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12 de outubro de 2019
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12:39

‘Se um superintendente do IPHAN está lá por questões políticas, ele aprovará os projetos politicamente’

Por
Sul 21
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O presidente do IAB, Nivaldo de Andrade Júnior, esteve em Porto Alegre para participar do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos. Foto: Luiza Castro/Sul21

Annie Castro

Na última quinta-feira (10), 18 entidades lançaram em Porto Alegre o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural como resposta a medidas adotadas pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL) na questão do patrimônio histórico nacional, como a realização de substituições de superintendentes estaduais do Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (IPHAN) em Goiás, Minas Gerais, Paraná e Distrito Federal e a diminuição de 72% no orçamento previsto para o Instituto em 2020.

As substituições preocuparam as diversas categorias profissionais que atuam na defesa do patrimônio histórico porque os novos superintendes são pessoas que não possuem experiência na área e haviam sido indicadas para o cargo por integrantes da base governista. “Os superintendes exonerados eram pessoas qualificadas, com formação em áreas vinculadas ao patrimônio. Eles foram substituídos por pessoas com indicações políticas, que não têm qualquer qualificação na área do patrimônio”, explica o arquiteto, presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB) e professor da Universidade Federal da Bahia, Nivaldo de Andrade Júnior.

O arquiteto esteve em Porto Alegre para participar da programação do 21º Congresso Brasileiro de Arquitetos, durante o qual foi lançado o Fórum. De acordo com Nivaldo, meses antes das substituições arbitrárias acontecerem o IAB havia sido avisado por fontes extraoficiais que elas iriam ocorrer. Na época, o Instituto enviou um ofício para os ministros Onyx Lorenzoni e Osmar Terra e para a presidência nacional do IPHAN. “Nunca houve qualquer resposta por parte dos ministros com relação a esse ofício. No caso do Paraná, por exemplo, a informação que a gente tinha é que, além do superintendente, iam trocar o coordenador técnico, que é o segundo cargo mais importante da superintendência. Essa substituição não aconteceu ainda, mas pode vir a acontecer”, relatou.

Um dos pontos levantados por Nivaldo acerca do impacto que a indicação de pessoas sem qualificação pode causar é que as substituições foram efetuadas em três estados que agregam seis dos 15 sítios brasileiros que integram a Lista de Patrimônio Mundial, definida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO).

De acordo com Nilvado, a indicação de pessoas sem formação ou experiência na área é preocupante porque são os superintendentes os responsáveis por aprovar ou não intervenções em áreas protegidas e em sítios ou edifícios tombados. “Em várias cidades do Brasil que possuem sítios tombados importantes o superintendente do IPHAN tem mais força que o prefeito. É o superintendente do IPHAN que tem o poder decisório sobre o que vai acontecer na cidade, porque são ele e a equipe dele que autorizam ou não outras intervenções. Se ele está lá por questões políticas e sem qualificações técnicas, ele aprovará os projetos politicamente e não do ponto de vista do interesse coletivo na conservação do patrimônio. ”.

A possibilidade de que os novos superintendentes atuem com base em interesses partidários e buscando a flexibilização dos processos de aprovação de licenciamentos para empreendimentos é um dos receios das entidades que compõem o Fórum, conforme Nivaldo: “O governo atual tem adotado em todas as áreas o discurso de que tem que liberalizar, diminuir as amarrar, facilitar as aprovações; que tem que dinamizar a economia a todo custo. Mas, como eu falei, no campo do patrimônio cultural, como ele está lidando com cidades históricas, sítios históricos urbanos, monumentos históricos, tudo tem que estar limitado à preservação dos valores culturais.”

Leia a entrevista na íntegra:

Sul21: Você poderia falar um pouco mais sobre o que motivou a criação do Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural?

Nivaldo de Andrade Júnior.: Participaram da criação do Fórum 18 entidades, não só de arquitetos, mas de várias categorias profissionais. São antropólogos, urbanistas, geógrafos, sociólogos, cientistas, gestores culturais e outros. Criamos este Fórum porque houve uma grande mobilização no último mês em decorrência da substituição dos superintendentes estaduais do IPHAN em estados importantes que concentram boa parte do patrimônio protegido brasileiro, como Minas Gerais, Goiás, Paraná e Distrito Federal. Nesses três casos, os superintendes exonerados eram pessoas qualificadas, com formação em áreas vinculadas ao patrimônio. Nenhum deles era arquiteto, mas isso não é uma questão corporativista. Eles foram substituídos por pessoas com indicações políticas, que não têm qualquer qualificação e experiência prévia na área do patrimônio, mas que são vinculadas a partidos e foram indicadas por deputados da base do governo. Entendemos que esses cargos precisam ser ocupados por especialistas, por pessoas de algumas dessas áreas que atuam no âmbito de patrimônio.

Em junho deste ano o IAB já havia enviado um ofício para o Ministro Onyx Lorenzoni, o ministro da Cidadania, Osmar Terra, e a presidente do IPHAN porque já sabíamos de fontes extraoficiais que essas substituições aconteceriam e que, inclusive, aconteceria também uma substituição no Rio Grande do Sul. Sabíamos que um radialista seria indicado para a superintendência, substituindo o atual superintendente, que é uma pessoa que tem qualificação na área. Então, nós já alertamos para isso. Essa substituição do Rio Grande do Sul não aconteceu, mas a do Paraná, que nós alertamos, aconteceu agora em setembro, exatamente do modo como nós havíamos sido informados. Nunca houve qualquer resposta por parte dos ministros com relação a esse ofício.

No caso do Paraná, por exemplo, a informação que a gente tinha é que, além do superintendente, iam trocar o coordenador técnico, que é o segundo cargo mais importante da superintendência e que é um cargo, como o próprio nome já diz, técnico. A atual coordenadora técnica do Paraná é uma arquiteta, concursada no IPHAN, que tem doutorado na área de preservação do patrimônio e iria ser substituída por uma pessoa de 20 poucos anos, que tinha formação na área de gestão financeira, o que não tem nada ver com a administração técnica. Essa substituição não aconteceu ainda, mas pode vir a acontecer.

O aparelhamento da instituição IPHAN não está acontecendo apenas na superintendência, vai acontecer também, ao que tudo indica, nas coordenações técnicas, o que é ainda mais grave. Se você não tem nem um coordenador técnico, que é técnico e entende do assunto, para assessorar o superintendente e evitar que ele, por exemplo, aprove algo que não deve ser aprovado, aí realmente estamos com problemas ainda mais graves.

Sul21: E quais são os impactos dessas substituições para o IPHAN e para o patrimônio público do país?

Nivaldo: Os impactos são enormes. O superintendente do IPHAN no estado tem muita força, porque é ele quem dá a última palavra, quem aprova ou não qualquer intervenção nas áreas protegidas, qualquer empreendimento, qualquer intervenção em um sítio tombado. Tem sempre um parecer de um técnico, mas esse parecer tem que ser ratificado pelo superintendente. Por exemplo, em Minas Gerais, vários dos licenciamentos das mineradoras passam por questões arqueológicas, de sítios arqueológicos e são aprovados ou não pelo superintendente do IPHAN do estado.

Outra questão é que em Minas Gerais existem quatro dos 15 sítios brasileiros que estão na Lista de Patrimônio Mundial, feita pela UNESCO. Em Brasília tem mais um e em Goiás tem outro. Ou seja, seis dos nossos sítios estão nos estados que passaram pelas substituições. Se o superintendente não tem o menor discernimento, a menor compreensão dos impactos que essas intervenções podem causar, ele pode estar aprovando coisas por interesses outros que não os técnicos, que são os que deveriam guiar suas decisões. Se ele está lá por questões políticas e sem qualificações técnicas, ele aprovará os projetos politicamente e não do ponto de vista do interesse coletivo na conservação do patrimônio. Isso é um risco para todo mundo. Junto a isso, o governo Federal propôs a redução de 72% do orçamento do IPHAN para o ano que vem.

Precisamos entender que o patrimônio é um recurso não renovável, que tem que ser cuidado, usufruído, explorado, inclusive economicamente, mas sempre no limite das suas conservações para as futuras gerações. O grande desafio é usá-lo, aproveitar dele, mas permitir que as próximas gerações tenham acesso a ele. Se a questão econômica é a única que dirige qualquer decisão sobre o patrimônio, esse patrimônio acabará muito rapidamente. Claro que o turismo, por exemplo, é importante. Mas o turismo tem que acontecer em um limite que não comprometa a preservação do patrimônio. Temos receio que pessoas sem qualificação técnica, sem experiência na área, não tenham capacidade para avaliar as coisas da forma mais adequada. Então, todas as entidades profissionais se reuniram nesta mobilização, neste Fórum, em função disso.

Sul21: Como o Fórum irá atuar daqui para a frente?

Nivaldo: As entidades começaram fazendo manifestos, algumas isoladamente, outras em grupos. Os arquitetos, todas entidades de arquitetos e mais os arqueólogos e antropólogos fizeram um documento contra essas exonerações e substituições. Esse documento reverberou bastante, mas até agora não parece que o governo tenha recuado, porque deu posse já nos últimos dias ao superintende de Goiás, que é um desses que foi indicado por um deputado, deputado esse que disse em entrevista a um jornal que houve um sorteio com a bancada governista de Goiás e sobrou o IPHAN para ele. Ou seja, o cargo foi dado em sorteio e ele considera que indicou alguém para um cargo que sobrou, um cargo menos importante. Nesse sentido, o Fórum pretende tentar estancar ou reverter esses processos de substituição. Nós já solicitamos à presidente da Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados, a deputada Benedita da Silva, que realize uma audiência pública para discutir o tema. Ela disse que isso já estava no planejamento e convidou o Fórum para participar.

Várias das entidades vão entrar com uma denúncia junto ao Ministério Público Federal e a Procuradoria Geral da República com relação ao foto de que essas nomeações descumprem um decreto do próprio governo Bolsonaro, que é um decreto de março deste ano que determina que cargos comissionados desse tipo precisam ser ocupados por pessoas que tenham experiência e qualificação, a não ser em casos excepcionais, mas ninguém sabe quais são essas excepcionalidades. Além disso, estamos criando em diversos estados fóruns semelhantes ao lançado hoje para poder acompanhar mais de perto esses processos de substituição.

O IAB, presidido por Nivaldo, é uma das entidades que compõem o Fórum de Entidades em Defesa do Patrimônio Cultural. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21: Você mencionou anteriormente que essas substituições partiram de indicações políticas. Quais outros interesses podem estar por trás dessas indicações e consequentes substituições nas superintendências regionais do IPHAN?

Nivaldo: O governo atual tem adotado em todas as áreas o discurso de que tem que liberalizar, diminuir as amarras, facilitar as aprovações; que tem que dinamizar a economia a todo custo. Mas, como eu falei, no campo do patrimônio cultural, como ele está lidando com cidades históricas, sítios históricos urbanos, monumentos históricos, tudo tem que estar limitado à preservação dos valores culturais. Se houve, anteriormente, um entendimento da sociedade de que um determinado lugar, um determinado edifício, é patrimônio nacional, e por meio dessa decisão se tombou esse patrimônio, se entende que ele deve ser preservado e que a exploração econômica dele tem que estar subordinada à preservação desses valores culturais.

Nosso receio é que, além dos interesses partidários, haja também interesses na flexibilização dos processos de aprovação. Em várias cidades do Brasil que possuem sítios tombados importantes o superintendente do IPHAN tem mais força que o prefeito. É o superintendente do IPHAN que tem o poder decisório sobre o que vai acontecer na cidade, porque são ele e a equipe dele que autorizam ou não outras intervenções. Se ele não tem capacidade e discernimento para avaliar os impactos que isso pode causar, isso pode estar permitindo a destruição desse patrimônio e isso é absolutamente preocupante.

Sul21: Qual o papel dos arquitetos e também do Congresso que está acontecendo em Porto Alegre no debate sobre o sucateamento do IPHAN?

Nivaldo: Tem todo um campo do patrimônio cultural, que é o patrimônio arquitetônico, urbanístico e paisagístico, no qual nós, os arquitetos, somos os únicos especialistas. Nós atuamos e temos formação nessa área. Somos profissionais capacitados para avaliar as questões envolvidas nisso e, inclusive, qual é o limite da transformação do patrimônio, que é o tema que eu pesquiso e trabalho. O limite da transformação do patrimônio, do edifício histórico, precisa se atualizar para atender as demandas de hoje. Se ele foi feito para ser um convento no século XVIII e não tem mais uma ordem religiosa para ocupá-lo, ele pode virar um hotel. Se ele era um palacete residencial, ele pode virar um museu; uma fábrica, como o Sesc Pompeia vira um centro de lazer e de cultura.

Só que o profissional que tem condições de avaliar o limite dessa transformação é o arquiteto, porque ele sabe o que a transformação demanda em termos de acessibilidade universal, que é uma exigência, e em termos de questão de incêndio, por exemplo, mas também sabe avaliar quais são os valores culturais e consegue pesar na balança o que pode ser feito e o que não pode.

Sul21: Como é possível tornar essas questões acerca do papel do IPHAN e da importância dos patrimônios históricos um tema mais acessível para a sociedade?

Nivaldo: O IPHAN tem sido visto historicamente de forma até negativa. Como ele é uma instituição que, muitas vezes, precisa proibir determinadas ações para poder viabilizar a preservação, ele acaba sendo visto com certo rechaço, como uma instituição que atrapalha. Algumas cidades históricas do interior têm essa visão do IPHAN como algo que impede o desenvolvimento, o progresso, etc. Só que ele está preocupado com a preservação da memória coletiva. Essa é a missão dele, porque ele foi criado para isso há 82 anos atrás e tem que continuar cumprindo esse papel.

Acho que a questão da educação patrimonial é fundamental, ou seja, precisamos ter ações nas escolas de ensino fundamental, de ensino médio, até no jardim de infância, e em espaços públicos. Acho que ter realizado esse lançamento do Fórum não em um auditório fechado, mas nessa praça [da Alfândega], que é uma praça tombada e por onde estão passando várias pessoas que não têm nada a ver com o nosso Congresso, é importante porque dá a dimensão pública que esse assunto deve ter.

Em países como a Itália, temas ligados ao patrimônio público fazem parte da discussão das pessoas. Os médicos, os advogados, os comerciantes discutem isso no dia a dia. As grandes polêmicas vão pra capa do jornal. Aqui, infelizmente, ainda é um assunto de especialistas. Isso está ligado com a grande desigualdade social e a diferença do nível de formação. A Itália tem uma educação mais equânime, por exemplo. A gente precisa superar isso e a educação patrimonial é a forma que a gente tem de falar do patrimônio de uma forma mais acessível e para um público mais amplo. Esse é o desafio.


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