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15 de setembro de 2019
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12:07

Marina Ludemann: “Democracia precisa de cultura, de educação e de um mínimo de igualdade”

Por
Sul 21
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Marina Ludemann: “Ao contrário do que se esperava com o desenvolvimento das novas mídias e tecnologias digitais, não houve mais diálogo, muito pelo contrário”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

Marco Weissheimer

Quando chegou pela primeira vez no Brasil para trabalhar no Goethe Institute, em São Paulo, em 1992, a alemã Marina Ludemann acompanhou a mobilização da juventude no processo de impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello com muita esperança de que ele fosse abrir um novo período para a democracia e a sociedade brasileira. Em 2002, ela voltou para a Alemanha no momento em que Luiz Inácio Lula da Silva era eleito presidente da República. Em 2013, ela retornou ao Brasil, desta vez para dirigir o Goethe Institute em Porto Alegre, e presenciou as grandes manifestações de rua de 2013. Agora, em 2019, Marina Ludemann está mais uma vez de partida. O seu próximo destino é a Bulgária, onde assumirá a direção do Goethe em Sofia.

Em sua passagem por Porto Alegre, ela procurou fazer do Instituto Goethe um espaço de promoção de diálogo, de debates e de promoção de intercâmbio cultural e artístico. Entre outras iniciativas, ela fez do muro do instituto um espaço de questionamento cultural, o que, em 2018, provocou a ira de setores ultraconservadores da cidade e uma pixação no muro. “O muro é uma galeria a céu aberto e um espaço público. Acho muito importante usar os espaços públicos e não ficar confinados entre quatro paredes. O espaço público é de todo mundo e não só de alguns que se acham ofendidos por uma postura mais democrática”, diz Marina. Hoje o muro traz um painel representando a história da resistência política das mulheres negras da história do Brasil.

Em entrevista ao Sul21, Marina Ludemann fala sobre a sua passagem sobre o Goethe-Institute em Porto Alegre e sobre o foco de atuação que procurou estabelecer aqui e que pretende seguir implementando na Bulgária. “Na Europa nós também temos hoje uma direita crescendo, intolerância crescendo, a desigualdade está crescendo no mundo inteiro nas últimas décadas. Então, acho que, mesmo que eu esteja indo para o outro lado do Atlântico, os problemas com os quais vou conviver serão quase os mesmos”, afirma.

Sul21: A tua passagem pelo Brasil se deu em dois momentos marcantes da vida política do país. Como foi isso?

“As pessoas estão sendo permanentemente manipuladas por notícias falsas”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

Marina Ludemann: A minha primeira chegada ao Brasil ocorreu em 1992, durante o processo de impeachment contra Collor. Fiquei dez anos em São Paulo, no Instituto Goethe, como responsável pela programação cultural. Quando cheguei em 92 fiquei impressionada com as manifestações contra Collor, mas logo depois deu para perceber que os governos que se seguiram a ele também não conseguiram reduzir a desigualdade. Quando saí, em 2002, estava cheia de esperança. Lula tinha vencido as eleições. Voltei para a Alemanha, onde trabalhei mais dez anos para o Goethe, mas a minha vontade de voltar para o Brasil era muito grande.

Quando cheguei pela segunda vez ao país, em 2013, todo mundo falava do boom dos estados BRICS, do crescimento do Brasil. Eu estava cheia de esperança. Não queria voltar para São Paulo, mas vir para Porto Alegre mesmo. Soube do Orçamento Participativo, do Fórum Social Mundial e queria conhecer o que estava acontecendo aqui. Além disso, é uma das cidades com melhor qualidade de vida do país. Cheguei em Porto Alegre em junho de 2013, justamente quando começaram as manifestações, e aluguei um apartamento na Praça da Matriz. O entorno da praça era cheio de tapumes que estavam cobertos pelas reivindicações dos manifestantes, como educação, transporte público, fim da corrupção e muitas outras. De novo, como em 1992, fiquei cheia de esperança.

Sul21: Agora vai, pensou…

Marina Ludemann: Sim, agora vai. Logo depois, em 2014, veio a Copa e nos muros no entorno da Praça da Matriz estava escrito “Não vai ter Copa”. Eu entendi por que. Os 7×1 da final da Copa não me deixaram nem um pouco orgulhosa. Senti pena das pessoas que não perderam só um jogo de futebol.

Da minha sacada, da Praça da Matriz, pude observar também as manifestações contra o fim das fundações e as privatizações. E nunca vou esquecer o dia 17 de abril de 2016, quando ocorreu a votação pelo impeachment de Dilma Rousseff. Eu entendi aí que o problema do Brasil era estrutural.

Sul21: A sua passagem pelo Instituto Goethe, em Porto Alegre, foi marcada, entre outras coisas, por iniciativas em defesa da liberdade de expressão, da democracia e da cultura. Algumas delas, inclusive, despertaram reações de grupos conservadores da cidade. Como definiria a sua linha de atuação no instituto?

Marina Ludemann: Meu foco no Instituto Goethe era discutir um pouco o que é importante para uma democracia. Democracia precisa de cultura, de educação e de um mínimo de igualdade. Desenvolvemos, em parceria com o Sul21, uma série de debates chamada “Conversas Cidadãs” para tratar desses temas. O diálogo é outro elemento fundamental para termos uma democracia. Uma coisa que deu para perceber durante todos esses anos é que, ao contrário do que se esperava com o desenvolvimento das novas mídias e tecnologias digitais, não houve mais diálogo, muito pelo contrário. As pessoas estão sendo permanentemente manipuladas por notícias falsas, sem verificar o que é verdade e o que não é. Espalhou-se uma cultura de ódio na sociedade e uma falta de diálogo. O próprio Instituto Goethe foi vítima disso por causa do nosso muro. A nossa postura foi de continuar defendendo e oferecendo o diálogo.

“A arte tem essa função de questionar, de duvidar, de abrir outros horizontes de pensamento”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

Quando começaram a nos atacar, em maio de 2018, a gente achou que era importante dialogar sobre qual é a função da arte. Não é, como o arcebispo disse, só beleza, bondade e misericórdia. A arte tem essa função de questionar, de duvidar, de abrir outros horizontes de pensamento, de desacomodar. Queríamos discutir isso com o público, mas os que nos criticaram não quiseram saber de debater. É muito difícil conseguir esse diálogo nos dias de hoje, mas a gente não pode parar e desistir. Continua sendo um foco do nosso trabalho e tenho certeza de que o meu sucessor vai continuar nesta linha.

Hoje o muro traz um painel pintado pelo artista Artur Soares representando a história da resistência política das mulheres negras da história do Brasil. O muro é uma galeria a céu aberto e um espaço público. Acho muito importante usar os espaços públicos e não ficar confinados entre quatro paredes. O espaço público é de todo mundo e não só de alguns que se acham ofendidos por uma postura mais democrática.

Sul21: Com que sentimento você deixa o Brasil considerando o que está acontecendo a partir da eleição de Jair Bolsonaro? Como definiria a situação no país hoje?

Marina Ludemann: Por um lado, saio muito triste porque eu estava cheia de esperança. Por outro lado, acho que não se pode ficar deprimido. Em junho nós fizemos, junto com a Aliança Francesa, com a curadoria de Marcos Melo, uma mostra de cinema que teve como título “Insurreição”. Entre os dezesseis títulos que o Marcos juntou, estavam obras como o “Espero tua revolta”, da Eliza Capai e filmes sobre Maio de 68. Deu pra ver que tem resistência. Sempre teve. Enquanto tivermos seres humanos haverá essa esperança de liberdade, igualdade e fraternidade e luta por um mundo mais justo.

Há cientistas políticos e sociólogos que dizem que um alto nível de desigualdade acaba se tornando intolerável, mas não diminui por si só. Inicia processos como guerras, conflitos sociais e revoluções que levam à sua redução. Vimos isso ocorrer na Europa, onde o feudalismo acabou. Um dia, isso vai acabar no Brasil também. Tenho certeza disso. A pergunta que fica é: quanto vai ser destruído até lá? O que vai sobrar? Torna-se cada vez mais importante a luta pela preservação dos recursos naturais. É uma luta em várias frentes.

Sul21: Você sai de Porto Alegre e está indo para Sofia, na Bulgária. Como está avaliando essa mudança de cenário e de conjuntura?

“Na Europa nós também temos hoje uma direita crescendo, intolerância crescendo”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

 Marina Ludemann: Acho que essa mudança nem é tão grande como pode parecer, pois o mundo está cada vez mais globalizado e os problemas interligados. Não dá para culpar só o Brasil e o governo brasileiro pelo que está acontecendo. A Alemanha e outros países da Europa estão apoiando também ao se aproveitar do que está acontecendo no Brasil. Aproveitando os preços baixos da soja, beneficiando os interesses da indústria automobilística alemã, com a Volkswagen construindo uma nova fábrica para usar a mão de obra barata no Brasil, entre outros exemplos. É uma economia globalizada e os problemas são globalizados.

Na Europa nós também temos hoje uma direita crescendo, intolerância crescendo, a desigualdade está crescendo no mundo inteiro nas últimas décadas. Então, acho que, mesmo que eu esteja indo para o outro lado do Atlântico, os problemas com os quais vou conviver serão quase os mesmos. Já que os problemas estão se globalizando, considero muito importante o que é um dos eixos do nosso trabalho, que é promover o intercâmbio cultural de intelectuais, de artistas, de pessoas que querem conhecer outros países e outras culturas. Temos trabalhado com isso nos últimos anos e vamos continuar. Essa é a nossa razão de ser. Acho que conseguimos fazer muitos laços com a Alemanha. Fizemos uma grande exposição, “O poder da multiplicação”, que foi a Leipzig, promovemos residências de artistas e cineastas gaúchas em Berlim, entre outras coisas. Acredito que esses laços são muito importantes para globalizar também as coisas boas e entender que somos um mundo só.


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