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24 de dezembro de 2019
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21:02

‘Velcro Seguro’: publicitária cria cartilha de saúde sexual para mulheres lésbicas e bissexuais

Por
Annie Castro
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Ilustradora produziu guia de saúde sexual para mulheres lésbicas e bissexuais com vulvas. Foto: Arquivo Pessoal
Ilustradora produziu guia de saúde sexual para mulheres lésbicas e bissexuais com vulvas. Foto: Arquivo Pessoal

A última cartilha pública do governo federal sobre saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais com vulva é datada de 2007, mais de dez anos atrás. Apesar de ser um material público, a cartilha não é de todo acessível, uma vez que é quase impossível encontrá-la no site do Ministério da Saúde apenas buscando palavras-chaves sobre o assunto, e também não aborda questões importantes sobre transmissão de doenças no sexo entre mulheres com vulvas. Ao mesmo tempo, a sexualidade e as práticas sexuais dessas mulheres tendem a ser invisibilizadas pela sociedade.

Diante deste contexto de invisibilização e para suprir as necessidades de informações acessíveis sobre o tema, a ilustradora Nicolle Sartor, de 21 anos, criou o ‘Velcro Seguro – Guia de saúde sexual para mulheres lésbicas e bissexuais com vulva’, que aborda questões como quais são as Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) transmitidas no sexo entre mulheres, como ocorrem essas transmissões e como preveni-las, assim como quais os métodos de sexo seguro existentes e os exames recomendados como prevenção e qual a periodicidade com que devem ser realizados.

A cartilha, que foi o trabalho de conclusão de curso de Nicolle em Publicidade e Propaganda na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), orientado pela professora Juliana Petermann, consta informações resultantes de pesquisas da ilustradora e também que foram passadas à ela pela médica Thaís Machado Dias, da Unicamp, que também acompanhou todo o processo de estruturação do ‘Velcro Seguro’.

Segundo a publicitária, sua motivação para criar o guia se deu a partir da percepção da ausência desses materiais na sociedade brasileira e da não disponibilização de maneira acessível dos documentos existentes. “Levando em conta que tenho vários privilégios de acesso à universidade, à internet e, enfim, às ferramentas de pesquisas, eu não não tinha esse acesso a muitas dessas informações. Então, eu penso como que outras mulheres conseguem acessar essas informações e percebi que, na verdade, elas não conseguem”, relatou a publicitária ao Sul21.

Nicolle produziu o guia como seu trabalho de conclusão de curso. Foto: Arquivo Pessoal

Em função da ausência de cartilhas que sejam acessíveis ou efetivas sobre o tema, desde o início do processo de produção o guia foi pensado para ser um material de livre distribuição e livre impressão, estando atualmente disponível na internet para leitura online e impressão gratuita. De acordo com a publicitária, detalhes técnicos, como tamanho, distribuição de informações e qualidade do material, por exemplo, foram pensados para que o guia “pudesse circular o máximo possível, ocupasse o menor espaço possível e fosse barato para imprimir”.

Desde que foi publicado por Nicolle em seu perfil no Instagram, o ‘Velcro Seguro’ ganhou uma enorme repercussão na internet, sendo compartilhado por milhares de pessoas em diferentes redes sociais. Para ela, a repercussão que o guia ganhou é um reflexo da necessidade existente de um material que abordasse as questões que envolvem a saúde sexual de mulheres lésbicas, bissexuais e com vulvas. “A repercussão é sintomática do quanto precisamos disso e falar sobre isso. Está na hora da gente conversar sobre e cobrar medidas do estado e do governo”, disse.

A publicitária pontua que, embora o tema da saúde sexual de mulheres lésbicas e bissexuais com vulvas esteja sendo mais falado na sociedade atualmente, ainda há uma grande inviabilização da sexualidade e das práticas sexuais dessas mulheres, o que faz com que as informações certas ainda não sejam disseminadas corretamente entre a população e que mitos sobre o tema continuem existindo.

“Ainda é muito um senso comum de que, por exemplo, o sexo entre vulvas não transmite nenhuma DST e que ele é sem risco. Também tem vários outros aspectos das práticas sexuais entre mulheres com vulva que não são tidos como algo a ser cuidados. Se você não considera uma prática sexual como sexo, mas sim como “preliminares”, como as pessoas dizem às vezes, você acaba desqualificando todo um grupo que se sustenta nessas práticas e que tem elas como principais”, afirmou Nicolle.

Cartilha criada por Nicolle aborda, dentre diversos tópicos, quais são as IST transmitidas no sexo entre mulheres. Foto: Reprodução

Segundo a publicitária, a saúde dessas mulheres é impactada de inúmeras formas diante de como o assunto é tratado dentro da sociedade e da omissão do poder público a respeito de materiais informativos sobre o tema e de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis. Conforme Nicolle, essa realidade pode ser vista como uma cadeia de desinformação formada por três níveis.

O primeiro, explica a publicitária, diz respeito à educação dos profissionais de saúde, que não é feita de forma que inclua aspectos que fazem parte da sexualidade de mulheres lésbicas ou bissexuais com vulva. “Uma pesquisa que eu vi, analisei e usei de referência no meu trabalho, é da Knault, feita em Porto Alegre, de 2008 a 2009, e escutou mulheres lésbicas ou bissexuais com vulva e os profissionais de saúde. O que foi falado da parte dos médicos é que, na época da pesquisa, não havia essa abordagem do assunto de uma maneira efetiva nas aulas quando eles eram estudantes. Era apenas alguma coisinha ou outra que era falada e depois passava batido”, explicou a publicitária.

Consequentemente, a falta de educação dos profissionais de saúde afeta o atendimento que essas mulheres irão receber e até mesmo como se dará o acolhimento nas consultas. “Se você não se sente de fato cuidada e contemplada, ou se a pessoa não compreende suas práticas sexuais, fica muito difícil você se sentir bem vinda e acolhida em um ambiente. Então, essa falta de contato com o tema acabaria acarretando nessas situações de desconforto, de preconceito, de intolerância nas consultas médicas”, afirmou Nicolle.

Segundo ela, existem, inclusive, relatos de mulheres que perceberam uma mudança na velocidade da consulta e no comportamento dos profissional da saúde depois que elas falavam sobre suas práticas sexuais ou que se relacionam com outras mulheres com vulva. Segundo Nicolle, essas situações são, em grande parte, os motivos para que as mulheres lésbicas ou bissexuais com vulva estejam deixando de ir a atendimentos médicos, aos espaços de saúde e de cuidar da sua saúde sexual de si próprias e de suas parceiras, o que representa o terceiro e último nível da cadeira de desinformação.

Cartilha produzida pela publicitária também aborda a importância de conhecer sua vulva para saber quando ir a um profissional de saúde. Foto: Arquivo Pessoal

De acordo com Nicolle, o ‘Velcro Seguro’ não é voltado para homens transexuais que também possuam vulva porque eles possuem “sexualidades, práticas sexuais e questões de identidade que não são as mesmas das mulheres lésbicas e bissexuais com vulva”. “Embora nós tenhamos o órgão sexual e algumas práticas sexuais semelhantes, elas não são o que determinam essa necessidade. É justamente por isso que eu faço esse direcionamento das informações para essas mulheres com vulva, porque existem aspectos que nós não nos utilizamos e eles se utilizam”, disse. A publicitária pontua que existe atualmente uma cartilha completa voltada exclusivamente para homens transsexuais.

Nicolle ressalta que seu guia busca também legitimar a identidade de mulheres lésbicas e bissexuais com vulva. “A gente não tem um material específico e isso é muito sintomático do apagamento de mulheres que se relacionam com mulheres. Então, há uma importância simbólica desse material”.


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