Geral
|
11 de janeiro de 2020
|
12:05

Santuário busca materializar ideia de libertação animal: ‘toda vida importa’

Por
Marco Weissheimer
[email protected]
Porquinho Pingo tornou-se um símbolo da luta do Santuário pela libertação dos animais. (Foto: Luiza Castro/Sul21)
Porquinho Pingo tornou-se um símbolo da luta do Santuário pela libertação dos animais. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

 

Em julho de 2019, uma família encontrou um porquinho ferido às margens da BR 290, em Charqueadas. A suspeita é que ele tenha caído de algum veículo que transportava animais para um abatedouro. Em média, os porcos são mortos com cerca de quatro meses de idade. Os ferimentos deixaram o filhote paraplégico e com uma grave infecção. Mas, paradoxalmente, isso pode ter evitado sua morte. A família recolheu o porquinho ferido e saiu em busca de ajuda. Por meio de postagens nas redes sociais, acabou entrando em contato com o Santuário Voz Animal, localizado na área rural de Eldorado do Sul, na Região Metropolitana de Porto Alegre. O porquinho foi acolhido e recebeu um nome: Pingo.

O primeiro diagnóstico sobre o estado de saúde de Pingo foi terrível, conta o jornalista Fernando Antunes Jr., militante pela abolição da exploração animal e voluntário do Santuário Voz Animal. “Fratura com rompimento total da medula. Ele teria muita dificuldade para se locomover por não ter os movimentos traseiros. Além disso, não tem controle sobre o próprio aparelho digestivo. As primeiras veterinárias que consultamos disseram que, além de todas essas dificuldades, ele poderia pegar uma infecção muito rapidamente em função dos problemas no aparelho urinário e digestivo. O que nos recomendaram é que ele fosse sacrificado”.

Fernando e Fernanda Ellwanger de Lima, fundadora do Santuário, não se resignaram com o diagnóstico, muito menos com a recomendação de sacrificar o animal, e partiram em busca de outra opinião especializada. “O lema do santuário é ‘toda vida importa’. Aqui, a gente luta até as últimas consequências para que os animais tenham a chance de viver o mais próximo possível daquilo que seria o natural deles. Então procuramos uma segunda opinião de um veterinário especializado em coluna. Ele nos disse que, de fato, havia esse risco de ele pegar infecções, mas que seria possível dar um nível de qualidade de vida pra ele, sem sentir dor e que, bem cuidado, ele poderia viver muitos anos. Decidimos então encarar esse desafio, fazendo também do Pingo um símbolo dessa luta pela libertação dos animais”, diz Fernando.

 

Fernando Antunes Jr.: “a defesa da libertação animal é indissociável da ideia de território”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Além de ganhar uma conta própria no Instagram, Pingo ganhou uma “carteira de identidade”, a certidão de guarda de animal doméstico, que reconhece que ele tem guardiões e atribui características ao indivíduo. Doutor em Comunicação Social pela PUCRS e pós-doutorando no Programa de Pós Graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, Fernando destaca o simbolismo e a repercussão desse registro:

“Está escrito neste documento que ele é paraplégico, carinhoso, brincalhão, dengoso, ciumento. Quando a gente vem aqui e visita ele muito rapidamente ele fica mau humorado, vira as costas e fica olhando pro mato. Ele é um sobrevivente. A gente diz que o azar dele foi a sorte dele. O fato dele ter caído de um transporte e ter fraturado a coluna fez com que ele viesse pra cá e não para um abatedouro qualquer e virar linguiça. A gente tem notado que o Pingo tem sido um forte vetor de conversão de pessoas ao vegetarianismo e ao veganismo. Várias pessoas nos mandaram mensagens contando isso”.

Mais do que isso, a história de Pingo acabou lançando luz sobre a experiência do Santuário que, para sua fundadora, representa a materialização da ideia da libertação animal. A defesa da libertação animal, diz Fernando, é indissociável da ideia de território. “Sem um território, não há liberdade. No Brasil, nós tivemos a abolição da escravidão, sem que isso implicasse efetiva liberdade porque as pessoas que eram escravas seguiram dependentes de territórios de outras pessoas. Para nós, o Santuário é a materialização da ideia da libertação animal. Ele representa uma luta por espaços onde os animais possam existir por si mesmos, sem que tenham que ter uma utilidade para os seres humanos”. O jornalista acredita que a libertação animal passa por espaços como o do Santuário, onde os animais têm direito a um território, têm acesso a alimento, à água e a momentos de brincadeira.

 

Santuário Voz Animal abriga hoje cerca de 300 animais, entre cães, gatos, aves, porcos, bovinos e equinos. Foto: Luiza Castro/Sul21

O Santuário abriga hoje cerca de 300 animais. Mais da metade deles são aves. A outra metade se divide entre cães (cerca de 70), gatos (cerca de 55), três equinos, dois bovinos, uma ovelha e cinco suínos. A manutenção do espaço, diz Fernando, tem um custo mensal que varia entre R$ 12 e R$ 14 mil. Aproximadamente um terço dessa verba vem de apadrinhamentos, de pessoas que contribuem mensalmente com o projeto. O restante, acrescenta, vem do bolso da própria Fernanda que destina praticamente todo o seu salário para a manutenção do espaço. O Santuário vem procurando ampliar sua rede de apadrinhamentos e doadores (veja aqui como se tornar um apoiador do projeto)

Fernanda Ellwanger de Lima, fundadora do Santuário (Reprodução/Facebook)

A relação de Fernanda com os animais confunde-se com a sua história de vida. Desde pequena, ela sempre teve muito contato com animais no sítio da família onde hoje está instalado o Santuário. Quando tinha 8 anos, ganhou uma ovelhinha do pai, a Bila. Neste momento, conta, o sentimento em relação aos amimais aflorou de um modo muito mais intenso. “Foi o meu primeiro despertar, a minha primeira conexão. A minha ovelhinha era praticamente um cachorro”. Por volta de 2009, Fernanda virou vegetariana e começou a acolher os primeiros animais no sitio da família que iria se tornar um santuário para dezenas de outros animais no futuro. “Eu e minha mãe começamos a acolher alguns animais de maneira natural. Primeiro eram gatos e cachorros da vizinhança e mesmo de cidades vizinhas. Depois abrigamos duas burrinhas, um burrinho, uma égua e um cavalo. As galinhas que ficavam lá também não morriam”. O que foi crucial para a transformação desse processo de acolhimento no projeto do Santuário foi a chegada dos porcos.

Em 2015, houve uma mobilização na internet procurando um sítio para abrigar três porcos que tinham sido resgatados de um matadouro clandestino. “Chegaram até mim e eu e minha mãe decidimos aceitar esses porcos no nosso sítio. Eles chegaram pequenos, com poucos meses de vida, e nos disseram que eles seriam “mini-pigs” que não cresceriam muito. Quando a gente viu, seis meses depois, eles tinham virado uns hipopótamos. Eu me vi desesperada numa situação em que não tinha mais recursos para sustentar todos aqueles animais, conta ainda Fernanda.  Uma alternativa era distribuir os três porcos em santuários localizados em outras regiões e estados. Mas a possibilidade de separar os três não agradou Fernanda e a mãe. “Eles faziam tudo juntos, cresceram juntos e eram muito unidos. Ficamos muito mal com isso e, ainda em 2015, tomamos a decisão de virar um projeto”. Aí nasceu o projeto  do Santuário Voz Animal que foi lançado oficialmente em 2017 no “Vê”, um restaurante vegano de Porto Alegre.

Para ajudar na sua sustentação financeira, o projeto instituiu um sistema de apadrinhamento, que parte de R$ 30,00, R$ 50,00, R$ 100,00 ou outro valor que a pessoa se disponha a contribuir mensalmente. “Partir do zero todo mês para sustentar o Santuário seria muito difícil. Precisamos ter uma ajuda contínua, embora ajudas pontuais também sejam muito bem vindas, para poder fazer um planejamento financeiro mensal. Hoje não temos como foco só sustento dos animais, mas também difundir uma mensagem educativa por meio de materiais como camisetas e do próprio Santuário. Temos muitos relatos de como ele mudou a cabeça de muitas pessoas que conheceram o espaço. O nosso lema é ‘toda vida importa’ e, ao chegar lá, as pessoas entram em contato direto com essa forma de ver o mundo”.

Apesar do aumento da visibilidade midiática de temas relacionados a animais, Fernando acha que ainda há um longo caminho a percorrer para que os direitos animais sejam efetivamente levados a sério. “A nossa cultura é hostil aos animais. Um projeto como esse, que visa romper com uma tradição de exploração animal, causa um desconforto e uma estranheza, mesmo aqui na vizinhança. Para a maioria, o animal tem que ter uma serventia, tem que resultar em algum lucro ou ter alguma utilidade. Muita gente não consegue entender a existência de um espaço onde os animais possam viver as suas vidas sem serem molestados”.

Ele define o Santuário também como um espaço de resistência a essa cultura. “Quanto mais forte ele fica, mais resistência a gente oferece. Isso gera alguns embates com vizinhos que abatem porcos, abatem bovinos ou criam cachorros para vender. A crueldade, para ser normatizada, precisa de cumplicidade”. Ele cita o exemplo de uma situação cada vez mais comum em encontros onde a carne é o prato principal.

“Quando há um vegetariano ou vegano em um churrasco, as pessoas já ficam incomodadas, começam a fazer perguntas e a debochar dessa escolha. A simples presença de uma pessoa que não come carne naquele ambiente, onde estão fatiando o corpo de um animal pra comer,  produz um estranhamento e um desconforto. Ela rompeu com a cumplicidade necessária para que ninguém fale de certos assuntos envolvidos naquilo ali. Ela se torna uma pessoa inconveniente sem falar nada. O Santuário também quebra a cumplicidade com o sofrimento e a exploração de um sistema que assassina 70 bilhões de animais por ano no mundo”.

Florzinha e Docinho buscaram refúgio no Santuário e conseguiram escapar do “costelão 12 horas”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Para ilustrar a natureza desses enfrentamentos, Fernando conta a história das vacas Florzinha e Docinho, consideradas como refugiadas no Santuário. Um dos vizinhos do Santuário promove eventos para empresas, que incluem churrascos onde são assados metade de bois inteiros, o chamado “costelão 12 horas” feito em um fogo de chão. “Florzinha e Docinho estavam sendo criadas com outro boizinho para este fim. Só que elas arrebentaram a cerca e vieram para o terreno do Santuário e não saíram mais dali. Elas poderiam voltar pra lá, mas ficavam sempre no nosso espaço. Com elas veio também o boizinho que apelidamos de Ferdinando. Como elas acabaram criando um laço conosco e com os nossos animais decidimos comprar a liberdade delas. Quando conseguimos a verba para comprar os três, o antigo dono delas disse que só iria vender as duas vaquinhas, mas que ele ficar com o boizinho para transformá-lo em touro reprodutor. Ficamos sabendo depois que, no dia em que a gente trouxe elas para o Santuário, ele abateu o touro porque tinha encomendado uma churrascada num sítio aqui perto”.

Quem já foi para a frente de um matadouro, acrescenta Fernando, pode testemunhar como os animais resistem à morte até o último segundo. “Eles não querem estar lá, não querem entrar naquele lugar, eles sabem o que vai acontecer lá e eles resistem. Por que será que esses bovinos arrebentaram a cerca e não saíram mais daqui? Os animais criam laços sociais complexos e quando vêem um semelhante sofrendo, eles sentem o que isso significa. Eles não têm a nossa linguagem, mas se comunicam e são muito claros sobre aquilo que eles querem e o que não querem. A história dessas vaquinhas representa essa resistência dos animais de não querer se entregar ao que os homens determinam para suas vidas”.

“Há um sistema ideológico de exploração que atinge animais humanos e não humanos”, defende ativista. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na pesquisa que desenvolve no pós-doutorado em Processos e Manifestações Culturais, na Feevale, Fernando estuda, entre outros temas, como o abuso dos animais está relacionado a outras formas de abuso cometidas na nossa sociedade. Ele resume assim o mecanismo de formação de crenças que acompanha todo esse processo:

“Há um sistema ideológico de exploração que atinge animais humanos e não humanos. Eu analiso como os discursos formam crenças, entre elas o especismo e a cultura de comer carne, e como elas se sustentam. Mesmo circulando a informação de que os animais sofrem muito para que a gente tenha a carne lá no mercado, as pessoas não se sensibilizam. Existe um fenômeno psicológico e social aí, que se chama dissonância cognitiva. As pessoas não ligam uma coisa a outra, ou entram em um estado de negação. Mas elas não entram neste estado de negação sozinhas. Existe todo um discurso montado para alimentar esse estado. Você é bombardeado diariamente com propagandas que mostram famílias felizes em volta da mesa fatiando pedaços de animais mortos, ou franguinhos que são suicidas felizes dizendo que querem ser comidos e assim por diante. Essas narrativas se utilizam de generalizações, omissões e distorções para tentar colocar um véu sobre aquilo que é óbvio: os animais sofrem. não querem morrer e não é justo fazer isso com eles”.

O cotidiano do Santuário representa também um esforço diário para romper com essa cadeia de crenças e assegurar aos animais o direito de viverem com dignidade sem que paire sobre eles a exigência de uma utilidade para os humanos como uma condição para justificar sua existência.

Conheça as redes sociais do Santuário Voz Animal e do Porquinho Pingo:

Santuário Voz Animal (Instagram)
Pingo de Compaixão (Instagram)
Santuário Voz Animal (Facebook)
Site do Santuário Voz Animal

Porquinho Pingo . Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

 

Foto: Luiza Castro/Sul21

Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora