Entrevistas
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31 de agosto de 2019
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11:25

‘Temos uma sociedade que nem lembra dos horrores da escravidão’, diz escritor que conta histórias do povo negro no Twitter

Por
Annie Castro
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Ale Santos utiliza o Twitter para compartilhar histórias do povo negro de diversos locais do mundo. Foto: Luiza Castro/Sul21
Ale Santos utiliza o Twitter para compartilhar histórias do povo negro de diversos locais do mundo. Foto: Luiza Castro/Sul21

O homem africano que foi exposto junto a macacos do Zoológico de Bronx, nos Estados Unidos. O holocausto promovido no Congo pelo rei Leopoldo II da Bélgica. As estratégias do líder quilombola Benedito Meia-Légua para invadir senzalas e libertar negros escravos no Brasil. A africana que foi capturada para uma turnê no Reino Unido, onde foi obrigada a viver enjaulada e mostrar seu corpo para outros homens. Essas são algumas das narrativas já publicadas pelo publicitário e escritor Ale Santos no Twitter. Há pouco mais de um ano, o escritor decidiu utilizar a ferramenta de threads para contar histórias vivenciadas pelo povo negro no Brasil e em diversos locais do mundo.

Na última semana, Santos esteve em Porto Alegre para participar do evento ‘GUMP 2019 – Storytelling e Branded Content’, onde seria um dos palestrantes. Na ocasião, conversou com o Sul21 sobre a decisão de contar a história do povo negro no Twitter, sobre o papel dessas narrativas e vivências no combate ao racismo e na recuperação da identidade de povos que tiveram suas histórias apagadas por outras culturas, sobre o livro que irá lançar em agosto e sobre a repercussão de suas threads.

Apesar de atualmente escrever sobre histórias e personagens reais, o contato de Santos com a escrita surgiu de maneira ficcional, por volta dos anos 2000, quando ele começou a jogar RPG. Por ter que produzir personagens e narrativas, Santos conta que passou a usar a imaginação para criar histórias e construir protagonistas nos quais conseguisse se enxergar. “Eu não me via muito na cultura pop, porque na década de 90 só tinha o Cirilo de famoso. Eu também estudava e morava cidade do Monteiro Lobato, que é super racista, então todo mundo acabava absorvendo os estereótipos dele. O RPG foi onde eu comecei a ter a possibilidade de criar minhas próprias histórias e construir o que eu queria para o meu imaginário”, conta.

Por ser formado em Publicidade e Propaganda e trabalhar profissionalmente com storytelling e com gamificação para empresas, desde sua primeira thread o autor busca encontrar a forma mais interessante de contar as histórias que narra em seus tuítes. “Pra mim o Twitter é entretenimento e não historiografia. Twitter é para as pessoas gostarem da história e se emocionarem e buscarem mais”, afirma Santos, que pontua que uma maneira mais criativa de contar um acontecimento é também uma possibilidade de atrair mais leitores para o que está sendo narrado.

Além de engajar mais leitores, as threads criadas por Santos também fazem com que mais pessoas aprendam a respeito da vivência de determinados personagens e povos que, ao longo dos séculos, vivenciaram o apagamento de suas histórias por parte de outras culturas. Para Santos, o ocultamento do povo negro foi um “projeto das elites da República” no Brasil, o que ocasionou um negacionismo acerca da realidade enfrentada por essas pessoas. “Chegamos hoje a uma sociedade que nem lembra dos horrores da escravidão. A gente tem alguns museus que falam sobre isso, mas a sociedade no geral não tem uma memória afetiva de que foi algo grave e doloroso para as pessoas”.

Para o autor, mesmo uma parcela da população negra brasileira desconhece violências somo aquelas do período da escravidão. “O projeto de negação que as elites fizeram foi muito forte, foi muito poderoso e, obviamente, depois entrou o projeto de eugenia, que também promoveu uma educação eugênica nas escolas e fez com que as pessoas não discutissem tudo isso”.

Nesse contexto, Santos acredita que narrativas como as suas, que se opõem à história tradicionalmente contada, são uma maneira de fazer com que essas populações sejam recolocadas na sociedade, juntamente com sua cultura e tradições. “Quando a gente começa a valorizar e a buscar narrativas que são fora desse eixo colonial, estamos na verdade promovendo uma dignidade para esses povos. Estamos recolocando eles na sociedade, reinserindo os valores, o conhecimento e as tradições deles dentro da sociedade; estamos colocando eles num nível, talvez, de igualdade com os outros povos”, afirma.

Sul21: O que te motivou a começar a contar histórias por meio de threads no Twitter?

Ale Santos: Eu sou um cara que gosta de contar histórias, que gosta de pegar o WhatsApp e ficar conversando com os amigos. Quando eu comecei a olhar pro Twitter eu achava que thread era uma coisa idiota. Só que eu vi que muita gente estava fazendo threads explicando algumas coisas, como aquele clipe ‘This is America’. Ao ver isso, eu pensei: ‘será que funciona esse conteúdo mais narrativo?’. Então, eu comecei a publicar umas threads. Fiz uma falando dos episódios do Cara Gente Branca, mas não bombou; fiz uma segunda, que aumentou um pouco meu engajamento. Eu já tinha um Twitter com quase 8 mil seguidores, porque eu tinha esse meu trabalho de blog de RPG, mas quando eu fiz uma thread que aumentou meu engajamento eu resolvi publicar mais. Aí quando eu fiz a terceira thread, que foi sobre o rei belga que colonizou o Congo, passei quatro dias recebendo notificações. Meu primeiro tuíte da thread tem um milhão de visualizações.

Naquela primeira semana eu comecei a fazer threads uma atrás da outra. Só que com o tempo eu fui percebendo que as pessoas estavam criando uma expectativa sobre o meu conteúdo e eu não precisava ficar tão desesperado assim, porque as pessoas estavam gostando. Então, eu fui me adaptando a elas e a minha audiência foi se adaptando ao que eu faço também.

Acabou que hoje, por exemplo, eu falo de política também. Eu não esperava falar de política, também ão esperava que contar histórias negras no Brasil fosse um embate político, mas quando eu comecei a contar, começaram a surgir alguns haters, pessoas criticando, questionando, me chamando de comunista, de esquerdista e todo esse tipo de coisa. Foi onde eu acabei entrando um pouco nesse lance de falar mais de política, de fazer críticas, inclusive ao atual governo.

Sul21: E por que você escolheu fazer essas threads sobre histórias do povo negro? O que te motivou na escolha desse tema?

Ale Santos: Foi mais uma autoafirmação minha. Desde quando eu comecei a estudar storytelling eu passei a ver que todos os historiadores e todos os sociólogos eram eurocêntricos. Então, eu comecei a buscar as minhas próprias referências, a querer me enxergar. Desde a minha adolescência, graças ao RPG, eu sempre estava tentando me enxergar em alguma coisa. Não sou aquela pessoa que absorve uma narrativa e simplesmente deixa ela parada. Não, meu cérebro começa a questionar onde tem algo que eu possa me enxergar nela. Por exemplo, eu nem lembro quando eu conheci as histórias que eu publiquei em threads. Eu começava a ler e ficava pensando muito nelas, então já estavam no meu imaginário há um bom tempo.

Tem uma história que eu sempre conto, que é o primeiro herói negro que eu conheci na década de 90, quando todo mundo na cultura pop só tinha o Cirilo ou o Saci. Um primo meu chegou com um CD chamado ‘Black 2000’, que é aquele cd pirata de hip hop. Foi quando eu vi 50 Cent e toda essa galera que repovoou meu imaginário com outras figuras. Eu falei ‘‘é esse cara que eu quero ser’. Não foi uma motivação específica para o Twitter, mas uma imaginação que eu tenho para a vida que é de buscar uma representatividade. É muito uma busca por representatividade.

O escritor esteve em Porto Alegre para participar do evento ‘GUMP 2019 – Storytelling e Branded Content’, onde seria um dos palestrantes. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21: Como você escolhe quais são as histórias que irão virar threads?

Ale Santos: A minha curadoria é muito pela emoção. Talvez esse seja um dos motivos pra elas se espalharem muito no Twitter. Eu busco uma história que me emocione, porque se ela me emocionar eu sei que ela vai emocionar outras pessoas negras também. Se eu tô acompanhando uma história e não sentir que ela me tocou de alguma maneira, talvez eu não escreva. Eu fiz uma thread do Ota Benga, que foi aquele pigmeu enjaulado e ela foi a única thread que eu terminei muito mal, num sentido de estar muito triste e me sentir bem pra baixo.

Mas têm várias histórias que eu já escrevi algumas threads e pensei que estavam muito fracas, não estavam transmitindo o que eu queria. Eu não quero que as pessoas só aprendam historiografia. Eu projeto alguns ideias, as minhas crenças políticas e de sociedade nas minhas histórias.

Sul21: Das histórias que você já contou, essa do Ota Benga foi a que mais te abalou?

Ale Santos: Foi a que mais me abalou porque todas as histórias são sobre mim também. Quando eu escrevo sobre Ota Benga, que era comparado com macacos, esse era o jeito que alguns garotos me comparavam no ensino médio. Quando eu escrevo sobre Benkos Biohó, que estourou um quilombo lá na Colômbia e se tornou imbatível, estou escrevendo sobre o que eu acredito que eu deva ser e o que eu acredito que os outros negros devam ser, que é serem imbatíveis na sociedade. Então, [as threads] também são muito sobre mim e eu foco muito na emoção.

Sul21: E como acontece o processo de pesquisa sobre essas histórias que você conta?

Ale Santos: Algumas histórias eu conheço. Outras eu tô assistindo um filme, ouço um nome ou um trecho interessante e vou atrás de bibliografia. É muito difícil encontrar bibliografia de comunidades negras do Brasil, então a pesquisa é a parte mais dolorosa. Às vezes eu passo uma semana pesquisando. Tem um líder quilombola, o Canção de Fogo, que eu estou há meses pesquisando e não consegui encontrar todas as informações sobre ele. Teve um outro líder quilombola, que é o Negro Cosme, que eu pesquisei na internet, mas só encontrei dados reais quando fui para o Maranhão e encontrei uma historiadora líder do movimento negro. A pesquisa é a parte mais difícil.

Geralmente quando eu consigo montar uma pesquisa e já tenho algumas páginas de informação, eu começo a entrar na parte de storytelling. Pra mim o Twitter é entretenimento e não historiografia. Twitter é para as pessoas gostarem da história e se emocionarem e buscarem mais. Então, eu começo a trabalhar com os recortes narrativos, pensar como vai ser o primeiro ato da história, o segundo ato; começo a fazer toda essa arquitetura da narrativa. E no fim eu começo a buscar imagens para uma narrativa visual, que é muito importante pro Twitter. Às vezes demora de seis horas, até dois dias para fazer uma thread, se ela for muito elaborada.

“Acredito que buscar essas narrativas reconecta esses povos marginais da história e tira eles da periferia da historiografia”, diz Ale Santos. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ale Santos: O colonialismo é o principal. Na verdade, essa é uma discussão que o Brasil às vezes nem tem, que é a influência das colônias europeias na nossa construção social. Isso faz sentido em alguns lugares do Brasil, mas quando você vai para alguns estados, como Minas Gerais, ou para algumas cidades que são majoritariamente negras, você vê as pessoas reproduzindo pensamentos e comportamento da colônia. Quando você vai para Salvador e vê aquela terra quente para caramba e todo mundo usando roupas que não fazem sentido para aquela terra, isso mostra muito o impacto do colonialismo. Eu olho muito para o colonialismo e começo a olhar para o afrofuturismo também, que é como reimaginar a sociedade brasileira a partir de uma realidade afro brasileira.Sul21: Além do racismo, quais outros temas estão presentes nas histórias que você conta no Twitter?

Sul21: Para você, a divulgação de histórias reais do povo negro contribuiu para uma reparação histórica das diversas violações causadas a essas populações pelo racismo?

Ale Santos: Tem um professor da faculdade de Coimbra, em Portugal, que é o Boaventura de Sousa Santos. Ele estuda esse lance de decolonialismo e é muito bom em falar sobre o epistemicídio no apagamento dessas narrativas. Eu gosto de lembrar que a Europa determinou que ela era o centro de toda civilização e toda intelectualidade e que, inclusive, a historiografia foi pautada nela. Quando a gente começa a valorizar e a buscar narrativas que são fora desse eixo colonial, estamos na verdade promovendo uma dignidade para esses povos recolocando eles na sociedade, reinserindo os valores, o conhecimento e as tradições deles dentro da sociedade; estamos colocando eles num nível, talvez, de igualdade com os outros povos.

Acredito que buscar essas narrativas reconecta esses povos marginais da história e os tira da periferia da historiografia, colocando-os no centro da conversa do mundo moderno, inseridos na sociedade e tendo autonomia para falar sobre suas próprias vidas, sobre suas próprias tradições, e sendo enxergados como eles devem ser.

Sul21: Além de gerar visibilidade para essas histórias e representatividade para as pessoas negras, para você, qual o papel que as suas threads têm no combate ao racismo?

Ale Santos: Principalmente, [tem papel] em iniciar conversas de história com a juventude que está no Twitter. Muito provavelmente a historiografia e os professores não conseguem conectar exatamente porque eles não estão fazendo isso com o olhar do entretenimento. Vários professores me perguntam e eu dou várias palestras sobre como criar conteúdo para juventude, sobre quais são as bases de conexão. As histórias que eu conto estão nos livros, só que a garotada não está lendo.

Normalmente as pessoas dizem ‘nossa, brasileiro não lê’, mas aí você abre meu Twitter e tem uma thread com mais de dez mil compartilhamento. Os brasileiros leem, talvez não leiam o que as pessoas querem que eles leiam. A gente tem que encontrar uma forma de se conectar com essa garotada, e eu acredito que pelo Twitter eu tenho feito um caminho legal com isso.

Sul21: Aqui no Brasil vemos um constante negacionismo a respeito da existência do racismo no país. O quanto o apagamento das histórias das populações negras brasileiras e de outros povos que foram escravizados contribui para isso?

Ale Santos: Inicialmente foi um projeto das elites brasileiras na República. Temos que lembrar que o hino da proclamação da República já dizia que esse era um país tão nobre que nunca nem houve escravidão. O negacionismo foi um projeto, inclusive do Rui Barbosa ter queimado [documentos da escravidão]. Tinha alguns recortes de jornais da época falando que eles queriam apagar mesmo esse capítulo e, talvez, essa intenção de apagar o capítulo daquela história tenha acontecido porque, na cabeça deles, as pessoas não iriam mais lembrar da vergonha do Brasil e iriam colocar o país num novo patamar. Isso foi prejudicial porque chega hoje em uma sociedade que nem lembra dos horrores da escravidão. A gente tem alguns museus que falam sobre isso, mas a sociedade no geral não tem uma memória afetiva de que foi algo grave e doloroso para as pessoas.

Inclusive, até mesmo alguns negros não tem memória sobre isso e a gente está há cinco gerações da escravidão. O pai da minha avó trabalhou em uma fazenda em um modelo que foi o resquício da escravidão, que é o modelo de arrendar terra. Depois a minha avó trabalhou nesse sistema e, às vezes, parece que nem ela tem essa memória de quão doloroso foi. O projeto de negação que as elites fizeram foi muito forte, foi muito poderoso e, obviamente, depois entrou o projeto de eugenia, que também promoveu uma educação eugenica nas escolas e fez com que as pessoas não discutissem tudo isso.

Sempre que as pessoas vão falar de movimento negro e olham para os Estados Unidos, encontram nomes como Malcolm X, como Martin Luther King, e todo mundo fala ‘nossa, quem foi o nosso Malcolm X?’. Eles estão vivos, eles existiram, só que a ditadura [militar] não nos permitiu contar a história deles. Por exemplo, o Abdias Nascimento, que é um dos grandes nomes da discussão racial negra no Brasil, não poderia ser estudado nas escolas públicas brasileiras da ditadura, assim como a Sueli Carneiro, o professor Hélio Santos e outros. Na escola pública ainda tem um atraso de séculos em relação a materiais didáticos, à historiografia e a inserir essa narrativa da história do povo negro afro-brasileiro na educação. Esse movimento eugenista e a crença da democracia racial que foi implantada pelos governos militares só empurram os negros para a margem da sociedade. Todo esse negacionismo atrapalha o Brasil de ser o país que ele deveria ser.

“Até mesmo alguns negros não tem memória sobre isso e a gente está há cinco gerações da escravidão”. Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21: Esse negacionismo a respeito do passado brasileiro também é promovido por pessoas negras?

Ale Santos: Ele acaba impactando as pessoas negras, porque a maior parte delas não sabe que existe todo esse contexto. Eu sentei com meu pai para conversar sobre eugenia, ele é um cara que viveu durante o governo militar, e ele não lembrava que existia concurso de beleza eugênica nas escolas públicas. Não lembrava que a educação física, a matéria, foi criada para procurar um brasileiro eugenicamente melhor, mais bem desenvolvido. A psiquiatria no Brasil também nasceu nas bases da eugenia. E meu pai não tinha nenhuma ideia disso. Era muito comum famílias negras reproduzirem aquele discurso do [vice-presidente Hamilton] Mourão de que a pessoa está ficando bonita porque está se branqueando.

As pessoas não têm consciência, e essa consciência vem da educação. Não é à toa que a educação é um dos pontos que o atual governo quer destruir.

Tem uma frase da Harriet Tubman, que é uma das maiores abolicionistas americanas, que é: ‘Libertei mil escravos. Podia ter libertado outros mil se eles soubessem que eram escravos’. Isso é o que acontece no Brasil atual também. Você vê, inclusive, pessoas negras votando em políticos que estão com a arma mirando para a sua própria cabeça. As pessoas não têm uma consciência nem de classe, nem de raça.

Sul21: A divulgação dessas histórias se torna mais importante ainda dentro desse cenário?

Ale Santos: Sim, é importante. A gente precisa resgatar, precisa conectar as pessoas com os grandes líderes. Um dos maiores líderes quilombolas que eu gosto muito é o Benedito Meia-Légua, que eu contei a história. Ele era muito ardiloso e virou uma lenda. Até hoje em Espírito Santo tem o cortejo de Ticumbi, que carrega a imagem de São Benedito até a Igreja. Eu acredito que essas histórias têm poder.

Se você for olhar um pouco sobre a psicologia analítica, que vai falar sobre como existem na nossa mente os arquétipos, figuras que são representadas ao longo de séculos, vai concluir que gente ainda carrega arquétipos da escravidão, porque esses arquétipos demoram séculos para serem construídos e também demoram séculos para serem destruídos. Quando a gente vai para o lado da fantasia, da imaginação, a gente está ajudando a desmistificar, a reconstruir os arquétipos da população negra, indígena e todas as outras comunidades marginais. A gente está ajudando a reconstruir essas imagens de poder e de força que vão fazer todo mundo ficar orgulhoso de ser quem é.

Sul21: E nesse um ano de publicações de threads, você já observou essa percepção de representatividade por parte das pessoas que acompanham suas narrativas?

Ale Santos: Sim! Chegam muitas mensagens que me inspiram muito. Uma vez uma seguidora disse que chegou em casa e a mãe dela falou ‘filha, senta aqui que eu vou contar a história da Rosa Parks’. E ela me disse no Twitter que já conhecia a história toda, mas que resolveu ouvir de tanto orgulho que teve da mãe por conhecer a história da Rosa Parks que eu tinha escrito. Já recebi mensagens de caras do Uber falando ‘nossa, comecei a acompanhar suas narrativas e me sinto uma pessoa, um negro melhor depois de conhecer essas histórias’. Recebi mensagens de alguns garotos falando que começaram a se identificar, se reconhecer e ter orgulho da sua ancestralidade depois de conhecer algumas histórias que eu compartilho.

É só por isso que hoje eu assumo a alcunha de influenciador, porque antes eu achava que isso era coisa de playbloy, de babaca. Mas depois que eu vi que tem um valor real para as pessoas, que elas estão se conectando, se transformando a partir daquilo, comecei a acreditar muito nisso.

“Recebi mensagens de alguns garotos falando que começaram a se identificar, se reconhecer e ter orgulho da sua ancestralidade depois de conhecer algumas histórias que eu compartilho” Foto: Luiza Castro/Sul21

Sul21: O quanto o fato de ter compartilhado tantas histórias e alcançado tantas pessoas com elas mudou a sua vida?

Ale Santos: Mudou totalmente. Hoje eu sou um autor reconhecido em alguns lugares. Eu viajo bastante falando sobre essas histórias e até fico surpreso quando eu vou num lugar que fica 100 ou 200 mil quilômetros da minha cidade e as pessoas me conhecem. Tem um livro meu, chamado ‘Rastros de Resistência’, que vai ser lançado nesse mês, que tem o texto da orelha escrito pelo Emicida. Eu até chorei com o texto dele, foi muito emocionante.

Também comecei a escrever em veículos, escrevi para o Intercept, para a SuperInteressante, para a Vice. Comecei a ser muito chamado para participar de programas, de eventos. Estive no Morning Show essa semana, por exemplo.

Sul21: Falando no Morning Show, em um tuíte recente você mencionou que havia sido ameaçado após o programa. É comum esse tipo de episódio?

Ale Santos: Foi a primeira vez que eu senti medo. Eu recebo ameaças o tempo inteiro. Infelizmente, é algo comum. Como eu te falei, parece que contar histórias afro-brasileiras confronta algum tipo de pessoa, sejam os bolsominions ou seja lá quem for. Eles ficam com fúria e direto eu recebo mensagens.

Esse dia que eu saí do Morning Show eu recebi uma DM no Instagram, um fake mandou mensagem dizendo que se ele soubesse onde eu morava, ele ia encher a minha casa de merda e um monte de coisas assim. Quando eu saí do metrô, tinha um cara me encarando. A gente passa a entender e reconhecer as pessoas que nos enxergam e nos reconhecem com bons olhos. Quando a pessoa nos reconhece ela já dá um sorriso, dá um oi. Aquele cara tinha ficado me encarando de um jeito muito soturno, e foi quando caiu a minha ficha de que eu estava em São Paulo, na Avenida Paulista, e que ele poderia ser um cara que acabou de ver o programa e estava me odiando, poderia vir e tentar me agredir de alguma forma. Foi a primeira vez que eu senti esse medo.

Não tem como você falar de racismo sem se conectar com a dor do racismo de qualquer maneira, mesmo que seja para você sentir quando você está escrevendo ou quando você confronta pessoas; quando você escreve uma coisa que é super dolorosa e vem um monte de gente falar que é besteira, que é mimi, que nunca existiu isso. Isso machuca de todas as formas.

Eu acabo tendo que buscar alguns mecanismos para me aliviar e me proteger emocionalmente. Geralmente eu recorro ao hip hop, à musculação e à corrida.

Sul21: Você mencionou o seu livro que será lançado neste mês. Você pode falar um pouco mais sobre ele?

Ale Santos: Meu livro ‘Rastros de Resistência’ é uma adaptação do que eu fiz nas threads. Como o que eu faço pro Twitter é só entretenimento, a editora Panda Books me convidou para transformar isso em literatura e aí o processo foi um parto doloroso porque eu não sou historiador de formação, mas para o livro ser aceito pelas escolas ele precisa seguir a historiografia. Então, eu tive que ler, aumentar a bibliografia para caramba, foram várias e várias edições confrontando todos os números, dados, datas, informações dos personagens. A gente acabou expandindo muito isso. Teve o trabalho de uma iconógrafa que foi contratada para fazer as pesquisas de todos os personagens e imagens que eu citei e, as que não encontramos, a gente contratou uma ilustradora para fazer essas imagens. O livro ficou fenomenal e vai ser lançado na sede do Twitter Brasil, que também me apoiou bastante.

Sul21: A ideia então é que o livro também seja distribuído em escolas?

Ale Santos: Sim, a ideia é que vá para as escolas. Obviamente não sei se o governo [federal] compraria atualmente um livro chamado ‘Rastros de Resistência’, mas a Panda tem o projeto de ir para as escolas. A gente já fez boas vendas na pré-venda, tem muita gente legal que me apoia e que ajudou a divulgar esse livro.


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