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13 de outubro de 2019
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12:30

De portas abertas: Centro da Juventude da Restinga trabalha para afastar jovens da violência

Por
Luís Gomes
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CJ (Centro da Juventude) Restinga. Foto: Luiza Castro/Sul21

Luís Eduardo Gomes

“Tem muitos guris que estão na vida do crime e, às vezes, sem uma oportunidade muito boa. Até tem colegas nossos que passam fome, não tem onde comer, eles vem para cá e almoçam. Tem outros colegas que passam por mais dificuldades que nós e eles ajudam aqui. Todo mundo aqui é acolhido, não importa por quem seja, sempre é bem vindo. Isso é muito bom”, diz Déryck Jardim Gonçalves, 18 anos. Ele se refere ao Centro da Juventude (CJ) da Restinga, localizado na rua Economista Nilo Wullf, uma das principais do bairro mais populoso do extremo-sul de Porto Alegre.

O CJ da Restinga é um dos seis centros da juventude criados na esteira do Programa de Oportunidades e Direitos (POD), um programa do governo do Estado tornado lei em 2013, ainda pela gestão Tarso Genro (PT), para tentar reduzir a violência e combater a evasão escolar entre jovens de 15 a 24 anos oferecendo atividades no contraturno. Estão localizados na Restinga, Lomba do Pinheiro, Cruzeiro do Sul e Rubem Berta, em Porto Alegre, além de unidades em Alvorada e Viamão, na Região Metropolitana. A construção e implementação dos centros foi financiada com recursos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), uma parceria que previa US$ 56 milhões da instituição e uma contrapartida do Estado de US$ 6 milhões.

Por falta de agilidade para dar continuidade ao projeto no início do governo de José Ivo Sartori (MDB), o Estado esteve ameaçado de perder este recurso, mas o projeto saiu do papel a partir de 2017, quando a então secretária de Desenvolvimento Social, Trabalho, Justiça e Direitos Humanos, Maria Helena Sartori, assinou o termo de cooperação com Organizações da Sociedade Civil (OSCs) para a gestão desses centros.

O CJ da Restinga foi inaugurado oficialmente em dezembro de 2017, ainda que já estivesse recebendo jovens em serviços de acolhimento desde novembro em um prédio improvisado do bairro. Déryck começou a frequentar ainda no final de 2017. Ele conta que um amigo tinha começado a fazer cursos no centro e acabou se interessando. Nem sabia como funcionava. Apareceu um dia em uma das aulas e assinou a chamada. “Eu sou meio intruso”, diz. Continuou aparecendo nos dias seguintes. Só depois de algumas aulas, quando já estava fazendo as atividades, foi informado de que não estava inscrito corretamente.

Fotografias tiradas pelos alunos do curso de Fotografia são exibidas em parede do CJ | Foto: Luiza Castro/Sul21

Hoje, ele é um veterano do CJ. Já tem os certificados dos cursos de Informática, Fotografia, Poesia Marginal, Justiça Restaurativa, entre outros que já não lembra de imediato. “Aprendi a montar e desmontar computador, fiz curso de Word, de Excel. Aprendi a mexer em câmera. Eu nunca tinha pegado numa câmera antes”, diz. Déryck conta que sua mãe nunca deixava ele mexer com “coisa de fogo”, mas agora, no curso de Culinária, pode. Já aprendeu a fazer massa.

Com 18 anos, no primeiro ano do Ensino Médio, Déryck está esperando a resposta do Exército para ver se conseguiu “pegar quartel” para o ano que vem. Caso não consiga, espera que todos os certificados que já acumulou no CJ o ajudem a arrumar um emprego.

Mas, talvez tão importante quanto a formação pessoal que os cursos lhe trouxeram, foi a formação cidadã. “Antes do CJ, eu era um guri solitário, ficava só pelos cantos, não gostava de falar com ninguém. Eu fui aprendendo aqui, fui conhecendo as pessoas, comecei a falar com mais gente, aprendi a conversar, a falar sobre mim. Eu guardava tudo para mim, e isso me magoava muito, agora eu acho um amigo confiável e falo. Aprendi isso também”.

Cursos que o ajudaram também a escolher os caminhos a não seguir. Como, infelizmente, acabaram seguindo dois amigos que fez no CJ. “Eu dizia para eles: ‘vai para o CJ’. Eles diziam: ‘ô, meu, não tô indo mais’. Quando eu fui ver, tavam cheirando, em outras coisas. E tavam me levando para o mau caminho também. Mas depois eu abri a consciência e vi que não era aquilo que eu queria. Eu comecei a mudar de caminho, mas eles ficaram. Não consegui trazer eles para cá de novo”.

Ketulin, Geovani, Róbson e Déryck são alguns dos jovens que frequentam o Centro da Juventude da Restinga | Foto: Luís Eduardo Gomes/Sul21

Mobilização pelo CJ

Em meados de setembro, a comunidade da Restinga se mobilizou em prol do CJ. Havia começado a circular uma informação de que o governo do Estado não iria renovar o contrato firmado com a OSC Amurt-Amurtel, a parceira que geria o centro e que estava com o contrato para vencer neste mês de outubro. O temor da comunidade era de que os serviços pudessem ser interrompidos ou que, mesmo que uma nova parceira fosse contratada, houvesse quebra de vínculo entre os jovens e os atuais educadores, coordenadores, psicólogos e assistentes sociais que atuam no local. Pessoas que já haviam se tornado referência na vida daqueles jovens e a quem eles chamam de “sor” e “sora”.

Mais de 400 assinaturas foram colhidas em um abaixo-assinado, manifestações foram feitas, os jovens se mobilizaram colando cartazes nas janelas externas pedindo a manutenção do serviço, prometendo resistir. No dia 4 de outubro, Pablo Geovane dos Santos, coordenador-geral do CJ, recebeu o termo de renovação do contrato até outubro de 2020 pelo atual secretário de Justiça, Cidadania e Direitos Humanos, Catarina Paladini. “Eu tava consciente, tava falando assim: ‘bah, não vai fechar o CJ, não pode’. E foi o que deu. A gente lutou e conseguiu”, diz Déryck.

Pablo explica que o CJ da Restinga, bem como os outros centros da juventude, operam em três eixos: sócio-afirmativo, sócio profissional e de jovens multiplicadores. No eixo profissional, são nove opções de cursos profissionalizantes, entre as quais os mais procurados são nas áreas de Informática, Administração, Culinária e de Embelezamento. Pablo diz que um dos sucessos é a oficina de cabelos-afro, tendo passado por um “boom” recentemente.

Pablo Geovane dos Santos, um dos coordenadores do CJ | Foto: Luiza Castro/Sul21

No eixo sócio-afirmativo, o trabalho passa por oficinas e cursos que discutem questões raciais, homofobia, sexualidade, gênero, etnia, meio-ambiente, entre outros temas. Também é realizado um forte trabalho na questão da saúde mental e de enfrentamento de estigma, o que passa, por exemplo, por envolver os familiares, trazer os pais para conversar com os profissionais do CJ para que eles também possam compreender as situações pelas quais os jovens passam. Já o eixo de multiplicadores é destinado a formar jovens que possam espalhar as práticas desenvolvidas na instituição pela comunidade. Sandra Espíndola, outra coordenadora do centro, destaca que um dos focos desse trabalho passa, por exemplo, pela difusão de técnicas de comunicação não-violenta, de diálogo para a paz e de justiça restaurativa. Como é voltado para o contraturno escolar, também há atividades de reforço para alunos com deficiências em algumas disciplinas.

Geovani de Oliveira Silveira, 21 anos, é outro “veterano” do CJ. Começou a frequentar o Centro no final de novembro de 2017, antes da inauguração oficial e quando o prédio ainda estava recebendo retoques para a abertura. “Eu passava aqui, via o pessoal e vim perguntar. Fui bem acolhido na recepção e assim eu fui desenvolvendo com o pessoal, criando afetividade”, diz.

Já fez os cursos profissionalizantes de Administração e Informática, mas diz que é a parte de formação cidadã a que mais lhe agrada. “O desenvolvimento que eu aprendi como educando, eu quero levar para outras jovens”, afirma.

Para ele, o CJ é mais do que um centro de curso, já é um segundo lar. “É como uma segunda família. A gente vem para cá, desabafa com alguém, tanto sobre o teu lado pessoal, como profissional”. Ele só lamenta que não haja outros espaços como esse na Restinga para crianças. “Eu me identifico com os jovens que frequentam aqui, porque eu sou jovem. Eu gostaria que as crianças tivessem esse espaço e essa oportunidade como eu estou tendo”, diz Geovani, que tem um filho pequeno.

Cursos na área de Informática estão entre os mais procurados no centro | Foto: Luiza Castro/Sul21

O CJ funciona das 8h ao 12h, pela manhã, das 13h às 17h, pela tarde. Os coordenadores destacam que a primeira hora é sempre um momento de socialização, de “brincadeira” entre os jovens, com os cursos começando 8h30 e 13h30. Há um intervalo de 15 minutos para alimentação na metade.

Talvez um dos serviços mais importantes oferecidos seja justamente a questão da segurança alimentar. Muitos dos jovens são oriundos de famílias em situação de alta vulnerabilidade social, que não têm condições de prover três refeições diárias, o que torna a alimentação oferecida no CJ um elemento importante do serviço prestado. Sandra destaca, no entanto, que a alimentação não é tratada como uma questão assistencial, porque, além de considerarem se tratar de um direito básico dos jovens, também há um componente educacional, pois os envolve no processo de produção e faz com que trabalhem com dietas lactovegetarianas, sem refrigerantes.

Alimentos produzidos nas aulas de Culinária seguem dieta lactovegetariana | Foto: Luiza Castro/Sul21

Como funciona a partir da lógica de “portas abertas”, não há nenhuma exigência prévia além da idade para quem se interessar pelas atividades. Isso significa que os centros da juventude são provavelmente a principal alternativa para jovens egressos dos sistemas sócio-educativo e prisional buscarem a reinserção na sociedade e no mercado de trabalho.

Os coordenadores explicam que o CJ faz um trabalho voltado para adequar suas atividades ao perfil de cada jovem. O primeiro momento de acolhimento é o estabelecimento de um Plano Individual de Realização (PIR), em que é traçado, junto com o jovem, um caminho a percorrer que seja adequado às necessidades e à personalidade dele.

Róbson dos Santos Cunha, 23 anos, tem uma deficiência intelectual. Ainda assim, graças a esse trabalho voltado para moldar as atividades às necessidades dos alunos, é um ávido frequentador dos cursos oferecido pelo CJ. Já fez o curso de Fotografia e agora está fazendo Culinária. “Gosto de tirar foto, gosto de aprender a fazer comida, culinária”.

Sandra Espíndola, coordenadora do CJ | Foto: Luiza Castro/Sul21

Sandra destaca que o CJ tenta estabelecer uma relação com os diversos serviços das redes públicas de saúde, educação e assistência social, mas que a maioria dos jovens acaba chegando mesmo de forma espontânea, por indicação de amigos ou familiares.

Róbson conheceu o centro por recomendação da mãe de um amigo. Já Ketulin do Nascimento Vieira começou a frequentar o CJ em abril deste ano, influenciada pela irmã, que já frequentava o espaço e achou que ela iria gostar. O primeiro curso que fez foi Fotografia (as fotos feitas pelos alunos estão disponívis no perfil @olharesdaretinga, no Instagram). Faz agora o curso de Culinária. A jovem de 20 anos diz que o centro mudou bastante sua vida. “Eu sei interagir mais com as pessoas, sei fazer mais amizades. Antes, eu era mais fechada. Eu sei tirar uma foto agora bem, tô aprendendo bastante coisa na Culinária, também na Administração, que é ótimo. Me ensinou bastante”.

Ainda no primeiro ano do Ensino Médio, a jovem “tem certeza” que o que tem aprendido irá ser útil na sua vida profissional. “Espero usar no meu futuro, né? Mais para frente, arrumar um serviço melhor”, diz. “A nossa vila é muito perigosa, tem vários jovens no mundo do tráfico. Aqui acolhe qualquer jovem até os 24 anos. Hoje em dia, tem muitos jovens com 15, 16, nessa vida do tráfico. Aqui é uma oportunidade”.

Nova sede permanecente do centro está em fase final de obras | Foto: Luiza Castro/Sul21

Prontos para mudança

Diariamente, entre 100 e 150 jovens passam pela instituição, mas o número de atendidos é maior. Até setembro de 2019, 1.185 já haviam passado pelo Centro da Juventude da Restinga. Desses, 428 já foram encaminhados para postos de aprendizagem, estágio, trabalho ou para iniciativas de empreendedorismo. Trinta foram efetivados em empresas do próprio território.

A expectativa é que o número de atendidos possa até quadruplicar em breve. Isso porque, até o final do ano — ao menos é o que promete o governo do Estado –, o CJ deve migrar do atual prédio alugado, de três andares, para uma sede permanente, financiada com recursos do BID e cujas obras estão em fase de acabamento. O novo espaço, que tem cinco andares amplos, poderá receber até 600 pessoas por dia, segundo Pablo. Contará com salas para dança e yoga, academia, estúdio de música e uma grande cozinha, com diversas bancadas, cada de uma delas com espaço para até quatro pessoas trabalharem simultaneamente. “Como no Masterchef”, brinca Sandra.

Espaço para aulas de Culinária está em fase de acabamento e a espera de equipamentos no novo prédio | Foto: Luiza Castro/Sul21

O CJ conta atualmente com 19 funcionários, pois está operando com um déficit momentâneo de três em relação ao normal. Quando ocorrer a mudança para o prédio novo, localizado na mesma rua, a poucas quadras de distância da sede atual, deverão ser contratados mais quatro funcionários. Segundo Pablo, entre folha de pagamento, insumos para as aulas e despesas fixas, o custo operacional mensal do centro supera os R$ 100 mil, também financiados pelo BID — os primeiros anos do projeto serão bancados pela parceria com o banco.

Róbson diz que está ansioso pela mudança. “Eu levo minha irmã pro colégio e passo todo dia ali. Fico olhando”. Déryck classifica essa expectativa como uma “alegria afu”. “Eu comecei de baixo, junto com eles. Imagina chegar lá e ver um prédio grandão. Também vai ter mais oportunidade para os outros, né? Para pessoas em cadeira de rodas, coisas assim. E vai ter espaço para mais pessoas, vai ajudar mais gente ainda”.

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21

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