícil. No caso da América do Sul, pondera que, atualmente, apenas a Argentina e o México são países com governos progressistas. “Temos a dificuldade de que as mudanças progressistas não ocorrem sem mobilização social, sem o apoio das pessoas e hoje, no contexto da pandemia, estamos mais conectados do que outras vezes, mas também mais separados do que outras vezes. Para recuperar a democracia, recuperar direitos sociais e a dignidade das pessoas, para sair dessa pandemia com uma mudança no modelo produtivo, de consumo e relação com o meio ambiente, é fundamental não perder o contato com as pessoas, escutar e não perder contato com a rua. Quando as forças progressistas chegaram ao governo e se desconectaram das ruas, abriram o caminho para o retrocesso autoritário e antidemocrático. Essa é a grande aprendizagem do momento”, reflete Pisarello, nascido em Tucumán, na Argentina.

Por isso, diz ele, as forças progressistas precisam se organizar, tal qual a direita tem feito, em âmbito latino-americano e mundial. “É muito importante que um governo progressista seja responsável, mas valente. Esta é uma lição que aprendemos também na América Latina em todos esses anos. Não se pode subestimar os setores conservadores que estão dispostos a tudo. Então nos faz falta também a valentia política.” O deputado espanhol afirma sentir “dor e raiva” com os últimos acontecimentos no Brasil, desde a chegada de Jair Bolsonaro (sem partido) à Presidência da República.   

Pisarello pondera que a crise era previsível, não a pandemia. E vê similaridades com os atuais acontecimentos no Brasil, Chile, Bolívia e Colombia, países onde a democracia tem sofrido ataques. “São governos autoritários que estão produzindo uma enorme degradação do Estado de direito, estão desconhecendo a separação entre os Poderes e tornando mais vulneráveis os direitos básicos. E estão aproveitando a pandemia para avançar nesse retrocesso político, dos direitos básicos, na perseguição da oposição e também no desmantelamento das conquistas sociais obtidas.”

O parlamentar chega a questionar, inclusive, se os governos desses países, liderados por pessoas que estão “no limite da psicopatia”, permitirão eleições livres e plurais. “A pandemia está aprofundando muitos dos retrocessos econômicos e políticos que já aconteciam”, afirma Gerardo Pisarello.

A Espanha e a crise

O deputado eleito por Barcelona não hesita em dizer que o atual governo espanhol é a primeira coalizão progressista e plural das esquerdas desde 1931. O momento histórico, entretanto, coincidiu com a revelação do primeiro caso de covid-19 na China. “É um governo que não teve tempo de desenvolver o programa que pensou e teve que entrar, imediatamente, na crise sanitária, que se agregou à crise econômica e social que já tínhamos depois de anos e anos de governos de direita”, explica Pisarello.

Em sua análise, a coalizão de esquerda que compõe o governo espanhol é frágil. Uma fragilidade decorrente das autonomias e identidades regionais da Espanha, com as tradicionais diferenças entre o País Basco, a Catalunha e a Galícia. É nesse contexto tumultuado que o isolamento social, a principal medida para reduzir a propagação do vírus, impacta fortemente na economia e apresenta cenários ainda mais difíceis para os dias que virão. Na Espanha, já há previsões de queda entre 15% ou 20% do PIB em 2020, como consequência da paralisação econômica. “É um problema real. Se a economia está parada, é muito mais difícil arrecadar impostos e ter os recursos para levantar a economia”, afirma o deputado espanhol.

Segundo ele, a Espanha, por estar na zona do euro, não pode “imprimir dinheiro” e depende unicamente dos impostos e do dinheiro que chega da União Europeia. No momento, ele explica, o governo espanhol tenta negociar ajuda vinda dos cofres da União Europeia, desde que não seja em forma de dívida futura. “O grande problema que temos, é que se queira resolver essa crise sanitária, econômica e social, endividando os países em troca de ajustes estruturais, como se fez com a Grécia em 2008. Isso seria terrível. Estamos pedindo que a União Europeia possa realizar transferências diretas de dinheiro e que não conte como dívida.”

A negociação não tem, até o momento, apoio do que ele chama de “as grandes corporações financeiras” da Alemanha e Holanda. Para Pisarello, a Espanha progressista precisaria de uma Europa progressista, e isso não existe hoje. Situação semelhante é vivida por Portugal. “Creio que a geopolítica mudou e isso poderia ser positivo, não haver um mundo unipolar. O multipolarismo é bom para o mundo, mas hoje o risco é que a Europa não entenda isso.”

O capitalismo na berlinda

Gerardo Pisarello acredita que os efeitos da pandemia causados pelo novo coronavírus são potencializados pelas políticas neoliberais implementadas nas últimas décadas. Para ele, as evidências estavam postas e outras pandemias, como a sars, já antecipavam alguns temas. “Podemos entrar numa situação de pandemia intermitente, que não será resolvida se não resolvermos a questão da saúde pública e abandonar medidas de crescimento que não se sustentam com a preservação do meio ambiente.”

Não é à toa, ele avalia, que o neoliberalismo e o capitalismo financeiro vigente no mundo precisam ser cada vez mais autoritários para sustentar seu discurso e implementar uma “política de destruição”. Com referências constantes às ideias do economista inglês John Maynard Keynes, o parlamentar espanhol defende ser preciso “desativar” o sistema financeiro, caso contrário, não se impedirão as tendências autoritárias que ganham espaço no mundo. “A chave, para mim, é praticar a ‘eutanásia’ dos rentistas. Se não conseguirmos isso, teremos sempre uma bomba relógio como ameaça a democracia.”

Pisarello defende que a não transformação do modelo econômico vigente fará com que o próprio sistema não funcione. Com mais desigualdade, mais pobreza e mais pessoas sem dinheiro no bolso, a economia não anda e grandes tragédias acontecerão. É por isso que o deputado espanhol vê a pandemia como uma oportunidade para a humanidade entender que o capitalismo em voga não funciona. Todavia, ele diz não ser ingênuo e destaca a importância da mobilização social e do avanço de coalizões progressistas. “Se não houver um contrapoder, não se conseguirá fazer nada”, afirma.

Em sua análise, os polos democráticos também vão se modificando. Na atual crise de saúde que abala o mundo, por exemplo, pondera que a China teve resposta mais solidária do que os Estados Unidos, que recentemente anunciou o corte de verbas para a Organização Mundial da Saúde (OMS). “Quase ninguém espera nada dos Estados Unidos. Há que aprender que os países asiáticos podem ter menos tradição de democracia interna, mas, nas relações exteriores, podem ser menos danosos do que outros países.”

Laboratório Brasil

Gerardo Pisarello define o Brasil de Bolsonaro como um laboratório, mas não um laboratório qualquer. “Um laboratório do horror, do capitalismo financeiro levado às últimas consequências, do ódio aos indígenas e às mulheres”, afirma, convicto. Apesar da definição dura, o espanhol vê um papel importante ainda a ser desempenhado pelo maior país da América do Sul. “O Brasil pode voltar a ser, como em outros momentos, um laboratório da esperança, e isso influencia outros países e o mundo. A América do Sul precisa ser o laboratório da esperança.”

Ele lembra da influência já exercida pela cidade de Porto Alegre nos primeiros anos do novo milênio, período da realização do Fórum Social Mundial. Diz que foi na capital gaúcha que ouviu, pela primeira vez, o debate sobre o direito à cidade. “Nossa luta é pelo pão e o abraço também.”

No plano político, Pisarello colocou para os deputados petistas a importância de ganhar a próxima eleição municipal na capital gaúcha, de forma a iniciar a mudança de rumos. “Temos esperança de que se possa recuperar cidades como Porto Alegre, que foi uma esperança para todo o mundo e deve ser a esperança dessa reconquista. O momento é difícil, mas creio que temos essa oportunidade única de aproveitá-lo, e devemos defender com muita firmeza nosso princípios. O Brasil precisa voltar a ser o laboratório da esperança.”


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