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2 de novembro de 2019
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11:52

Óleo no Nordeste: ‘O desmantelamento da política ambiental reflete nessa falta de resposta’

Por
Sul 21
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Petróleo cru atinge o litoral nordestino desde o final de agosto. Foto: Diego Nigro/SEI/Fotos Públicas

Annie Castro

Somente um mês após os primeiros relatos de manchas de óleo no litoral nordestino do Brasil, o presidente Jair Bolsonaro (PSL) determinou uma investigação sobre o desastre, que já é considerado o maior crime ambiental em extensão da história do país. Desde o final de agosto, manchas de petróleo cru avançam pelo Nordeste, atingindo uma faixa de mais de 2 quilômetros da costa nordestina, 98 municípios e quase 300 localidades em nove estados da região, segundo a última atualização do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama).

Nas primeiras manifestações públicas que fez sobre o vazamento de óleo, Bolsonaro afirmou que se tratava de um ato criminoso e que o óleo não era responsabilidade do Brasil, uma vez que estudos detectavam que o material não era produzido por nenhum poço brasileiro. “Pode ser algo criminoso, pode ser um vazamento acidental, pode ser um navio que naufragou também. Temos, no radar, um país que pode ser o da origem do petróleo e continuamos trabalhando da melhor maneira possível”, declarou o presidente na época.

As manifestações que buscavam apenas encontrar um culpado também partiram do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, que chegou a acusar o Greenpeace, uma Organização Não Governamental (ONG), de ser responsável pelo vazamento de petróleo. Porém, nesta sexta-feira (1º), a Polícia Federal afirmou que a embarcação grega Bouboulin é a principal suspeita de ser a responsável pelo derramento do óleo e iniciou uma operação para investigar o navio. De acordo com informações, a embarcação teria atracado na Venezuela em 15 de julho e depois de três dias seguiu para Singapura, via África do Sul.

Além da manifestação tardia sobre o tema, o governo Bolsonaro também demorou para acionar o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional (PNC) que contém orientações de como lidar em situações de vazamento de petróleo ou gás. Limitado somente ao Ministério do Meio Ambiente, ao Ibama, à Marinha e Agência Nacional do Petróleo (ANP), o PNC deveria ter sido acionado em 2 de setembro, mas o MMA só o acionou em 11 de outubro.

Outra ação do Governo Federal diante do desastre aconteceu em 21 de outubro, quando o vice-presidente Hamilton Mourão informou que a 10º Brigada de Infantaria Motorizada, sediada em Recife, atuaria como reforço na limpeza das regiões atingidas pelo óleo. Desde o início do vazamento, moradores locais e voluntários estão realizando multirões para recolher as manchas de óleo das praias nordestinas.

Para a oceanógrafa, pesquisadora e professora do Instituto de Oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Tatiana Walter, a demora do governo Federal para se manifestar sobre o vazamento, o tom de culpabilização nas falas presidenciais e a ausência de ações efetivas para conter o avanço do óleo fizeram com que o desastre ambiental aumentasse de proporções e continuasse avançando, passando a atingir mais praias e chegando até mesmo em regiões sensíveis, como áreas de preservação ambiental – até o momento, o óleo já atingiu 14 unidades de conservação federais.

“Precisamos de uma ação clara, independente da responsabilização sobre a origem do óleo, porque esse é outro processo. Começar a conter o óleo é uma ação que demanda uma centralidade, por isso que ela é de responsabilidade do nível federal, porque precisa de alguém organizando esses processos e definindo quem vai fazer o que e, inclusive, as estruturas necessárias para isso”, afirmou em entrevista ao Sul21 a oceanógrafa, que de 2004 a 2009 integrou a equipe técnica da Coordenação de Licenciamento Ambiental de Exploração de Petróleo e Gás do Ibama.

Óleo já afetou mais de 90 municípios nordestinos. Foto: Felipe Brasil/Fotos Públicas

De acordo com Tatiana, o Brasil possui diversos instrumentos que poderiam ter auxiliado na contenção do óleo, mas eles não foram utilizados pelo governo federal. Dentre eles, está o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo e a Lei 9.966/2000, que dialoga sobre a prevenção, o controle e a fiscalização da poluição causada por lançamento de petróleo ou gás nas águas brasileiras e demais regras relacionadas a esses acidentes.

Tatiana afirma que o Plano Nacional de Contingência funciona como uma “defesa civil do mar” e existe para ser acionado pelo governo em casos de manchas órfãs, ou seja, quando não se sabe a origem do óleo ou qual empresa é responsável pelo vazamento, como era o caso do derramamento no litoral nordestino até então, ou de acidentes que tomam proporções muito grandes, extrapolando as medidas de emergência das empresas.

A pesquisadora também relata que outro instrumento previsto na legislação para casos de poluição por petróleo são o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, em que cada secretaria de meio ambiente dos estados possui uma responsabilidade sobre sua zona costeira, e as Cartas de Sensibilidade ao Derramamento de Óleo, que existem em regiões do litoral brasileiro e também costumam estar disponíveis para a população por meio do site do MMA. Segundo Tatiana, esses documentos explicam quais ações são necessárias para retirar óleo de ambientes distintos.

Embora existam medidas que poderiam ter sido usadas pelo governo Bolsonaro para conter o óleo, Tatiana pontua que não há por parte do poder federal uma coordenação principal para lidar com o desastre. “O papel do Ministério do Meio Ambiente é coordenar esse processo, mas isso não está acontecendo. Então, o que estamos vendo é isso: coordenações locais, voluntários se expondo a esse risco, muita perda de biodiversidade, universidades trabalhando no mapeamento das manchas. A coordenação nacional seria capaz de controlar o vazamento, mesmo sem saber de onde vem a mancha”, diz.

Neste desastre, a ausência governamental se faz também na falta de auxílio à população que está atuando diretamente na remoção do óleo das praias nordestinas, se expondo ao entrar em contato direto com o petróleo cru. “Você precisa orientar a população sobre para onde os pescadores vão, sobre que equipamentos eles [voluntários] vão usar, ter treinamentos para as pessoas se protegerem, mas nada disso foi feito”, pontua a pesquisadora.

Tatiana ainda afirma que todos esses instrumentos não foram utilizados porque muitos dos conselhos criados para atuar nesse tipo de emergência foram desestruturados ou extintos desde o início do governo Bolsonaro. “Vivenciamos um processo de desmantelamento da política ambiental que reflete nessa falta de resposta”.

Leia a entrevista completa:

Sul21: Desde o final de agosto, um vazamento de petróleo cru atingiu o Nordeste, afetando uma faixa de mais de 2 mil quilômetros da costa brasileira e quase 80 municípios nordestinos. Como esse óleo afeta o meio ambiente e quais os impactos ambientais desse vazamento?

Tatiana Walter: O petróleo, ao vazar, tem uma parte que é densa e que se mantém migrando na água, uma parte evapora para o ar e uma parte, de certa forma, dissolve na coluna d’água e vai para o fundo. Gera mortandade nos animais marinhos que estão em contato com esse óleo porque grudou na pele ou porque tiveram contato por esses contaminantes que se dissolveram na água ou que evaporaram no ar. Mas nem sempre gera mortandade, também podem ocorrer processos que podem refletir sobre processos fisiológicos dos animais e das plantas, como na reprodução, por exemplo.

Um impacto relevante é a mortandade de espécies, mas também temos impactos de contaminação dessas espécies, falando mais da parte biológica. Essa contaminação afeta o ciclo de vida dessas espécies e também gera perda de biodiversidade. Quando estamos falando do litoral nordestino, estamos falando da área marítima com maior biodiversidade no Brasil. Estamos falando dos recifes de corais mais conservados e de maior relevância no litoral do Atlântico Sul.

Sul21: Por que o petróleo cru causa todos esses efeitos?

Tatiana Walter: Ele é um composto químico e tem uma coisa da densidade dele, que é do óleo que gruda e asfixia e você está tratando de um composto que é muito químico, que tem muitos contaminantes, muitos metais. Esses contaminantes vão sendo incorporados fisiologicamente, como acontece com a gente mesmo, imagina se a gente tomasse um banho de petróleo, por exemplo. Aquilo tudo fica grudado em você.

Vazamento é considerado o maior crime ambiental em águas brasileiras. Foto: Salve Maracaípe/Fotos Públicas

Sul21: O governo Brasileiro se pronunciou apenas após 49 dias do registro da primeira mancha de óleo e desde então pouco tem sido efetivamente feito. Além da demora em se manifestar, o governo também não acionou o Plano Nacional de Contingência de Incidentes com Óleo. Quais os possíveis efeitos da demora de ações para conter o avanço do óleo?

Tatiana Walter: Na verdade, o Brasil conta com uma base legal bem estruturada, com normas bem definidas em relação a essa questão e também estão ancoradas em normativas internacionais. Temos duas discussões nessa questão do vazamento. Uma das discussões é a origem ou a responsabilidade por esse derramamento, que pode ser acidental ou incidental, pode ser responsabilização de intenção ou não intenção, mas o óleo está presente. Chamamos esse tipo de acidente de mancha órfã porque não sabemos a origem do mancha. Então, uma parte é investigar a origem desse óleo. A outra parte, que é para além da responsabilização, é a responsabilidade do governo do Federal de conter essa mancha, no caso a autoridade nacional responsável é o Ministério do Meio Ambiente.

Mas nisso, a gente precisa de uma ação clara, independente da responsabilização sobre a origem do óleo, que é outro processo. Começar a conter o óleo é uma ação que demanda uma centralidade, por isso que ela é de responsabilidade do nível federal, porque precisa de alguém organizando esses processos e definindo quem vai fazer o que e, inclusive, as estruturas necessárias. O Ministério do Meio Ambiente ou o Ibama deveriam ter disponíveis essas estruturas e o mínimo que você espera é que se crie uma sala de emergência, uma estrutura que coordene esse processo de ações. Poderia também ter sido mobilizada uma série de atores, como as empresas petrolíferas, que têm estruturas e expertise com o assunto, o Ibama, que também tem expertise, e a população local. Só que nesse último caso, você precisa orientar a população sobre para onde os pescadores vão, sobre que equipamentos eles [voluntários] vão usar, ter treinamentos para as pessoas se protegerem, mas nada disso foi feito.

Mais de um mês depois, o Governo se manifestou, mas as manifestações foram muito mais no sentido de responsabilizar alguém de forma bastante leviana do que de atuar para tentar conter. Até esse momento não está contendo e, por exemplo, a gente não encontra informações transparentes, a gente não encontra dados efetivos. Uma das coisas que são mais flagrantes é que o Ibama tem uma unidade com pessoas com muita expertise porque são pessoas que fazem simulados, que entendem de correntes, que entendem dos tipos de óleo e de para onde esse óleo vai, e que poderiam estar sendo acionadas na inteligência desse processo para, inclusive, acionar onde estão as estruturas do Nordeste, mas elas não foram acionadas até agora. Aí esse acidente vai aumentando a proporção, que é o que está acontecendo, e vai chegando nas áreas mais sensíveis.

Foto: Adema/Governo de Sergipe

Sul21: Como funciona o Plano Nacional de Contingência para Incidentes de Poluição por Óleo em Águas sob Jurisdição Nacional, que deveria ter sido acionado pelo Governo Federal desde o dia 2 de setembro?

Tatiana Walter: O Plano Nacional de Contingência trata de uma estrutura para dar conta de uma resposta de imediato sobre isso e também de equipamentos. Temos a barra legal que prevê o Plano Nacional de Contingência e todos os regramentos relacionados a acidentes com petróleo e gás numa lei chamada 9966/2000, e a chamamos de Lei do Óleo. Então, desdobram dessa Lei os planos. A estrutura é mais ou menos assim: você tem uma plataforma, você tem um navio que tem um plano de emergência individual. Se ocorre um acidente, a empresa responsável por aquela plataforma precisa ter uma estrutura de emergência para responder corretamente e conter o óleo. Quando você tem várias plataformas em uma área e o acidente de uma extrapola o programa de emergência, você aciona a área, que é regionalizada.

Você também tem um processo que é o Plano de Contingência Nacional que é para ser usado exatamente nesses casos de manchas órfãs ou de acidentes que extrapolam a responsabilidade de uma empresa. Nesse caso é como se estivéssemos falando de uma defesa civil de mar e, então, da mesma forma que falamos ‘vai ter uma enchente’ e há toda uma estrutura para tirar as pessoas, para agir, para conter o acidente e diminuir o risco, com acidentes de óleo temos o Plano. Não acioná-lo faz com que cada vez mais áreas, mais unidades, mais recifes e mais manguezais estejam recebendo esse óleo.

Sul21: Que outras medidas que já existem poderiam ter sido utilizadas para conter o óleo?

Tatiana Walter: Outro instrumento previsto na legislação é o que a gente chama de Cartas de Sensibilidade ao Derramamento de Óleo, que existem em todo o litoral brasileiro em três níveis de escala. Essas cartas são mapas e explicam que, por exemplo, se chegar o óleo em uma praia de areia você retira aquela camada de areia e limpa a praia, agora se o óleo chega no manguezal aquilo prende no mangue e você não consegue tirar; no caso de um recife de coral, o óleo faz um processo como se fosse um soterramento. Quando o óleo está vindo, você vai pegando as barreiras e vai jogando para essas áreas onde é mais fácil de lavar depois, como uma praia de areia ou uma rocha. Essas cartas existem e todo o Nordeste tem essas cartas, mas elas estão não estão sendo utilizadas.

Só que nada disso foi acionado porque tudo está sendo desestruturado desde o início de 2019. Temos conselhos previstos para esse tipo de emergência, só que muitos foram desestruturados ou extintos. Então, vivenciamos um processo de desmantelamento da política ambiental que reflete nessa falta de resposta. As medidas que existem não estão sendo utilizados porque não existe uma inteligência, uma coordenação principal. O papel do Ministério do Meio Ambiente é coordenar esse processo. Então, o que estamos vendo é isso: coordenações locais, voluntários se expondo a esse risco, muita perda de biodiversidade, as universidades estão trabalhando no mapeamento das manchas. A coordenação nacional não existe e essa ação seria capaz de controlar o vazamento, mesmo sem saber onde está a mancha.

A população local tem atuado diretamente na retirada do óleo das praias atingidas. Foto: Léo Domingos/Fotos Públicas

Sul21: A população local tem atuado diretamente na retirada do óleo das praias e, na maioria das vezes, sem o equipamento adequado para esse processo. Quais são os possíveis efeitos do contato direto com o óleo cru?

Tatiana Walter: Contaminação. Podem ter câncer, principalmente de pele, podem desenvolver uma reação alérgica. [O contato] gera impactos que podem ser sérios dependendo da exposição e do tempo dessa exposição. Tem outra coisa que é a exposição na água, porque, às vezes, a água aparenta não estar com óleo porque se tirou a camada maior, mas, como uma parte dele sempre persiste, a pessoa pode estar em contato com esse resto de óleo depois.

Sul21: Nas regiões atingidas pelo óleo as populações locais têm uma economia voltada para as praias, a pesca, etc. Quais os impactos socioeconômicos do vazamento?

Tatiana Walter: As duas principais atividades econômicas impactadas são a pesca e o turismo. A gente tem na pesca uma dependência desses recursos, das espécies de peixes e crustáceos que estão sendo contaminados. Com isso, você tem uma perda de renda. Ainda, esses animais podem estar contaminados para serem ingeridos, então as pessoas perdem a renda e perdem uma fonte de alimento. Também, se formos pensar na pesca como patrimônio cultural estamos impactando uma cultura, o que é bastante grave.

Outro elemento é o do turismo, porque quem viaja para uma praia contaminada, suja de óleo? E tudo isso está acontecendo no início do verão. Provavelmente isso gere impactos sérios nos meses seguintes porque muitas pessoas com certeza vão deixar de ir para essas regiões que foram afetadas.

Sul21: Você havia mencionado que um dos impactos é a perda de biodiversidade. O óleo já atingiu inclusive áreas de preservação ambiental. Quais os impactos ambientais nesse caso?

Tatiana Walter: Já atingiu muitas áreas de preservação, mas uma que é bastante enfática é a [Área de Proteção Ambiental] APA Costa dos Corais, em Pernambuco, que é recife de coral. Agora também a gente está com indícios de manchas chegando no banco de Abrolhos, que é um recife de coral muito expressivo e maior que o parque. Às vezes as pessoas falam ‘ah, mas não chegou no parque’, mas o parque é um pedaço de um banco que é maior e que já tem indícios de que já está sendo afetado pelo óleo. Os corais são super frágeis e dependem de uma água muito transparente e processos ecológicos muito equilibrados. Então, o óleo pode se sobrepor aos corais e asfixiá-los, porque os corais são criaturas vivas também, e os animais que vivem ali. Podemos ter perdas significativas desse ambiente coralíneo, de morrerem e não se recomporem mais.

Com isso a gente tem a perda de biodiversidade, que tem um valor em si. Também é uma questão de que temos ali espécies que estão ameaçadas de extinção, espécies que são endêmicas, que são aquelas que só ocorrem em um determinado local e que, por isso, só tem ali no campo de Abrolhos. Se tiver uma mortandade alta por causa do óleo, podemos estar perdendo-as. Tem também toda uma discussão do papel dos oceanos em oxigenar e melhorar a qualidade do ar.


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