Geral
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29 de fevereiro de 2020
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11:58

RS perde 100 mil benefícios do Bolsa Família em 2019 e acende alerta para ‘apagão social’

Por
Luís Gomes
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Foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado
Foto: Jefferson Rudy / Ag. Senado

Uma reportagem publicada na última quarta-feira (26) pelo jornal Folha de S.Paulo a partir de documentos internos do governo Bolsonaro apontou que, desde fevereiro de 2019, circula a informação de que a verba prevista no orçamento de 2019 para o Bolsa Família seria insuficiente para atender todas as famílias que solicitam o benefício. Como resultado dessa falta de recursos, no final do ano, mais de 1 milhão de famílias estavam aguardando há mais de 45 dias para ingressar no programa.

O valor destinado pelo governo federal para o Bolsa Família cresceu anualmente entre 2004 e 2014. A primeira queda ocorreu em 2015, sendo seguida por mais uma redução no ano seguinte, mantendo-se estável desde então. No ano passado, o governo investiu R$ 32,5 bilhões no programa. Para este ano, o valor previsto é ainda menor, R$ 29,5 bilhões.

O resultado disso é que, para conseguir cumprir a promessa de campanha de pagar uma décima terceira parcela aos beneficiários, o número de famílias inscritas está sendo reduzido, como demonstram os dados referentes ao Rio Grande do Sul. O Portal da Transparência do governo federal traz dados discriminados sobre beneficiários e gastos do Bolsa Família desde 2016. Naquele ano, o RS tinha 447.239 mil beneficiários do Bolsa Família. No ano seguinte, esse número caiu para 440.040, mas subiu em 2018 para 466.097. Contudo, 2019, primeiro ano de governo Bolsonaro, registrou uma forte queda de mais de 100 mil beneficiários do programa, para 364.897 (-21,71%).

Em 2016, o valor investido no Bolsa Família no Estado foi de R$ 747 milhões, caindo para R$ 695 milhões em 2017. Em 2019, mesmo com o pagamento do décimo terceiro, o valor continuou abaixo de 2016, terminando o ano em R$ 722 milhões. Nesse período, o benefício médio saltou de R$ 1.670,53 por ano por beneficiário para R$ 1.978,90.

Em resposta encaminhada a questionamentos do Sul21 sobre a redução de beneficiários no Estado, o Ministério da Cidadania, que faz a gestão do Bolsa Família, afirmou que os cancelamentos de benefícios estão relacionados aos “procedimentos de averiguação e revisão cadastrais, fiscalização, desligamentos voluntários, descumprimento de condicionalidades, e superação das condições necessárias para a manutenção dos benefícios”.

A pasta diz que a concessão de novos benefícios depende do número de famílias habilitadas e da disponibilidade orçamentária para o programa. “O processo de concessão de benefícios é impessoal, realizado por meio de sistema automatizado e obedece ao teto das verbas orçamentárias destinadas ao programa”, diz o ministério, que acrescenta ainda que o governo tem trabalhado para reestruturar e fortalecer o Bolsa Família. Na último dia 20, o novo ministro da pasta, Onyx Lorenzoni (DEM), anunciou a inclusão de 185 mil famílias no programa, que passarão a receber o benefício a partir de março.

O Departamento de Assistência Social (DAS), ligado à Secretaria do Trabalho e Assistência Social (Stas) do Rio Grande do Sul, diz que os números do Portal da Transparência referentes ao Bolsa Família não estão atualizados e que, conforme pesquisa realizada no banco de dados do Ministério da Cidadania, o programa tinha 369.639 beneficiários em janeiro de 2018 e 352.292 em janeiro de 2019.

Questionado sobre os motivos para a redução de milhares de famílias do Bolsa Família, o DAS aponta que não houve exclusão de beneficiários, mas que ela é resultado do processo de atualização cadastral, que é feito de 2 em 2 anos. “É importante destacar que a partir da atualização cadastral é que se define se o benefício permanecerá ou não. Muitas vezes, a própria família não procura o serviço de assistência social (Cadastro Único) para atualização. Caso não houver atualização, o próprio Ministério da Cidadania realiza. No Rio Grande do Sul, a partir do trabalho da coordenação estadual do Cadastro Único e do Programa Bolsa família, temos 488 municípios com cadastros ampliados e atualizados”, diz o DAS.

Paola Carvalho em apresentação dos resultados do RS Mais Igual em 2014 | Foto: David Alves/Palácio Piratini

Paola Carvalho, diretora de Relações Institucionais da Rede Brasileira da Renda Básica e que tem estudado o Bolsa Família para uma pesquisa de mestrado, discorda de que esse processo seja “técnico”. Ela afirma que o governo federal utiliza três grandes motivos para desligar as famílias do Bolsa Família. O primeiro é de que parte dos beneficiários não precisa mais da renda, o que ela considera um argumento irreal. “Por que ele é irreal? Porque não dialoga com a condição econômica do País. O número de desempregados só cresce, o subemprego só cresce, a perda do Benefício de Prestação Continuada só aumenta, então não dialoga com o número [de redução de benefícios]. Um caso ou outro tudo bem, mas justificar por aí é impossível”, afirma.

O segundo motivo seria a orientação  que o governo passa para que as famílias sejam “apertadas” com o objetivo de coibir eventuais fraudes, especialmente de famílias com renda superior ao previsto nas regras do programa — renda per capita mensal de até R$ 89 ou com renda entre R$ 89,01 e R$ 178,00 e que tenham em seu núcleo familiar adolescentes e crianças. “Há uma criminalização firme e forte do governo federal em relação a orientar os municípios a achar motivos para desligar as famílias”, diz Paola.

O terceiro motivo seria o descumprimento de contrapartidas, chamadas de condicionalidades, exigidas para que as famílias permaneçam no programa. “Um dos índices mais graves aqui no RS é o não cumprimento de condicionalidades na saúde, porque o Bolsa prevê pesagem e vacinação das crianças até 6 anos. Eu vou dizer o seguinte, com todo o corte que a saúde está vivendo, com os municípios tendo cada vez mais dificuldade de manter as unidades básicas de saúde, as pessoas mais pobres são as que têm mais dificuldades de levar as suas crianças até a unidade de saúde, quando ela existe ainda e não fechou as portas. Então, as famílias pobres são duplamente penalizadas. Além de não terem atendimento de saúde, perdem o benefício como se não tivessem cumprido a condicionalidade por pura irresponsabilidade da família e não porque o Estado não está prestando o serviço como deveria”, afirma.

Além da redução dos beneficiários, o Rio Grande do Sul silenciosamente viu o desaparecimento do programa RS Mais Igual, criado em 2011 na gestão Tarso Genro (PT) com o objetivo de complementar o benefício do Bolsa Família para as famílias em situação de maior vulnerabilidade e com crianças de 0 a 6 anos. Por um acordo assinado com a União, o Estado complementava o valor por família, até que todos os seus integrantes recebessem um mínimo de R$ 100. O objetivo era elevar o parâmetro de renda definidor da pobreza extrema, que, na época da criação do programa, era de R$ 70 no Brasil.

Segundo Paola Carvalho, que coordenou o programa no governo Tarso, mais de 100 mil famílias chegaram a ser beneficiadas pelo RS Mais Igual e, ao final da gestão, 75 mil estavam recebendo o complemento do Bolsa Família. Ela aponta que o último pagamento feito às famílias ocorreu em setembro de 2015, em meio às políticas de corte de gastos do primeiro ano do governo de José Ivo Sartori (MDB). Em resposta a questionamento da reportagem, a assessoria do Palácio Piratini na atual gestão, de Eduardo Leite (PSDB), informou que o “programa RS Mais Igual não consta como projeto da atual gestão”.

Deputado Valdeci Oliveira (PT) | Foto: Celso Bender/Agência ALRS

O deputado Valdeci Oliveira (PT), que tem promovido debates na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul sobre políticas de transferência de renda e renda básica, avalia que a extinção do RS Mais Igual e a redução do número de beneficiários do Bolsa Família faz parte de um movimento de “enxugamento do Estado” promovido nos últimos anos pelos governos estaduais e federais sem levar em consideração os resultados dessas medidas para as famílias que eram beneficiadas.

“O problema é que os caras fazem a eliminação das políticas para os mais pobres de uma forma silenciosa e, quando se percebe, já não existe mais. As pessoas afetadas não têm um nível de organização porque são extremamente vulneráveis, só se dão conta quando já perderam e não têm a quem recorrer. É terrível porque, para os grandes, qualquer retirada de benefício já cria um alarde na mídia. Lamentavelmente, essa parcela muito importante da população é totalmente desprovida de qualquer tipo de apoio”, diz o deputado. “Do meu poto de vista, o RS vive uma situação de apagão social. Os mais pobres estão condenados a serem ainda mais pobres e vulneráveis e isso é inaceitável”, complementa.

Valdeci destaca ainda que o Brasil está indo na contramão da tendência mundial, que é de discutir as possibilidades de aumento das políticas de transferência de renda e de proteção social, como a renda básica. Ele destaca que a cidade de Maricá (RJ) iniciou em dezembro passado um projeto de renda básica que concede R$ 130 para os seus moradores. Inicialmente, o programa já beneficia 25% da população local — com renda familiar de até 3 salários mínimos — e a ideia é que, em 2022, alcance todos os moradores, independente de serem pobres ou ricos. Maricá utiliza recursos dos royalties do petróleo para financiar o programa, que tem custo estimado em R$ 62,4 milhões anuais nessa primeira etapa. “Temos que achar uma forma de inclusão social e não de exclusão social, mas lamentavelmente essa é a política que o governo Leite faz aqui no Estado e o governo Bolsonaro faz a nível nacional”, pontua Valdeci.

O deputado argumenta que o resultado do corte de benefícios pode ser visto no aumento da população de rua nas grandes cidades. Santa Maria, cidade de Valdeci, teve queda de beneficiários de 8.797 para 6.723 entre 2018 e 2019, redução de 23,57%. Já Porto Alegre teve uma redução ainda mais acentuada, de 65.766, em 2018, para 49.080, em 2019, um corte de 25,37% no total de beneficiários.


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