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23 de novembro de 2019
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11:21

Há 50 anos, Uruguai enfrenta déficit de moradias com Estado financiando e oferecendo terras

Por
Luís Gomes
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Gustavo González  fala sobre o modelo de cooperativas habitacionais por ajuda mútua uruguaio | Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes

Moradia é um direito ou uma mercadoria? Se a resposta certa for a última, não há nada que movimentos sociais e governos possam fazer para erradicar o déficit habitacional, pois este é um produto do modelo capitalista. Mas, se a resposta for a primeira, é preciso, e possível, buscar modelos alternativos para a construção de moradias, especialmente para as camadas populares.

A partir desse questionamento, o uruguaio Gustavo González participou nesta semana de uma audiência pública promovida pela Comissão de Segurança e Serviços Públicos da Assembleia Legislativa em que apresentou o modelo de cooperativismo habitacional adotado no Uruguai nos anos 1960. Ex-secretário e ex-presidente da Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua (FUCVAM) e representante da Organização das Nações Unidas (ONU) para o tema da habitação, Gonzáles concedeu antes do evento uma entrevista compartilhada entre a reportagem do Sul21 e do Brasil de Fato.

O grande diferencial do modelo uruguaio de cooperativas para programas habitacionais desenvolvidos no Brasil, como o Minha Casa Minha Vida, é que o governo oferece financiamento direto para que um conjunto de famílias possa construir um projeto habitacional, que pode ser um prédio ou um condomínio de casas, dependendo do projeto. No passado, algumas cooperativas reuniam centenas de famílias, mas, atualmente, o número foi limitado a um máximo de 50, sendo 12 o mínimo.

Além do financiamento, os governos municipais, são obrigados por lei, a disponibilizar carteiras de terras disponíveis para a construção de moradias populares que podem ser acessadas pelas cooperativas. González destaca, no entanto, que não bastaria ter criado fontes de financiamento e ter colocado terras à disposição se não tivesse ocorrido, concomitantemente, um processo de formação cidadã para garantir que as cooperativas fossem sobreviver ao longo do tempo. Algumas delas já têm quatro, cinco décadas de criação. Além das casas em si, há ginásios, creches, postos de saúde, bibliotecas e uma série de outras estruturas. “O segredo está que a cooperativa, quando termina a construção, deve seguir construindo comunidade. Se não, não consegue. O disparador, o que nos junta, é a necessidade de uma casa, mas aí tem que empoderar-se para ver que dá para fazer muito mais do que a casa”, afirma.

González destaca que esse processo é feito pela própria FUCVAM, que tem uma escola de formação política, que ajuda a orientar os cooperativados sobre o processo de conquista da terra, sobre os processos de construção de moradias e construção da comunidade, bem como sobre as implicações financeiras. O estado uruguaio financia a construção, mas membros de uma cooperativa, posteriormente, pagam valores mensais. Podem morar pelo tempo que for necessário e transferir para herdeiros, mas não são proprietários como no Brasil. Não podem vender. Caso decidam deixar uma cooperativa, são remunerados pela cota de participação que tem na cooperativa e a moradia recebe outro destino.

Confira a seguir a entrevista com Gustavo González.

González explica que o modelo surgiu na década de 1960, quando o Uruguai enfrentava uma crise social | Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21 – Como surgiram as cooperativas habitacionais no Uruguai?

Gustavo González: É uma origem muito interessante. O Uruguai tem uma forte tradição no movimento trabalhista e sindical, desde o princípio do século 20. Mas, na década de 60, há uma forte crise econômica, onde o governo do momento convocou uma comissão ministerial para discutir saúde, educação e moradia. Ali, uma equipe de técnicos progressistas começaram a ver dois temas centrais. Primeiro, o país precisava de uma lei nacional de habitação. Segundo, teria que haver um fundo estatal para financiar os setores populares. Nesse momento, a indústria da construção, o capital, passa também por uma forte crise, então se viram interessados na existência de um fundo nacional de habitação para impulsionar a construção. Mas os técnicos comprometidos com o movimento popular tinham a preocupação sobre o que ia acontecer com as trabalhadoras e os trabalhadores se apenas a indústria tivesse acesso ao fundo. Então, começaram a discutir a possibilidade de criar um modelo de cooperativismo habitacional. O primeiro segmento da sociedade que adota o cooperativismo é o movimento sindical.

Em 1968, um ano muito particular para o Uruguai, se aprova a Lei Nacional de Habitação, com o fundo. Um capítulo dessa lei tem a cooperativa de habitação por ajuda mútua. Rapidamente, as pessoas começam a se agrupar. A lei previa dois tipos de cooperativas. Territoriais, ou seja, em qualquer bairro, uma paróquia, um lugar em que as pessoas poderiam se juntar para formar uma cooperativa. Ou por ramos de produção, os metalúrgicos, trabalhadores da construção, têxtil, etc. São feitas três experiências pilotos, porque muitos parlamentares questionavam o financiamento de cooperativas. ‘Gente pobre? Vai roubar, vai levar o dinheiro para casa, não vai poder construir’. Mas, o projeto de lei prevê que a cooperativa tem que ter um instituto de assistência técnica. Se o estado tem que investir, temos que investir bem. Então, os técnicos também se juntaram para assessorar cooperativas. Foram feitas as três primeiras experiências no final da década de 1960, o que gerou menor custo, localização melhor e maior satisfação das pessoas em morarem nessas cooperativas. Então, começou a se expandir. E hoje temos mais de 500 cooperativas em todo o país.

É um movimento que completa 50 anos no ano que vem. Mais de 120 mil pessoas vivem em cooperativas. E tem três particularidades fundamentais. Não se pode resolver o problema de habitação se não se empodera as pessoas do problemas. O estado que coloque dinheiro, a empresa que lucre, as pessoas que façam habitação. Eu não conheço empresário que não queira fazer dinheiro, é lógico. Mas, a grande questão nacional e internacional é: a moradia é um direito ou uma mercadoria? Se é uma mercadoria, não falamos mais. Não pode resolver para os pobres se é uma mercadoria. Se é um direito, como a educação, como a saúde, então o conjunto do estado, como síntese da sociedade, tem que financiar. O segundo problema que tem a moradia é em que terra vai construir. O problema do solo urbano é muito grande. Se os países da América Latina seguirem as coordenadas dos organismos multilaterais, vai ter que falar com a Nasa para que as pessoas flutuem. Flutuem, porque não há terra. A terra é a que está aí, não é banana, não é manga [que se pode plantar e se renova], também tem que ser concedida para habitação. Tem um elemento fundamental no Uruguai, o estado tem carteira de terra. Terceiro elemento, capacitação das pessoas. Para ser cooperativado, tem que formar as pessoas. O que é uma cooperativa? É uma empresa coletiva, de todos, mas uma empresa. Tem que construir bem. Como compete com o capital, tem que ser melhor que o capital. Se eu mostrar fotos para vocês, vão dizer que ali não mora nenhum operário, vão dizer que mora a classe média alta. Claro, só a intermediação que ganha uma empresa é 40% do custo de moradia. Isso nós colocamos em habitação, rompendo com a intermediação. As pessoas mesmo constroem. Tem mão de obra contratada para instalações elétricas, sanitárias, mas nós temos os braços para trabalhar e a cabeça para pensar. Sem ideias, não vai vencer. É isso que tem que trabalhar com as pessoas. Se o estado dá moradia, dá moradia, dá moradia, sai e vende e moradia. Porque necessita, tem fome. Quarto elemento, a propriedade é coletiva. Se o estado financia a habitação, você tem direito até o último dia da sua vida de ter a moradia, mas, se você tem um capital do estado, não pode sair a vender no mercado sua moradia.

Sul21 – Elas são totalmente financiadas pelo Estado?

Gustavo González: Totalmente. É uma lei nacional de habitação. Dentro da lei, um capítulo é para cooperativas.

Sul21 – Como funciona a carteira de terras? Um dos principais problemas do Minha Casa Minha Vida (MCMV) é que a terra disponível para construir os condomínios do programa, em geral, estão periferias, em locais distantes. Em Porto Alegre é assim.

Gustavo González: A lei obriga o estado a ter solo urbano para conjuntos de habitação. Tudo isso que estou falando, também precisou de muita luta. Os conservadores não vão dar, o movimento popular tem que lutar pela conquista de uma lei, de um fundo. O que passa no Brasil? O MCMV deu moradia às pessoas? Sim. Resolveu o problema de teto para muita gente? Sim. Mas as pessoas se empoderaram do MCMV? Ninguém se empodera como quem constrói o seu.

Sul21 – Outro problema do Brasil é que não existem políticas moradias no âmbito das cidades, ou são insignificantes. O que existia, que era o MCMV, era federal, vinha de cima para baixo. O que os municípios e as grandes cidades brasileiras poderiam pegar do exemplo uruguaio para implementar esse modelo de cooperativas?

Gustavo González: Falar de habitação é falar de políticas. Sem instrumentos políticos, não há solução. O capital tem uma virtude. Eles estudaram que as pessoas, em algum lugar, têm que construir. Tu tens que viver em algum lugar. E deixam que as pessoas vão para a periferia para construir a cidade. Então, os organismos multilaterais disseram: o estado não pode meter-se no financiamento, o mercado deve regular tudo que é habitação. Mais quais são os resultados? Há 30 anos do Conselho de Washington, os déficits quantitativos e qualitativos em todos os países da América Latina, menos no Uruguai, aumentaram em 35%. Conclusão, o mercado não resolveu nada. Nada. Complicou mais o problema. Mais pobres na periferia, mais assentamentos, menos moradia. Então, precisa trocar essa política. É fácil? Não, é complexo, tem que trabalhar muito. Tem que comprometer a academia, ter técnicos comprometidos com o movimento popular, formar lideranças, ter instrumentos políticos. As prefeituras, por lei, no Uruguai, são obrigadas a ter carteira de terras. E agora conquistamos carteira de imóveis. Moradias velhas, mas que têm todos os serviços. Então, fazemos a recuperação por meio de cooperativas. A cidade velha de Montevidéu tem mais de 27 cooperativas de habitação em moradias que estavam destruídas.

O uruguaio explica que as cooperativas não são voltadas apenas para construir novos imóveis, mas também para recuperar antigas habitações | Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21 – E as próprias cooperativas continuam atuantes e fazendo esse trabalho de recuperação das moradias?

Gustavo González: Claro.

Sul21 – É um processo que nunca parou?

Gustavo González: Nunca parou. Teve mais ou menos apoio de acordo com a vontade política do governo, mas sempre construímos.

Sul21 – Qual é a verba destinada do programa habitacional destinada para as cooperativas?

Gustavo Gonzalez: Nós agora temos 22% do orçamento de habitação para cooperativas. De todo o orçamento federal. Já chegou a ser 40%.

Sul21 – Como funciona o programa para as famílias?

Gustavo González: Nenhuma família paga mais do que 20% da renda familiar, está na lei. Assim garante que vai poder amortizar. Mas, se perde o trabalho, ou tem baixa salarial, tem subsídio do estado. Primeiro, fundo de socorro dos cooperativados. Juntamos dinheiro. ‘O Gustavo tem problema, vamos discutir em assembleia e vamos ajudar’. Depois ele tem que devolver ao fundo, mas não perde a moradia. Agora conquistamos que o Estado subsidie, mas por mais de 40 anos tivemos fundos de socorro. É um modelo para as camadas mais humildes da população, para os trabalhadores, trabalhadoras, economia informal, mas é um modelo essencialmente educativo, de formação. Sem formação, não há cooperativa.

Sul21 – Como se define quem pode acessar e para quem vai a verba?

Gustavo González: No Uruguai, o fundo já é muito conhecido. Então, as pessoas quando têm problema de moradia, não tem capacidade de poupança, dizem: ‘organizemos uma cooperativa’. E aí começa o processo.

Sul21 – Tu acha que esse modelo pode ser reproduzido em outros países?

Gustavo González: Está demonstrado que o modelo não é só para o Uruguai. Eu estive há quinze anos na América Central. Agora tem cooperativas na Nicarágua, Guatemala, El Salvador, Filipinas, Sri Lanka. África, Ásia e América Latina. Antes se dizia: ‘Isso é para os uruguaios, no meu país não querem’. Está bem que nós ganhamos de vocês em 1950, tudo isso está bem, mas não somos um fenômenos (risos). Isso é para todos os povos. Agora, foi feito conquistando os instrumentos, formando as pessoas. Hoje, há cooperativas nesses países centro-americanos que são muito diferentes do Uruguai, tem maiorias índices de pobreza, muitas áreas rurais. No entanto, estão fazendo. O tema é que tem que conquistar os três elementos, os instrumentos políticos para que se desenvolva o modelo e depois trabalhar para a formação das pessoas.


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