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11 de novembro de 2019
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21:39

‘Eles vão enxugando para que morra’: direções se mobilizam por escolas para crianças em vulnerabilidade

Por
Luís Gomes
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Escola de Ensino Fundamental Ayrton Senna vive há anos a ameaça de fechamento | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

A Comissão de Educação da Assembleia Legislativa realizou nesta segunda-feira (11) uma audiência pública para debater a situação das “escolas abertas” no Rio Grande do Sul, que há anos convivem com a ameaça de fechamento. O objetivo do encontro, solicitado pelos representantes das escolas Ayrton Senna da Silva e Cruzeiro do Sul, era cobrar um posicionamento claro do governo do Estado e da Secretaria de Educação (Seduc) sobre o futuro dessas instituições, mas o Executivo não enviou representante para a audiência.

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As escolas abertas da rede estadual caracterizam-se por receber alunos em qualquer época do ano e não fechar durante as férias. Além disso, contam com turmas menores, de 10 a 15 alunos em média. Isso ocorre porque a maioria das crianças acolhidas por elas são encaminhadas pelo Ministério Público ou pelo Conselho Tutelar em situação de alta vulnerabilidade. Em geral, isso se traduz em alunos com histórico de violência, repetência ou defasagem cognitiva, que não conseguiram acompanhar as aulas nas escolas regulares. Atualmente, há apenas quatro delas no Estado, duas em Porto Alegre, uma em Cruz Alta e outra em Santa Maria. Nas décadas de 1980 e 1990, eram 12 as escolas que operavam de forma diferenciada.

Presidente da Comissão de Educação da Assembleia, a deputada Sofia Cavedon (PT) diz que vem acompanhando a situação das escolas abertas desde que era vereadora de Porto Alegre. Ela destaca que a audiência pública foi convocada com o objetivo de discutir a situação das escolas, tanto do ponto de visto das necessidades, como do ponto de vista legal. “A audiência pública é para fortalecer a identidade das quatro escolas, ver as necessidades, se precisa criar uma atualização de legislação, se a Seduc aceita incluir num programa de escola integral”, diz.

Oficialmente, o governo nega que haja qualquer plano de fechamento das escolas abertas para 2020. Ainda assim, representantes das instituições de Porto Alegre, mais os diretores das escolas Paulo Freire, de Santa Maria, e Sonho de um Menino, de Cruz Alta, se reuniram no início de setembro para tratar do encerramento das atividades e divulgaram uma carta aberta à população alertando para essa possibilidade.

Diretor da escola EEEF Ayrton Senna da Silva, localizada no bairro Santo Antônio, em Porto Alegre, Adroaldo Machado Ramos diz que a possibilidade de fechamento da escola vem sendo discutida desde 2018. Ele conta que, em 23 de fevereiro do ano passado, uma sexta-feira, recebeu um telefonema da Secretaria de Educação dizendo que a escola receberia uma visita na semana seguinte para encaminhar o processo de fechamento. Ramos firma que a justificativa do governo era de que o custo da escola seria muito alto.

Diretor Adroaldo Machado Ramos conversa com pais durante a reunião sobre a possibilidade de fechamento da escola em 2018 | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Durante o final de semana, convocou pais, representantes da comunidade, do sindicato dos professores (CPERS) e a imprensa para um movimento contrário. Diante da mobilização e da intervenção do Ministério Público, a Seduc recuou e não interferiu no início do ano letivo. “A comunidade não deixou fechar”, diz.

No entanto, ao final do ano, quando Ramos foi tentar a abertura de novas turmas para 2019 de primeiro e segundo ano do Ensino Fundamental, não recebeu autorização. “O que a Seduc fez? Não permitiu que eu abrisse turma para 2019. Eu teria que continuar só com as turmas existentes em 2018”, diz. “Eu tenho um pedido de abertura de turma inserido no sistema, que está lá para ser analisado, e não me liberam. Ou seja, estou numa situação em que tenho demanda e a Seduc não me deixa suprir. Isso é um fechamento indireto. Ano que vem eu vou ter só três turmas [se não for liberada a abertura de novas], quando poderia ter seis”, afirma.

Jaqueline Pontes Ferreira, diretora EEEF Cruzeiro do Sul relata que as primeiras informações sobre o possível fechamento da escola surgiram no início do governo de José Ivo Sartori, em 2015. “Eles vierem com tudo para fechar. Chegou, inclusive, uma comitiva da Seduc na época anunciando o fechamento da escola, para os alunos e para a direção”, diz.

A diretora conta que isso ocorreu no momento em que a maioria dos professores da escola estavam em greve. Com a notícia do possível do fechamento, houve uma suspensão da paralisação da Cruzeiro do Sul e uma forte mobilização envolvendo a comunidade escolar, o que fez com que o Seduc recuasse naquele momento. Desde então, ela diz que a escola vem recebendo informações e “ameaças” que levam a crer que a intenção de fechar permanece.

No entanto, ela destaca que o governo Leite tem adotado um posicionamento diferente. Em vez de um discurso de fechamento, promove cortes que tendem a levar à inviabilização da escola. “Nos retiraram funcionários, retiraram o turno vespertino. Nós tínhamos um trabalho diferenciado com oficinas ministradas com profissionais das áreas de artes e culinária, nos tiraram esses recursos humanos. Eles vão enxugando, enxugando, para que a escola morra”, diz.

Manifestação contra o fechamento da escola Vila Cruzeiro do Sul em 2016 | Foto: Reprodução/ Facebook

Jaqueline afirma que, no início do ano, a Seduc vetou a abertura de uma turma de primeiro ano na Cruzeiro do Sul, o que foi revertido depois de nova mobilização da comunidade escolar. Ao fim, conseguiram que uma turma fosse aberta. “Se não abre uma turma de primeiro ano, não vai ter alunos para o segundo, e assim vai morrendo a escola. Nós tivemos que brigar para poder abrir. Então, o discurso não diz que vão fechar, mas, na verdade, estão forçando a situação para que a gente fique sem alunos, para que a gente não tenha profissionais trabalhando. Nós tivemos falta de professor de terceiro e quarto ano por quase três meses. Tivemos que encaminhar uma denúncia para o MP para que Seduc encaminhasse esses professores”, afirma.

A Cruzeiro do Sul conta atualmente com cinco turmas pela manhã — 1º, 6º, 7º, 8º e 9º anos — e quatro pela tarde — 3º, 4º, 5º e 6º anos. São cerca de 100 alunos divididos nestas nove turmas. Quando a escola contava com aulas noturnas, no ensino de jovens e adultos, já foram quase 200.

Presidente da Frente Parlamentar Contra o Fechamento de Turmas e Escolas da Rede Pública Estadual, a deputada Juliana Brizola (PDT) destaca que a frente tem percebido que o governo vem adotando o modus operandi de precarizar escolas antes de fechá-las oficialmente. “Lamentavelmente, o governo trata nossos estudantes apenas como números e desconsidera a importância que a escola aberta possui na vida de cada um. Como presidente da Frente Parlamentar Contra o Fechamento de Turmas e Escolas Públicas, recebemos inúmeros relatos e percebemos que, antes de fechar uma escola, o governo provoca o processo de fechamento, sucateando a mesma, extinguindo turmas, turnos, até ter a justificativa para fechar por completo.O governo fecha escolas sob o pretexto da economicidade, mas esquece que caro mesmo é o preço da ignorância, já diria Brizola”, afirma.

Escolas abertas ainda são necessárias

Promotora Regional de Educação de Porto Alegre, Danielle Bolzan Teixeira diz que o Ministério Público do Rio Grande do Sul vem acompanhando a situação das duas escolas abertas de Porto Alegre há alguns anos e que, no momento, não tem nenhuma informação de que as escolas estejam ameaçadas de fechamento. “Tenho uma notícia recente, um inquérito ainda está em andamento, da escola Cruzeiro do Sul, e todos da escola Ayrton Senna já tinham sido arquivados. Agora veio uma nova notícia encaminhada pelo diretor da escola, só que não tem nada concreto”, diz. “A gente trabalha aqui averiguando fatos concretos, uma notícia efetiva. Atualmente, eu não tenho a informação de que tenha algo concreto, sendo determinado ou pensado pela Seduc para o próximo ano. Se existir, a gente vai tratar dessa atuação”.

A promotora destaca, no entanto, que o trabalho do MP vai no sentido de que não sejam necessárias escolas especializadas em acolher determinados tipos de aluno, mas sim que toda a rede estadual de ensino esteja capacitada para atender todos os alunos e sejam inclusivas, independente de ser um aluno com deficiência, encaminhado pela rede de proteção social ou que esteja cumprindo medida socioeducativa.

“Essa experiência das escolas abertas foi muito importante num período em que as escolas tinham um perfil, digamos assim, nada acolhedor e nem a legislação dava os meios para que fossem. Então, todo o trabalho do MP, e temos projetos em relação a isso de correção de fluxo, é de que as escolas atendam adequadamente qualquer aluno, independente das suas circunstâncias. O foco do MP não é criar espaços diferenciados para alunos diferenciados, o que é um espaço que não deixa de ser discriminatório. O nosso trabalho aqui em Porto Alegre é para que qualquer criança que esteja acolhida ou cumprindo medida socioeducativa receba vaga e seja bem atendida na escola que é próxima da sua realidade, e não ficar sendo deslocado para a Cruzeiro do Sul ou para a Ayrton Senna”, diz.

A avaliação de Danielle Bolzan é que a rede regular do educação do RS tem sim capacidade de acolher as crianças que hoje são encaminhadas para as escolas abertas e que percebe isso na prática pela redução de demanda por vagas e abertura de turmas nas duas escolas. “Isso efetivamente está causando uma ausência de demanda específica para esse tipo de aluno na escola Ayrton Senna e na Cruzeiro do Sul. Isso eu posso dizer que a gente constata”, diz.

A promotora explica ainda que, em 2018, o MP apontou que o regimento das duas escolas abertas estava desatualizado e que precisavam se adequar à legislação atual, o que foi feito. Diante dessa readequação, um novo regimento precisa ser respeitado por pelo menos três anos, o que significa que nenhuma das duas escolas pode ser fechada até vencer esse prazo, que vai até o final do ano letivo de 2020. “Não pode haver uma alteração na forma de funcionamento da escola pelo menos nesse período”, diz.

Já a diretora Jaqueline avalia que as escolas regulares não têm as condições adequadas para abrigar as crianças atendidas pela Cruzeiro do Sul. “Essas crianças e jovens já passaram por outras escolas da redondeza. São crianças difíceis, que você tem que ter muita paciência, tem que ter uma diplomacia para lidar com elas, não pode ter enfrentamentos, porque senão eles se afastam da escola. Não que a escola não dê limites, a gente dá limites sim, mas o limite é com diálogo, é com conversa, tem que entender aquela criança, pelo que está passando, porque foi parar lá, porque não conseguiu estar em outra escola”, diz. “Não que as outras escolas sejam inferiores a nossa, não é isso que eu quero dizer, mas a nossa proposta dá condições da gente aprender a olhar essas crianças, enxergar cada uma, porque a gente tem 15 crianças em cada sala de aula”.

Audiência pública debateu a situação das escolas abertas nesta segunda | Foto: Celso Bender/AL-RS

Ramos, da Ayrton Senna, também defende que o trabalho das escolas abertas ainda é uma necessidade. “A nossa escola é só para crianças vulneráveis, que já passaram pela escola regular, que não deu conta”, diz. Ele exemplifica isso com o fato de que, no início desse mês de novembro, a escola recebeu quatro novos alunos que estavam em situação de violência familiar e foram recolhidos em um abrigo. “Tu vai botar essas crianças numa escola regular, onde vão ter a questão de aprovação, de ter que ter regularidade de presença? A minha preocupação é com essas crianças que a gente acolhe. O que vai acontecer?”, questiona.

Jaqueline avalia que, caso as duas escolas abertas em Porto Alegre fechassem, os alunos atualmente acolhidos por elas evadiriam a rede estadual de educação. “Olha, eu acredito que a grande maioria ali vai ser evasão escolar, porque as nossas escolas, infelizmente, os professores já estão cansados, já estão desestimulados com toda a situação que a gente vem passando no funcionalismo, parcelamento de salários, falta de valorização e ainda tu conseguir dar conta de problemas que fogem, às vezes não é nem à vontade, o professor até tem vontade, mas não tem forças e não tem apoio também. Dentro de uma escola, o que que tem? Não tem nem um orientador para te ajudar, o que seria fundamental, um apoio para esses alunos”, diz.

Sofia Cavedon acredita que o trabalho das escolas abertas ainda é necessário para acolher os casos de maior vulnerabilidade. “Não que as escolas regulares não possam, mas tem que ter um trabalho para que elas possam fazer esse acolhimento. As condições desses estudantes são diferenciadas. É interessante ter essa alternativa com espaços menores, mais flexíveis, com contra-turno e com um olhar diferenciado para os casos específicos que a rede de proteção envia, que são casos de violência, saída da rua, fracasso escolar”, diz. “Claro que nós queremos que todas as escolas no futuro tenham essa capacidade, todas as escolas deveriam ser especiais, mas não é assim. Tem escolas grandes, escolas com turmas cheias, que tem uma peculiaridade muito diferente”, complementa.

Durante a audiência, o representante de dois abrigos conveniados da Prefeitura de Porto Alegre, Deúbio Soldatti, fez coro às queixas dos diretores. “As crianças de nossos abrigos são o público típico das escolas abertas. Quando chegam até nós, já estão em estágio de profundo sofrimento. E as escolas abertas têm feito um trabalho fundamental para reconstruir o que foi tirado dessas crianças, que muitas vezes já passaram por mais de dez escolas regulares sem conseguirem se adaptar”, disse.

Maria Luísa Fermandes, mãe de dois alunos da Ayrton Senna, avaliou como inadmissível a possibilidade de fechamento. “Não sabemos onde vamos colocar nossos filhos se fecharem a escola, que tem preparo para tratar com crianças que têm todo o tipo de dificuldade”, apontou.

Após a audiência, Ramos disse que as comunidades escolares cobraram da Comissão de Educação da Assembleia Legislativa a elaboração de um documento para formalizar uma posição contrária ao fechamento das escolas abertas, objetivando sensibilizar o governador. Ele lamentou ainda a ausência da Seduc na audiência. “Eu acho que é mais um descaso da Secretaria de Educação não mandar nenhum representante em uma audiência em que se formaliza o pedido da comunidade como um todo”, disse.


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