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1 de setembro de 2019
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12:21

Patrimônio Histórico: ‘Quanto mais perto a comunidade estiver dos bens, mais eles serão preservados’

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Sul 21
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Mesa: Patrimônio Histórico. Foto: Maia Rubim/Sul21

Renata Cardoso

As identidades culturais, que formam as pessoas e as comunidades, são construídas através de muitos processos históricos e sociais. O sentimento de pertencimento a um determinado lugar, as rotinas e os costumes fazem com que cada indivíduo construa sua própria forma de ser, em contato com as mais diversas manifestações culturais. As cidades, enquanto aparato arquitetônico, têm importante papel nesse processo: as ruas e edificações contam histórias e ajudam a lembrar do passado para projetar o futuro.

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Em um cenário de instabilidade social e econômica, os recursos para investir na preservação de bens culturais são cada vez menores. Para falar sobre as estratégias de preservação desse patrimônio, Andrea Lanna Mendes Novais, da Promotoria Estadual de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico do Ministério Público de Minas Gerais, esteve presente no o 6º Seminário de Exercício Profissional promovido pelo CAU/RS, no Centro Histórico-Cultural da Santa Casa de Porto Alegre, nos dias 29 e 30 de agosto.

Andrea Lanna Mendes Novais. Foto: Maia Rubim/Sul21

Em sua fala, Andrea trouxe os exemplos e os desafios do Estado mineiro. “Como temos cada vez menos recursos, temos que ser criativos. Costumo dizer que quem trabalha com preservação de bens culturais mata um leão por hora. Em Minas, a mineração muitas vezes está no mesmo local onde estão esses bens, e isso faz com que tenhamos adversários muito grandes. Muitas vezes perdemos, mas as vezes que ganhamos são muitos estimulantes para continuar atuando”, destacou.

A promotora também falou sobre a centralidade do engajamento da população para a preservação dos bens históricos e defendeu a criação de redes de apoio envolvendo a comunidade para evitar o furto de artefatos e a importância de entrar em contato com as autoridades caso percebam anormalidades nos locais. “Com a ajuda das comunidades temos conseguido grandes avanços, como tombamento de locais, transformação de parques em reservas, etc”. Além disso, destacou a necessidade da organização de inventário dos bens culturais. “Atualmente em Minas Gerais temos 734 peças desaparecidas entre quadros, imagens, e outros”, comentou.  De acordo com Andrea, quanto mais perto a população estiver dos bens, mais eles serão preservados. “Uma das medidas preventivas é promover o uso, trazer as pessoas para esses locais. O patrimônio cultural não precisa ser só museu: as edificações podem ser preservadas e ter os mais diferentes usos. Por que não morar em edificações históricas?”, questionou.

Renata Horowitz, presidente IPHAE RS. Foto: Maia Rubim/Sul21

Também participaram do debate sobre a preservação do patrimônio histórico a presidente do IPHAE/RS, Renata Horowitz, o Promotor de Justiça Especializada de Vacaria, Luis Augusto Gonçalves Costa, e o arquiteto e urbanista do IPHAN Luiz Antônio Bolcato Custódio. Renata Horowitz trouxe um panorama da preservação cultural no Rio Grande do Sul, e afirmou que o tema não pode ser tratado como uma pauta negativa. Para ela, um trabalho de educação patrimonial sistemática para a manutenção dos bens e uma boa comunicação com a sociedade são fundamentais para que o assunto seja melhor compreendido. O Promotor Luis Augusto Gonçalves Costa também salientou a importância da educação para preservação e falou das dificuldades das cidades do interior para lidar com o assunto e suas relações com os sistemas econômicos. “No caso de alguns municípios, a falta de desenvolvimento econômico ajudou a preservar a arquitetura. Já em outras, em que o avanço econômico não veio acompanhado de uma cultura da preservação, especialmente nos anos 70 e 80, houve grande destruição”, afirmou.

Luiz Antônio Custódio, Arquiteto e Urbanista do IPHAN. Foto: Maia Rubim/Sul21

Trazendo o assunto para o âmbito da arquitetura e urbanismo, Luiz Antônio Bolcato Custódio, lembrou que lidar com o patrimônio histórico é um dever dos arquitetos, por se tratar de uma matéria especializada. “É preciso ter um conhecimento que envolve teoria e história do restauro, tecnologia aplicada à preservação, identificar e tratar as manifestações patológicas e um ponto fundamental: a ética. Outro ponto básico nesse processo é a autenticidade. O autor do projeto é o “primeiro homem”, ao restaurar é preciso entrar com humildade, respeitando o projeto anterior, mas analisando cada caso. É preciso aprender a observar antes de fazer a intervenção”, destacou.

Confira a entrevista com Andrea Lanna Mendes e Luis Augusto Gonçalves Costa:

Todas as pessoas podem contribuir para a proteção do patrimônio cultural das cidades?  Como cada um pode fazer sua parte?

Andrea: Está na Constituição. A preservação do patrimônio é de responsabilidade do poder público e de toda sociedade. A sociedade tem muito poder nas mãos e ela pode atuar de diversas formas, como na criação de ONGs direcionadas à conservação, ajudando na vigilância e denunciando aos órgãos competentes alguma irregularidade observada nos patrimônios. A sociedade civil também pode cobrar do município, Estado ou União atitudes para a preservação do patrimônio cultural, ou ainda, participar diretamente das ações de restauração, fazendo os cursos de formação e executando a obras.

Como sensibilizar a população e os poder público sobre a necessidade de conservação e ou revitalização?

Andrea: Em Minas Gerais há uma lei estadual de 1995 que faz a redistribuição do ICMS que é destinado aos municípios, sendo que 1% desse valor é destinado aos municípios que têm políticas relacionadas ao patrimônio cultural. Dentre essas políticas é necessário que se tenha toda a legislação relacionada ao patrimônio cultural, bens tombados, bens inventariados, conselhos de patrimônio cultural e também ações de educação sobre o assunto. Eu entendo que a existência dessa lei fez com que os municípios se interessassem em realizar essas ações por causa do aporte financeiro, mas isso trouxe um grande avanço.

‘A gente ainda tem que trabalhar muito na questão da educação patrimonial’. Foto: Maia Rubim/Sul21

Quais os principais desafios para a manutenção do patrimônio público?

Andrea: A gente ainda tem que trabalhar muito na questão da educação patrimonial porque a gente só protege aquilo que a gente conhece.  A falta de recursos também é um grande impasse. Os recursos do ICMS Cultural de Minas Gerais não são vultosos para fazer uma obra de restauração inteira, mas neCAU/RS, sse caso temos que apostar na preservação. Quando o dano ocorre CAU/RS, uma das formas para resolver a situação é envolver a população nessa restauração e tentar encontrar junto com os órgãos públicos verbas provenientes de medidas compensatórias.

 Luis Augusto: Do meu ponto de vista, a pouca conservação do patrimônio histórico do Rio Grande do Sul se deve à falta de educação para a preservação da comunidade em geral.  Se nós tivermos o apoio da população, eu acredito que os recursos financeiros não serão um obstáculo. Precisamos fazer um grande trabalho de educação cultural, patrimonial e histórica para essa comunidade ganhar força e facilitar as formas de patrocínio para preservação e restauração, pois temos algumas alternativas legais, como a Lei Ruanet outros incentivos fiscais e até patrocínios diretos para a restauração desses bens.

 Peças como imagens e quadros podem ser considerados patrimônios culturais?

Andrea: Em caso de igrejas ou de bens que tenham um acervo em seu interior o tombamento inclui tudo que está ali dentro, tanto móvel como integrado, como os altares e púlpitos e isso precisa estar bem estabelecido no tombamento. Em relação aos furtos de peças sacras: o acervo das igrejas não pode ser comercializado. Entretanto esses bens têm muito valor comercial. Nós temos trabalhado na promotoria para resgatar 60% do nosso arquivo que está desaparecido. Graças às campanhas que temos feito, essas peças têm aparecido, e mesmo que vagarosamente estamos as devolvendo para os lugares da onde nunca deveriam ter saído. Tanto a venda como a receptação desse tipo de obra são considerados crimes.

Luis Augusto Gonçalves Costa, Promotoria de Justiça Especializada de Vacaria. Foto: Maia Rubim/Sul21

Como a Promotoria de Justiça pode atuar a favor da preservação do patrimônio histórico no Rio Grande do Sul?

Luis Augusto: A gente já atua há bastante tempo com esse tema. Todas as promotorias do Estado podem receber denúncias. Temos um canal de ouvidoria dentro do site do MP que qualquer pessoa que queira pode fazer uma denúncia, que será devidamente apurada.

Você poderia falar mais sobre o caso da Catedral de Nossa Senhora da Oliveira? 

Luis Augusto: O primeiro impasse foi o cultural, e o segundo o da própria religiosidade. Quem estava fazendo a reforma em um lugar que deveria estar sendo revitalizado era patrocinado pelos próprios fies. Então, a igreja e os fiéis achavam que aquilo era deles, e não mais da comunidade. Esse foi o grande choque da ação judicial. Foi todo um trabalho mostrar que a igreja ia além da visão católica e religiosa e que fazia parte do patrimônio da cidade, pois ela foi construída pela comunidade do município há cerca de 100 anos e hoje é uma referência. Quando as pessoas saem de Vacaria e voltam a visitar a cidade, a catedral é uma forma de voltar ao passado e é isso que tem que ser preservado para que se tenha um sentimento de pertencimento.


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