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26 de outubro de 2019
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11:39

O que fazer quando a sensação é de que o futuro acabou? Escritor resgata o papel da arte em situações-limite

Por
Sul 21
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Flavio Aguiar: “A arte pode nos ajudar a lidar com essas situações-limite de modo a transformá-las em um horizonte”. (Foto: Marco Weissheimer)

Marco Weissheimer

Em diferentes momentos da história da humanidade, a arte revelou-se capaz não só de superar situações-limite de extrema adversidade, mas também de transformá-las em horizontes de criação, de liberdade e de resistência contra situações opressivas. Escritor e professor de Literatura Brasileira na Universidade de São Paulo (USP), Flavio Aguiar escolheu três desses momentos para refletir sobre o papel da arte no horizonte das situações-limite. Vivendo em Berlim desde 2007, Flavio Aguiar esteve em Porto Alegre no início de outubro e apresentou essa reflexão em uma palestra realizada no Studio Clio. Em entrevista ao Sul21, ele falou sobre a natureza dessas intervenções artísticas e sobre os aprendizados que elas trazem em um momento onde o Brasil atravessa não uma, mas uma sucessão de situações-limite.

Para fazer essa reflexão, o escritor escolheu três situações que giram em torno da ascensão, do apogeu e do declínio do nazismo, na Alemanha. A escolha tem um olhar também no presente, destaca: “Penso que essas situações podem nos ensinar coisas relacionadas à situação que estamos vivendo, cujo pior efeito (que a nossa geração viveu durante o período da ditadura pós-64) é a sensação de que o futuro acabou, de que não há mais futuro e que essa situação limite vai perdurar pra sempre. Vivemos isso no período pós AI-5, com a destruição de toda a oposição à ditadura, inclusive da luta armada. Houve anos, no início da década de 70, em que parecia que mais nada iria acontecer no Brasil. No entanto, não foi assim. Muita coisa rolou e, agora, chegamos de novo a uma situação limite”.

Sul21: Como é que nasceu o seu interesse por esse tema acerca do papel da arte e da cultura em contextos considerados como situações-limite?

Flavio Aguiar: A situação limite é uma porteira fechada, é como se fosse um beco sem saída. Quando você chega ali, não tem volta. É preciso tomar uma decisão que pode ser uma decisão de vida ou morte. Se estivéssemos falando em termos inteiramente ficcionais, como se fosse um filme, teríamos aquela cena clássica do duelo nos faroestes, onde os dois contendores chegam frente a frente e não podem recuar. Um deles vai sair vivo e o outro vai ficar ali. Acredito que, hoje, no Brasil, estamos vivendo uma situação limite, tanto pelo governo que foi eleito como por esse clima de ascensão de posições fascista, um fenômeno mundial, aliás.

A arte pode nos ajudar a lidar com essas situações-limite de modo a transformá-la em um horizonte. O horizonte é o contrário da situação limite. É uma linha demarcatória que nos chama a atravessá-la e a rompê-la. Mas quando fazemos isso, ela se recoloca adiante e está sempre nos chamando a seguir em frente para alcançá-la, como uma utopia. Como dizia o Padre Vieira, por motivos muito diferentes, a história mais importante é a história do futuro. E o horizonte nos chama para o futuro. Nestas circunstâncias, a arte está sempre pensando em romper essa situação limite e apontar o horizonte do futuro.

Edifício da escola da Bauhaus, em Dessau (Reprodução)

Para pensar esse tema, escolhi três casos de situações-limite e a sua transformação em horizontes graças à intervenção da arte. São situações que giram em torno da ascensão, do apogeu e do declínio do nazismo. Penso que essas situações podem nos ensinar coisas relacionadas à situação que estamos vivendo, cujo pior efeito (que a nossa geração viveu durante o período da ditadura pós-64) é a sensação de que o futuro acabou, de que não há mais futuro e que essa situação limite vai perdurar pra sempre. Vivemos isso no período pós AI-5, com a destruição de toda a oposição à ditadura, inclusive da luta armada. Houve anos, no início da década de 70, em que parecia que mais nada iria acontecer no Brasil. No entanto, não foi assim. Muita coisa rolou e, agora, chegamos de novo a uma situação limite.

Sul21: E quais foram os casos que você escolheu para pensar essa questão?

Flavio Aguiar: A primeira delas é a Escola Bauhaus, que não foi apenas uma escola arquitetônica, mas algo muito mais amplo. A Bauhaus foi fundada pelo arquiteto Walter Gropius em 1919, na cidade de Weimar, onde foi proclamada a primeira república alemã, após o fim da Primeira Guerra Mundial. A escola girava em torno do uso da tecnologia então emergente e de sua transformação em arte. A Alemanha, é bom lembrar, vinha de uma situação de hecatombe, na Primeira Guerra Mundial, onde a tecnologia tinha sido amplamente utilizada como arma de destruição.

As escolas Bauhaus queriam transformar a tecnologia em arte, em instrumento de libertação de preconceitos. Uma grande parte do esforço dos professores da escola, por exemplo, era propiciar situações onde os estudantes tivessem que deixar de lado os preconceitos que traziam, inclusive manipulando materiais inusitados nas artes plásticas, na arquitetura ou na engenharia, ou ainda exercitando a sensibilidade em relação às cores. Eram escolas de vanguarda. Na Bauhaus, os estudantes eram estimulados a desenvolver seu próprio estilo. Havia escolas desse tipo na União Soviética e nos Estados Unidos, onde os estudantes eram estimulados a adotar o estilo da escola. A originalidade da Bauhaus é que os estudantes eram estimulados a criar o seu próprio estilo. Tanto é que não se pode falar propriamente que existe um estilo Bauhaus.

Ao mesmo tempo, era o momento da ascensão do nazismo. Então, eles enfrentaram várias situações limite. Em Weimar, a escola sempre enfrentou uma resistência conservadora muito forte que acabou forçando a escola a abandonar a cidade e ir para Dessau, onde ficaram de 1926 a 1932. Ali a Bauhaus atingiu seu apogeu. Primeiro porque eles foram convidados a ir para lá e tiveram todo apoio do governo social-democrata, o que garantiu o desenvolvimento de pesquisas e a criação de uma referência arquitetônica mundial, que terminou influenciando a própria arquitetura brasileira. A Bauhaus procurava juntar a funcionalidade com uma extrema criatividade.

Em Desssau também apareceram os conflitos internos. Gropius deixou a direção da escola. Neste momento, surgiu outra situação limite, pois os nazistas assumiram o governo da província e a Bauhaus teve que se mudar para Berlim. Logo em seguida, em 1933, os nazistas assumem o governo federal alemão e os próprios professores e estudantes da Bauhaus decidem fechá-la. A maior parte deles foi para os Estados Unidos. Uma outra parte foi para a União Soviética e uma pequena parte aderiu ao nazismo. Muitos dos integrantes da escola morreram em campos de concentração. Mas, ao longo da história da escola, eles conseguiram transformar uma situação limite, que era enfrentar o nazismo, numa abertura arquitetônica que desabrochou no mundo inteiro.

A segunda situação limite se deu no cerco nazista a Leningrado que durou de setembro de 1941 a janeiro de 1944. Foi uma das maiores tragédias da Segunda Guerra. Entre mortos, desaparecidos e feridos, foram vitimadas ali mais de 5 milhões de pessoas. Na hoje São Petersburgo existe um dos maiores cemitérios do mundo, onde estão enterradas 500 mil vítimas civis e 50 mil soldados soviéticos, vítimas da guerra. Durante o cerco alemão, a cidade decidiu organizar um concerto e apresentar a sétima sinfonia de Shostakovich, compositor russo que, naquele momento, estava um pouco em desgraça na União Soviética. Stálin e seus críticos achavam que ele experimentava demais. Ele também viu esse momento como uma oportunidade de se reabilitar. Estava compondo uma sinfonia e a dedicou a Leningrado.

Sul21: Ele morava em Leningrado nesta época?

Flavio Aguiar: Não, mas tinha nascido lá e, no começo do ataque alemão, estava na cidade. Então ele batizou essa sinfonia, que é maravilhosa, com o nome de Leningrado. E decidiram então fazer um concerto na cidade em pleno cerco alemão. Neste momento, em 1942, não havia mais nem cachorros, nem gatos, nem ratos na cidade. Tinham sido todos comidos, em função da fome que atingia a população. Havia alguns obstáculos quase intransponíveis para a realização do concerto. A Orquestra Sinfônica de Leningrado tinha sido evacuada antes que o cerco alemão se fechasse. Inclusive o maestro chefe tinha sido evacuado para a Sibéria.

Eles tinham ainda a orquestra da rádio de Leningrado, da qual restavam apenas 15 músicos. Então eles fizeram um chamado na cidade para que, quem tocasse algum instrumento, se apresentasse. A execução da sétima sinfonia de Shostakovich exige pelo menos 108 instrumentistas. As pessoas que tocavam algum instrumento atenderam ao pedido, mas muitas delas estavam tão frágeis que não conseguiam sustentar a sinfonia toda e sequer segurar os instrumentos mais pesados. A cidade doou então rações extras de alimentos para que pudessem se recuperar fisicamente.

No dia 9 de agosto de 1942 a sinfonia foi finalmente executada. Neste dia, a aviação soviética despejou três mil bombas sobre as posições alemãs para que elas não pudessem bombardear a cidade durante a execução da sinfonia. E ela foi, de fato, executada no Hotel Astoria, local onde Hitler pretendia festejar a vitória sobre os soviéticos, quando Leningrado caísse. Durante a execução da sinfonia foram colocados alto-falantes em direção às linhas alemãs para que os alemães também ouvissem. Há um relato de que um soldado alemão teria dito depois disso: ‘nunca vamos conquistar essa cidade’. E consta que a execução foi aplaudida de pé durante uma hora. Os aplausos teriam sido mais longos do que a execução da sinfonia. Essa peça se tornou, assim, em símbolo da resistência soviética contra os nazistas.

A terceira situação limite que escolhi foi um diário intitulado ‘Diários de Berlim’ (1940-1945), escrito por Marie Vassiltchikov, uma princesa russa exilada em Berlim que foi trabalhar no Ministério de Relações Exteriores do governo nazista, um dos principais focos de organização do atentado fracassado contra Hitler em 1944. O relato dela é considerado o mais completo da preparação, da execução, do fracasso e da repressão aos participantes do atentado. Ela conseguiu fugir de Berlim e sobreviveu.

Sul21: Ela escreveu esse diário enquanto estava trabalhando no Ministério de Relações Exteriores?

Divulgação

 Flavio Aguiar: Sim. De novo temos aí uma situação limite. Os nazistas precisavam saber o que estava acontecendo no mundo. Então, não havia censura sobre a entrada de informações no Ministério. Para fora, era tudo censurado, mas eles ficavam sabendo o que estava acontecendo no mundo. Já em 1943, pelas informações às quais tinham acesso, desconfiavam que os nazistas iriam perder a guerra. Ela escrevia em código, com técnica de estenografia, e escondia o diário dela em diferentes lugares. Algumas partes acabaram se perdendo. Depois da guerra, ela conseguiu reunir boa parte do que havia escrito e já à beira de morrer, nos anos 70, decidiu publicar o diário.

O contexto no qual escreveu fez com que desenvolvesse um estilo extremamente original. Ela descreveu situações envolvendo o complô, mas também sobre como era a vida em Berlim durante a guerra. Ela conta, por exemplo, que faltava batata e cerveja, mas sobrava caviar e champagne, que vinham dos territórios ocupados. Se havia dinheiro, as pessoas podiam comprar caviar e champagne, mas não conseguiam comprar cerveja e batata. Cerca de 75% das casas em Berlim, no fim da guerra, estavam danificadas ou destruídas pelos bombardeios. Ela descrever essas situações em detalhes mas, ao mesmo tempo, de uma forma extremamente contida. Ela escrevia em inglês. Eu traduzi o livro dela, publicado no Brasil pela Boitempo, e procurei ser fiel a esse estilo. Procurei inclusive não usar palavras que não eram correntes nos anos 40. Temos aí também a lição de que, mesmo em situações duríssimas, é possível desenvolver um estilo, uma maneira artística de refletir sobre uma determinada situação limite que a transcende e a transforma em um horizonte de criatividade.

Penso que temos muito a aprender com esses casos no momento em que estamos vivendo várias situações limite no Brasil. De um lado essa realidade não é tão dura quanto foi a ditadura de 64. Naquela ditadura, a grande maioria das instituições de esquerda e mesmo liberais foram arrasadas e destruídas inclusive fisicamente, como ocorreu com o prédio da UNE, por exemplo, que foi incendiado. Por outro lado, estamos vivendo algumas situações que, de certo modo, são piores que as vividas na ditadura. Naquele período, as iniciativas eram claramente do governo federal e das autoridades. Hoje, qualquer fascista na esquina se sente autorizado a agredir pessoas e promover atos de violência, graças a essa sensação de impunidade generalizada que os protege, com a contribuição também do Judiciário brasileiro que foi leniente com uma série de arbitrariedades cometidas na Lava Jato e em outros domínios.

Sul21: Esses três casos que citou são apresentados como uma prova de que é possível superar e transformar situações extremamente adversas em horizontes de criatividade e de liberdade. No relato que faz sobre eles, parece que não se trata apenas de uma possibilidade, mas quase de uma necessidade, uma vez que a situação limite exige uma reação, até por uma questão de sobrevivência…

Flavio Aguiar: Sim, trata-se também de uma questão de sobrevivência. Creio que, dos três casos que citei aqui, talvez a situação mais radical tenha sido a vivida pela população de Leningrado. A cidade inteira se mobilizou para a execução da sinfonia. Os músicos, mesmo com problemas graves de desnutrição, foram para os ensaios. Três deles morreram durante os ensaios. Mesmo assim, seguiram em frente. É como se fossem empurrados por aquela situação e se deixaram ser empurrados. Eles aceitaram o desafio e fizeram o melhor que podiam, conseguindo transformar uma situação de extrema precariedade em uma manifestação vital que inclusive impulsionou a resistência naquele momento mesmo no mundo inteiro.

 


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