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10 de outubro de 2019
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12:50

Mais por menos? Crise, sustentabilidade e mudanças no consumo impactam crescimento de brechós

Por
Sul 21
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Número de brechós aumentou em mais de 200% no Brasil entre os anos de 2010 e 2015. Foto: Luiza Castro/Sul21

Annie Castro 

Entre os anos de 2010 e 2015, o número de brechós no Brasil aumentou 210%, segundo relatório de inteligência do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). O boom se deu juntamente com o crescimento do mercado de produtos de segunda mão, que entre 2013 e 2015 cresceu mais de 20%.

Em Porto Alegre não é diferente. São opções para diferentes bolsos e gostos. As motivações para comprar peças usadas também variam: a crise que leva à procura por produtos mais em conta, a tentativa de não financiar grandes marcas de roupas e fast fashions, a busca por peças exclusivas ou de marcas que, novas, custam quantias exorbitantes.

São lojas físicas e online, feiras de rua ou organizadas entre amigos, vendas promovidas por instituições beneficentes ou projetos de assinatura de guarda-roupas compartilhados. Mas comprar roupas usadas significa, necessariamente, estar contribuindo com o planeta? Nem sempre. Há quem defenda que a lógica segue sendo “comprar mais por menos”. Visitamos alguns espaços de venda de roupas e calçados usados e conversamos com quem entende do assunto para apontar algumas das motivações por trás desse crescimento dos brechós.

Crise financeira

Desde 2011, uma vez por mês acontece no Instituto Espírita Dias da Cruz, em Porto Alegre, um feirão de saldos de vestuários e calçados. Ali, das 8h ao meio-dia, sempre aos sábados, todos os itens são vendidos por apenas R$ 2,00. Normalmente cada edição recebe cerca de 200 pessoas, divididas entre quem vai para garimpar roupas para si, donas de brechós que querem comprar peças para revender em seus estabelecimentos, famílias de imigrantes, como haitianos e senegaleses, e, em maior número, pessoas de baixa renda. “Quem mais frequenta são pessoas carentes, que não têm condições de comprar em uma loja grande”, explica o ex-presidente e diretor administrativo e financeiro da instituição, Éder Geraldo Cardoso. Segundo ele, as pessoas chegam a fazer filas desde às 5h da manhã para entrar assim que o evento inicia.

Na opinião de Éder, a procura por roupas de segunda mão está aumentando devido à crise econômica. “Houve um acréscimo de pessoas que estão reutilizando as roupas. Na alta sociedade isso já virou moda, mas a sociedade de baixa renda compra muito em brechó. Em função da crise que não era tão acentuada, o pessoal conseguia comprar uma roupa em uma loja de departamento, parcelava e pagava em seis vezes. Mas hoje não tem mais como, então o pessoal está vestindo brechó”, afirma.

Éder é diretor administrativo e financeiro do Instituto Espírita Dias da Cruz, onde acontece mensalmente o feirão de vestimentas e calçados. Foto: Luiza Castro/Sul21

Por ser uma entidade filantrópica, o Instituto realiza o feirão para arcar com os custos de manutenção da instituição, como material de higiene e limpeza, carne e outros mantimentos que não são doados pela comunidade. Além do feirão mensal, também funcionam no espaço um brechó, um bazar e um sebo – que operam diariamente no turno da tarde. Éder relata que só são colocados para venda itens que não estejam em falta nos projetos sociais da entidade: o albergue, que atende 100 pessoas em situação de rua por noite, e a escola de educação infantil, que recebe durante a semana 89 crianças com bolsa integral.

Neste contexto, pessoas carentes acabam levando itens por um preço menor que o valor sugerido ou até mesmo como doação. “Tem histórias de pessoas que chegam no feirão e não têm o dinheiro todo, mas isso não é problema nenhum. Uma vez chegou no caixa uma senhora com a netinha, e a menina estava com uma sandalinha segurando perto do peito. O meu colega contou as roupas e deu trinta e poucos reais, só que a senhora disse que não tinha o dinheiro, que só tinha R$ 20 reais e tirou a sandalinha das mãos da criança. O meu colega automaticamente devolveu a sandália para a menina, colocou todas as roupas na sacolinha e a senhora levou tudo pelos R$ 20”, conta Éder.

O fato de os brechós e de feiras de roupas se tornem uma alternativa diante do elevado custo de vida também é observado por Mariza Melo, paisagista e dona do Brechó da Tia Mariza, que existe há mais de 10 anos em Porto Alegre. Segundo ela, a redução dos salários ou perda dos empregos fez com que muitas pessoas que viam o brechó como algo negativo passassem a consumir mais nesses espaços em razão de não conseguirem comprar uma peça nova em uma loja. “Eu tenho clientes bem pobres, que vêm para comprar uma camisa de 10, 7 pila. Tem gente que tem vergonha de entrar na loja do shopping para comprar porque se sente mal. As pessoas também vêm procurar bastante roupa para ir na igreja, ternos, saias”, relata.

Feirão de peças no Instituto Dias Cruz acontece, geralmente, no primeiro sábado de cada mês. Foto: Luiza Castro/Sul21

Além disso, em meio à crise e ao crescimento no número de desempregados no Brasil, a venda de roupas de segunda mão acaba sendo uma alternativa para pessoas que estão sem trabalho formal e que precisam de uma renda. “Houve um aumento de quase 14% no número dos desempregados. Então, você pega uma roupa das pessoas do seu bairro, da sua família, porque está desempregado, e vai tentar vender”, explica Marina Colerato, designer de moda e fundadora do site Modefica, que é focado em discutir temas como moda, sustentabilidade, consumo consciente, meio ambiente, política e igualdade de gênero e de raça.

O mesmo ponto é levantado pela jornalista Aline Ebert, que há cinco anos criou, juntamente com sua amiga Jade Primavera, a feira bimestral Mercado Vintage, que acontece em Porto Alegre e tem como foco o garimpo de época. Segundo ela, a renda oriunda das vendas em brechós são um modo de “pequenos empreendedores sustentarem sonhos e famílias”. “O que é bem mais próximo do que aumentarmos as fortunas de grandes empresas ou mesmo comprarmos roupas de qualidade baixa e as quais nem sabemos a procedência da mão-de-obra, com salários muito baixos, trabalho infantil, escravo ou análogo à escravidão e até acidentes graves, como o desabamento de confecções como aconteceu em Bangladesh em 2013”, pontua.

Entretanto, ainda que se mostrem alternativas para quem quer ou precisa comprar roupas e calçados em meio à crise, os brechós também vêm sentido o impacto da redução na renda e aumento do desemprego. Segundo Mariza, o movimento está cada vez mais escasso. “De três anos para cá, do golpe para cá, acabou. Eu chegava a vender R$ 70 mil no ano aqui, eu não vendo R$ 30 mil agora”, desabafa. Segundo ela, inicialmente se pensava que a crise financeira fosse fortalecer os brechós como alternativa para compra de vestuário. Porém, ela afirma que isso não aconteceu, uma vez que “a crise atingiu a todos, não atingiu só a classe média e a classe rica”. “Ela atingiu o pobre, o assalariado. Quem é que comprava e compra nos brechós? Professores, servidores públicos, quem está com o salário partido pela metade, recebendo em parcelas. E aí a pessoa chega aqui, vê uma peça de R$ 10 e quer levar por R$ 7. A crise atingiu todo mundo”, diz.

Mudanças nos hábitos de consumo

No Brechó da Tia Mariza, a maior parte da clientela é composta por pessoas jovens preocupados com questões ambientais e sociais e que, em função disso, já não querem mais comprar em grandes lojas. “A pessoa que chega aqui, que vem para comprar roupa de brechó, é uma pessoa de 40 anos para baixo. Ou então é alguém bem pobre, que recebeu hoje, fez uma faxina, e vem comprar um vestidinho. Mas a minha maior clientela é uma gurizada bem consciente, a maioria já não come mais carne, não usa coisa de couro, não usa pele, não usa produto sintético”, relata Mariza.

A paisagista Mariza Melo é dona do Brechó da Tia Mariza, que funciona há mais de dez anos em Porto Alegre. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ela também afirma que muitos clientes procuram seu brechó como uma alternativa para consumir de forma mais consciente e dizem doar uma peça de roupa toda vez que compram outra. “Tu vê que já tem uma consciência muito grande nessa turma. É uma gurizada bem cabeça, que valoriza a vida, que valoriza planta, que valoriza as roupas. Não é só uma coisa para dizer ‘tô comprando uma roupa para botar no roupeiro’. Não são acumuladores, ninguém vem pra comprar várias peças. Ficam horas aqui e levam uma peça, duas”, explica. Porém, para Mariza essa prática de consumo se restringe às gerações mais novas.

“Eu vejo essas lojas de departamento lotadas, com um monte de blusinhas e coisinhas que vieram de mão de obra escrava, que tu sabe que uma pessoa trabalha o dia inteiro fazendo aquilo para ganhar 40 centavos. O povo consumista continua sendo consumista. A gurizada que começou a sair para comprar suas roupas com 13, com 14 anos, vem no brechó para comprar, mas aquele pessoal adulto, a maioria não compra em brechó, eles já dizem: ‘ai eu não gosto, é roupa de morto’”, relata Mariza. Para ela, as pessoas mais velhas que compram em brechós o fazem pelo preço mais acessível, mas não por uma questão de consumo consciente. “Por conscientização é a nova geração”, afirma.

De acordo com Marina Colerato, os clientes de Mariza ainda representam uma pequena parcela da sociedade. A designer de moda sustenta que a discussão acerca da necessidade de consumir conscientemente é um debate restrito a um nicho social específico. “O debate dentro de um determinado escopo existe. A gente está conversando sobre isso, mas dentro de um determinado nicho, onde pessoas questionam padrão de comportamento e de tendência. Isso não significa que as coisas estão realmente mudando ou que toda a sociedade está sendo orientada para consumir de uma outra forma”.

Pesquisas de comportamento mostrarem que os Millennials e a Geração Z optam por consumir produtos feitos por marcas que possuem um comportamento sustentável. Foto: Luiza Castro/Sul21

Segundo ela, embora pesquisas de comportamento mostrem que os Millennials e a Geração Z – quem nasceu, respectivamente, entre os anos 1980 e meados dos anos 1990 ou após 1995 até o início do ano 2010 – optam por consumir produtos feitos por marcas que possuem um comportamento sustentável, nem sempre essa intenção reflete na hora da compra. “Quando a pessoa responde no questionário não significa que ela faz isso na prática. Existe ainda um caminho muito grande entre a resposta em um questionário e o que se faz na prática”, explica.

Para a jornalista Aline, a alteração nos hábitos de consumo da sociedade trata-se de uma “mudança de paradigma social” que não irá acontecer rapidamente. “Acredito que o futuro será a ampliação do slow fashion (brechós e moda autoral), com conhecimento sobre os benefícios financeiros e ambientais e menos preconceito”, afirma. Aline defende que as pessoas precisam passar a pensar “em buscar usado algo que estão precisando antes de logo recorrer ao novo” e de “calma e auto-conhecimento antes de sair comprando em demasia e depois não saber como usar, não combinar com nada que já tem no armário”. Aline também argumenta que a sociedade precisa mudar seus hábitos e ver que “podemos seguir gostando de moda, mas reaproveitando mais, sendo mais criativos e menos manobra de tendências passageiras”. “O consumo de moda, assim como a alimentação, também são atos políticos apartidários”, diz.

‘Consumo com valor agregado’

Mariza, que é filha de costureira, defende que as roupas antigas possuem uma qualidade muito maior. “Hoje em dia temos essas empresas de facção, em que eu mando pra ti um rolo com 100 metros de tecido e tu corta todo ele em um único vestido, fazendo com que saia dali 200, 400 vestidos iguaizinhos. Depois só passa eles em uma máquina de overlock, bota uma ribana em baixo e leva para vender na prateleira. Esse vestido não tem acabamento, não tem cuidado, não tem delicadeza. Se tu olhar vestidos antigos tu vai ver que tem detalhes que não existem mais nas coisas de hoje”, explica.

‘Tenho prazer em te vender uma peça, mostrar como ela foi feita’, dia Mariza. Foto: Luiza Castro/Sul21

Nesse contexto, Mariza vê um diferencial em brechós e outros projetos que vendem roupas de segunda mão. “Eu não compro em quantidade para o brechó, eu quero ter qualidade. Tenho prazer em te vender uma peça, mostrar como ela foi feita, de quem ela foi, às vezes sei quem fez, de onde veio. Mas eu digo sempre que eu não vendo roupas, eu vendo história. As granfinas chegam aqui e perguntam onde está a arara das coisas de marca e eu respondo ‘bah, tu veio no brechó errado’. Claro que eu tenho marca aqui no meio, mas eu não vendo marca, eu vendo qualidade”, diz.

Aline, que também é dona do brechó Nina Garimpa – que funciona pelo Instagram e fisicamente na cidade de Pelotas – afirma que as pessoas que compram em brechós ou feiras de roupas estão “aumentando a vida útil de um produto e não incentivando a indústria a gastar energia e bens naturais para produzir um novo, num mundo já com excesso de lançamentos e consumismo”. “E se forem peças vintage, se valoriza e revive o estilo de décadas passadas, em peças com materiais de mais qualidade do que a maioria atual. Consome-se com um valor agregado, a memória afetiva. Uma compra com conteúdo e valor humano”, opina a jornalista.

A feira Mercado Vintage, que acontece em Porto Alegre, tem como foco roupas de época. Foto: Enrique Salgado/Divulgação

Para Mariza, a venda de peças de segunda mão também é importante do ponto de vista da sustentabilidade. “Tem que parar de fazer tanta roupa. Ano passado eu precisei colocar fora 200 calças jeans de cintura baixa. Eu coloquei fora porque não tinha o que fazer com elas, eu queria doar e ninguém queria, nem as instituições de caridade queriam. Fizeram aquilo em quantidade, foi um produto muito feio, que deixava o corpo muito feio, deformado. Eu forrei tijolos com as calças jeans, fiz bolsas de calças jeans, mil coisas, mas o resto tive que por fora, não tinha o que fazer”, conta.

Consumismo

Embora os brechós e projetos de economia circular sejam formas de adquirir roupas que já existem no mundo, a fundadora do Modefica alerta para a necessidade de que o debate sobre sustentabilidade seja incorporado à prática e que esses espaços não sejam vistos apenas como locais onde as pessoas podem consumir mais peças por um preço menor. “Quando conversamos com pessoas da feira de troca, elas nos contam que as pessoas vão com a mesma mentalidade da Black Friday, de pegar o máximo que conseguir”, conta.

Segundo ela, embora exista um maior debate acerca de optar por comprar roupas de segunda mão, na prática as compras ainda são muito norteadas apenas pelo consumo. “Ao invés de pagar R$ 200, eu vou pagar R$ 30 ou R$ 50, por exemplo. Não é que vou comprar de segunda mão porque vai ser melhor pro planeta, é porque vou acessar essas marcas por menos. Segue sendo sobre comprar mais por menos”, pontua.

Para a designer de moda Marina, é preciso que os brechós não se tornem apenas um meio de consumir mais por menos. Foto: Luiza Castro/Sul21

A designer de moda também afirma que o aumento no número de brechós não está ligado ao fato de as pessoas quererem comprar de forma consciente, mas sim ao momento de recessão enfrentado pelo país, o que faz com que as pessoas busquem os brechós como uma alternativa para consumir. Para Marina, o consumismo é um hábito difícil de mudar se não for levado em consideração como toda a sociedade foi estruturada dentro do sistema capitalista, fomentado por propagandas de produtos.

“Temos que quebrar muita coisa para ser um ser que consegue se desvencilhar de todos esses estímulos. Também tem toda a ideia de que exercermos a cidadania por meio do consumo. Para conseguir chegar nesse lugar mais simples, mais puro, que estamos precisando, temos que mudar nossa relação com esse consumo exacerbado e como exercemos a nossa cidadania”, diz Marina.


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