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27 de outubro de 2019
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12:18

‘Nós, mulheres pretas, não estamos ocupando lugares agora, nós sempre estivemos ali’, diz campeã estadual do Slam 2019

Por
Sul 21
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A poeta, bailarina e slammer Jamille Santos ganhou a Final Gaúcha de Slam 2019. Foto: Sérgio Silva/Arquivo Pessoal

Annie Castro 

“É sobre representatividade. Eu posso ter sido campeã pela contagem das notas, mas eu carrego a representação de todos aqueles poetas e de todo mundo que assiste, vibra e sente a poesia. Eu sempre digo que é pelos meus”. Assim que a bailarina, poeta e slammer Jamille Santos define a experiência de, aos 17 anos, ter ganhado a Final Gaúcha de Slam 2019 e de ser uma das duas pessoas que irão representar o Rio Grande do Sul na final nacional do campeonato de poesia falada, em São Paulo, disputando uma vaga para a final do mundial, que acontece em Paris.

Jamille descobriu o Slam, movimento de campeonatos de poesia falada, em 2015, quando tinha 13 anos, por meio de vídeos famosos na internet. “Eu assistia aos poetas de São Paulo, decorava as poesias deles e recitava na escola pras pessoas que eu gostava”, lembra. Apesar disso, somente em 2018 ela teve seu primeiro contato real com o movimento, que aconteceu quando o Slam Poetiza foi criado em Caxias do Sul, cidade onde ela reside.

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Antes do Slam, a escrita já estava presente na vida de Jamille. A slammer conta que “gostava de criar histórias”, mas que produzia mais textos em formato de contos e releituras, pois havia aprendido a enxergar a poesia como algo inacessível e até mesmo elitizado. “Não sabia que aquilo que eu já fazia era poesia. Eu a via de forma elitizada porque eu aprendi na escola que poesia era distante. A gente aprende na escola que poesia é só Mário Quintana e Vinícius de Moraes e fica naquelas de que poesia é de gente rica ou é chata e tediosa”. Ela reforça que as referências brasileiras sobre poesia ainda são diretamente ligadas aos homens brancos. “Tentam embranquecer até Machado de Assis”, exemplifica.

Poesia marginal

A visão que Jamille tinha sobre poesia mudou quando ela conheceu o Slam e a poesia marginal. “A construção social que a gente tem sobre poesia impossibilita nossa curiosidade em tentar, às vezes. Quando eu aprendi que poesia parecia aquilo que eu ouvia em casa, que era rap porque tinha as rimas, eu trouxe ela para mais perto de mim e coloquei na minha realidade”, explica. Segundo a slammer, a poesia marginal faz com que até mesmo pessoas que não tiveram a oportunidade de aprender a ler ou escrever passem a se interessar por esse tipo de literatura.

‘A poesia salva vidas, tem gente vivendo de poesia’. Foto: Sofia Vidor/Arquivo Pessoal

“Com a poesia marginal a gente já se identifica de cara e percebe que também consegue, que não tem português errado, até porque, se é marginal, é outra linguagem; tem uma abertura e uma liberdade maior com sotaques, jeitos e métricas. Também pode aproximar pessoas que não tiveram a oportunidade de aprender em se interessar e buscar saber, não só sobre ler e escrever, sobre diversos assuntos e realidades que fazem parte do seu cotidiano”, diz. Jamille também ressalta que saber ler ou escrever não são uma necessidade para criar poesia: “Tem gente que faz poesia na cabeça, memoriza e recita. Eu faço isso, comecei assim. Meu avô fazia isso e ele nem sabe pegar numa caneta para escrever”.

Jamille conta que muitas pessoas começaram a aprender a ler ou a escrever por meio do Slam e que, desde que ele entrou nas periferias brasileiras, o movimento se tornou “uma coisa muito maior”, ‘principalmente no Rio Grande do Sul. “O espaço que esse movimento ocupa e transforma aqui no RS é incrível. Digo isso pelo fato de ser mulher, preta e LGBT, e afirmar que mudou a minha vida. A poesia salva vidas, tem gente vivendo de poesia, tem gente que desiste do suicídio porque na próxima semana tem Slam. Quando a gente fala que a poesia salva vidas é sobre isso. Estão surgindo novas pessoas, novas vivências e novas experiências”, pontua.

Para ela, escrever poesias é um processo que “às vezes dói e outras alivia”. Em função disso, ela afirma não ter uma única poesia como predileta. “Todas me marcam escrever porque não é uma prática simples”, explica a poeta, que costuma escrever sobre a vivência que tem enquanto mulher preta e sobre coisas que sente, escuta e vê.

“E eu senti daqui o desespero no teu peito
Ao imaginar acontecimentos, e a respeito do teu medo?
Eu não tô nem aí
Quero mais é que tu sinta tudo o que for possível sobre a própria crueldade que vocês criaram daí

Já pensou se eu parasse pra me vingar de ti?

É por isso que não disfarçam o repúdio ao meu batuque, minha dança meus traços, negritude que balança no compasso desses verso mal aí, é que eu esqueci

Quem não acompanha a evolução e minhas pirâmides perfeitas dizem que foram os aliens

Criei teus prazeres diários, desde a música até o espaço entre ser e existir
Olha, você me deve a alma e eu tô falando isso bem calma
Nem tô na intenção de te ferir
Mas se esse for o caso eu te convido a imaginar…

Já pensou? Se eu parasse
pra me vingar de ti?!”

– Jamille Santos

Presença feminina no Slam

Embora a maioria dos meios culturais sejam majoritariamente masculinos, Jamille relata que observa um equilíbrio entre gêneros dentro do Slam. Segundo ela, a presença de mulheres dentro do Slam não é algo recente. “Nós, mulheres pretas, não estamos ocupando lugares agora, nós sempre estivemos ali, nós geralmente criamos esses espaços”, pontua. Ela também afirma que a maior parte das referências dentro do movimento são mulheres.

A poeta também diz que, quando começou a frequentar o Slam, nunca se sentiu reprimida pela presença de mais homens que mulheres num mesmo espaço. “Eu geralmente sou a bendito fruto entre eles, mas eu já chego incomodando e movimento isso. Estar em espaços onde pouco me vejo nunca me fez querer sair dali, e sim continuar e encher de pessoas como eu”, explica.

Entretanto, Jamille ressalta que, ao contrário dela, existem mulheres que não se sentem à vontade para falar sobre dores que somente outras mulheres iriam entender. Por isso, ela acredita que é importante a existência de espaços destinados exclusivamente para mulheres, como o Slam das Minas, por exemplo. “Juntas, passa a ser um momento e espaço de cura e cuidado”, afirma. Segundo a slammer, também há uma importância em consumir a arte produzida por mulheres, o que torna mais significativa a existência de espaços que garantam essa visibilidade.


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