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31 de agosto de 2019
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19:24

‘Uma das maiores demandas é identificar como melhorar uma moradia com poucos recursos’

Por
Sul 21
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Cláudia Fávaro. Foto: Maia Rubim/Sul21

Renata Cardoso

A partir da pergunta “Para quem serve meu conhecimento?”, Cláudia Fávaro, arquiteta e urbanista, conselheira do IAB e ativista, conta ter percebido que tudo o que tinha aprendido na universidade deveria servir a pessoas como ela: que tinham poucas condições financeiras e de acesso a diversos direitos garantidos pela Constituição, como a moradia. Cláudia foi uma das participantes da mesa sobre a lei de Assistência Técnica de Habitação de Interesse Social (ATHIS), durante o 6º Seminário de Exercício Profissional, realizado pelo Conselho de Arquitetura e Urbanismo (CAU/RS), entre quinta (29) e sexta-feira (30).

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A história de Cláudia é semelhante a de muitos jovens que têm o sonho de se formar, porém não dispõem de condições financeiras para se manter dentro de uma universidade, especialmente se ela for privada. “Demorei nove anos para concluir o curso. Durante esse período entrei para o movimento estudantil. Fui eleita para o DCE e no dia da nossa posse dois membros do Movimento sem Terra (MST) nos presentearam com uma bandeira. Aquilo causou um reboliço dentro da universidade. Mas eu defendi que naquela gestão o movimento estaria presente”, contou. Desde antão, ela afirma que o viés social e humanista faz cada vez mais parte de sua carreira e de sua vida.

Após se formar, em 2008, Cláudia trabalhou junto ao MST no setor da habitação. “Esse trabalho me fez aprender muito”, garantiu. Em 2016, ela e outros parceiros construíram o escritório colaborativo MÃOS Arquitetura: Terra. Território, um espaço que se propõe a “demonstrar que é possível construir uma cidade em que prevaleçam relações mais democráticas, participativas e igualitárias”, e tem como objetivo “levar a arquitetura até os espaços em que ela não chega, assessorando assim, comunidades de baixa renda, a um custo acessível e por vezes gratuito”. Para realizar esse tipo de trabalho, ela explica que é necessária muita humildade: “As pessoas, acolhem o nosso conhecimento e compartilham o delas. Agora, trabalhando com indígenas, eu vejo o quanto eles têm a ensinar, é um aprendizado cotidiano. A gente não vai estar no local apenas para dizer o que certo, a gente vai estar lá parra aprender também”, defende.

Cláudia Fávaro particou de mesa com o presidente do CAU/RS, Tiago Holzmann da Silva, e a defensora Isabel Wexel. Foto: Maia Rubim/Sul21

A Defensora Pública do Rio Grande do Sul Isabel Wexel também integrou a mesa sobre ATHIS. Em entrevista, ela lembrou a história de exploração do Brasil e o aumento da pobreza. “Nós não tivemos nenhuma política para diminuir a desigualdade, em nenhum governo. Nós tivemos algumas soluções pontuais que por fim não levaram a efetivamente acabar com a desigualdade social”, afirmou. Para Isabel, a Defensoria Pública nada mais é do que um agente de transformação social: “O que ela faz é empoderar a população extremamente pobre que nunca teve acesso à justiça. A partir do momento que tu empodera essas pessoas, elas passam a lutar por seus direitos. Há uma desigualdade muito latente e uma guerra de classes muito forte, especialmente em governos de extrema direita. Nós temos muitas favelas no Brasil e pouquíssimas políticas habitacionais, pouquíssimos empregos e formas para que as pessoas possam sobreviver. Ter políticas habitacionais funciona sim, empoderar as pessoas para que elas tenham escolhas soluciona os problemas. Agora, por que as políticas públicas fecham
os olhos para isso, eu não sei”, afirmou.

Confira a entrevista com Cláudia Fávaro:

Qual é a principal demanda que tu observas nas comunidades de baixa renda em relação à moradia? 

A segurança da posse é o passo inicial para a pessoa se sentir segura para investir e ir melhorando sua habitação. A insegurança da posse vem com o despejo, com violência, com alguma coisa que vai tirá-la dali. Na periferia como a autogestão é o que impera, ou seja, a pessoa com os próprios conhecimentos e com a ajuda da família acaba construindo a sua moradia, nem sempre ela traz as melhores soluções do ponto de vista do conforto ambiental, da sustentabilidade, da ventilação, da iluminação… Então, acho que além da questão da posse, uma das maiores demandas que temos é identificar numa moradia o que com poucos recursos pode ser feito para melhorar sua qualidade.

Você falou que esse trabalho junto às comunidades muda a vida das pessoas.  Você poderia nos dar um exemplo para ilustrar isso.

O caso da Vila Dique, que é uma comunidade na qual sobraram 400 famílias de quase duas mil. Elas foram removidas por causa da ampliação da pista do aeroporto. Eu acompanhei essa remoção desde o início e eu chamo de uma das remoções mais longas e violentas da história de Porto Alegre, por que desrespeitou todos os tradados internacionais do ponto de vista da participação popular, do acesso à informação, da disponibilidade de equipamentos técnicos…

A gente trabalhou com as 400 famílias que ainda ficaram lá resistindo e que não tinham condições de ir para o empreendimento do Minha Casa Minha Vida, ou porque trabalhavam com carroça, ou porque eram famílias muito grandes e não se adaptavam às condições daquele apartamento pequeno. Os apartamentos eram precários, em uma região da cidade em que havia um conflito territorial entre o tráfico de drogas. Aquilo me tocou muito, pois eram pessoas que viviam condições muito difíceis. Nem sempre a violência vem da bala, ou da agressão, a violência pode acontecer das mais variadas formas e uma maneira de se evitar isso é empoderar as pessoas: informação é poder e esse trabalho lado a lado com essas famílias me enriqueceu muito.

Você poderia falar um pouco mais sobre o teu trabalho de assessoria, com o escritório?

O MÃOS, Arquitetura. Terra. Território é um escritório que nós construímos por meio de trabalho coletivo. Hoje, nós somos oito arquitetos e dois estagiários.  A forma de ação é coletiva, cada um tem responsabilidade por um setor e como os projetos tramitam em todos os setores, de maneira geral, todos colaboram. A gente também faz mutirões de trabalho, para poder discutir um tema. A gente tem essa ideia de que são várias mãos que vão construir esse sonho, essa possibilidade, esses projetos, nossos e das pessoas. Nem sempre o trabalho é cobrado. Depende muito se é uma questão que envolva a técnica do arquiteto ou se é um caso de empoderamento em diretos. Tem coisas que são da profissional Cláudia, e outras que são da militante que quer ajudar a resolver aquele conflito.


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