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3 de agosto de 2019
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16:40

Parrhesia e Autonominas: um espaço de resistência, acolhimento e feminismo na Travessa dos Venezianos

Por
Sul 21
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Orlando, Luciano, Chayenne, Júlia, Maísa e Flora celebram o que já construíram e fazem planos para o futuro. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Marco Weissheimer

Há cinco anos, uma das casas da Travessa dos Venezianos, em Porto Alegre, virou um espaço de acolhimento, resistência cultural e social e de busca de alternativas de geração de renda. Esse espaço começou a nascer com o Instituto Parrhesia,  uma organização não-governamental que atua junto a movimentos sociais e coletivos populares nas áreas de direitos humanos, cultura, educação e comunicação popular, premiada em 2013 e 2015 pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris) por boas práticas em direitos humanos. “A gente toca esse espaço há cinco anos, aqui na Travessa dos Venezianos, por fora do sistema, desenvolvendo atividades culturais de resistência, oficinas de comunicação popular, de direitos humanos e de troca de saberes”, diz Orlando Vitor (Sinistro), diretor-presidente do Parrhesia. A escolha de existir “por fora do sistema”, como assinala Orlando, está diretamente relacionada à ideia de resistência e tem seus custos.

No dia 25 de outubro de 2017, a sede do instituto foi alvo de uma ação policial, às 6h da manhã, numa operação chamada Érebo, comandada pela 1ª Delegacia de Polícia de Porto Alegre, com o objetivo de “combate à associação criminosa que praticava crimes fazendo uso de artifícios incendiários e explosivos contra instituições públicas e privadas, na capital”. Antes de abrigar o Parrhesia, a casa havia sido sede da Federação Anarquista Gaúcha (FAG), organização política anarquista sediada em Porto Alegre, que era alvo da ação policial. Orlando disse aos policiais que o Parrhesia não tinha relação com a FAG, mas não adiantou. Ele teve seus computadores e equipamentos de trabalho apreendidos pela polícia e, até hoje, não foram devolvidos. “Dizem que ainda não fizeram a perícia nos computadores”, conta.

Orlando Vitor, acompanhado por sua mãe, em frente à sede da Parrhesia, em 2017. MP determinou que pintura fosse apagada da fachada da casa. Ela acabou pintada de preto. (Foto: Guilherme Santos/Sul21)

“De 2017 pra cá, quando sofremos a criminalização do espaço e tivemos nosso equipamentos apreendidos, a gente segue sobrevivendo do rolê de rua, de festas e feiras. Só que ninguém faz nada sozinho. A partir daí, procuramos nos somarmos a outros coletivos. A única coisa que a gente quer é condições pra trabalhar. Hoje, estamos encaminhando a documentação para poder funcionar como um pub também. Estamos produzindo a nossa cerveja artesanal também como uma cultura de resistência, que pretendemos lançar em setembro”, relata Orlando.

A Travessa dos Venezianos que, no século XIX, era uma zona de refúgio de escravos em Porto Alegre, é o principal espaço de todas essas atividades, algo que nem sempre é tranquilo. “Pelo fato de a Travessa ser o pátio da nossa casa, fica muito difícil a gente não ocupá-la. Isso é até um direito de ir e vir, de eu entrar e sair de casa. Se a gente não ocupa, vira estacionamento. Se não tem esse deck, com a rampa para garantir nossa acessibilidade, fica um carro estacionado aqui. Muita gente fica disputando espaço em bares para mostrar seu trabalho, nós preferimos fazer isso na rua”, conta. Segundo Orlando, essa escolha colide, muitas vezes, com formas variadas de gentrificação, mais ou menos disfarçadas, e com decisões de órgãos públicos.

A casa que abriga o Instituto Pharresia, que é tombada pelo Patrimônio Histórico, tinha uma pintura em sua fachada, mas, segundo Orlando Vitor, uma denúncia fez com que o Ministério Púbico determinasse a remoção da mesma. “Alguém denunciou e a gente recebeu um papel do Ministério Público dizendo que era pra tirar o grafite da fachada. O primeiro grafite feito aqui foi o símbolo de ‘não estacione’. Eles consideraram uma pichação. O primeiro grafite que fizemos aqui foi pelos direitos da juventude, pedindo ‘mais escolas, menos cadeia’. Tinha uns flamingos pintados, que são os pássaros em direção à luz, feitos pelo artista LPJota que prestou esse serviço pra nós para fortalecer o espaço. Esse grafite foi parar em revistas e sites internacionais, porque chamava a atenção. Grafite é arte também. Por isso, neste episódio, a gente também se sentiu criminalizado”.

Chayenne Nunes: “não sou a favor de colocar mais roupas no mundo”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Autonominas: economia solidária a partir de um olhar feminista

Desde o final do ano passado, o espaço também passou a ser ocupado por um grupo de mulheres que decidiram se unir para construir um projeto de criação de alternativa de renda, de economia criativa e de acolhimento de outras mulheres.

Rodeadas por suas crianças, Chayenne, Flora, Maisa e Júlia conversaram com o Sul21 sobre como esse espaço foi criado, o que já conseguiram fazer e seus planos para o futuro. Em todos os seus relatos, uma palavra se destaca: “acolhimento”.

Chayenne Nunes, 23 anos, criou o brechó e ateliê Luna Serena há quase cinco anos e vem se especializando na área da costura procurando recriar peças de brechó. “Eu não sou a favor de colocar mais roupas no mundo, mais marcas e mais fábricas. Reutilizar e estimular o uso sustentável de roupas é o meu trabalho. Estou aqui no Pharresia com o brechó e estamos planejando fazer também oficinas de arte, de costura e de artesanato, principalmente destinadas a mulheres mães como nós. O brechó ainda não está funcionando diariamente, mas já realizamos feiras aqui”, diz Chayenne, que integra a rede Autonominas, um projeto coletivo de mulheres e mães, criado em dezembro de 2018, que desenvolvem um trabalho de economia solidária e criativa, a partir de uma perspectiva feminista.

Na mesma linha da recriação e da reciclagem, Chayenne tem o projeto de fazer sacos de dormir, para pessoas em situação de rua, a partir do tecido de sombrinhas que geralmente são abandonadas ou jogadas fora quando quebram. “A gente consegue fazer ótimos sacos de dormir com esse material”, afirma.

“Para nós, isso não tem grande custo financeiro e a gente pode ajudar muitas pessoas que estão em situação de rua, principalmente nestes dias de inverno. Há muitas outras ideias que queremos colocar em prática. A ideia é não ter um brechó apenas, mas trabalhar também para ensinar e ajudar outras pessoas. Todas nós somos mães e estamos aqui trabalhando com nossas crianças. Quando fazemos as feiras aqui na rua, a gente sempre tem um espaço kids pra eles”.

Flora Arruda: “Queremos dar espaço para as mulheres que têm seu trabalho autônomo”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Flora Arruda conta que, quando conheceu o espaço do Instituto Parrhesia, ano passado, viu um potencial para o acolhimento de outras mulheres que são mães. “Sentia que podia trazer as meninas pra cá para trabalhar geração de renda de diversas formas. Como eu já realizava feiras antes sozinha, vi a possibilidade de agregar espaços trazendo a Feira Autonominas para a Travessa dos Venezianos. Queremos dar espaço para as mulheres que têm seu trabalho autônomo, com artesanato, comida, seja ele qual for”, diz Flora.

Ela também trabalha com a agenda cultural do espaço, realizando evento semanais e mensais juntamente com a Cumbia na rua e a Parrhesia, e participa do projeto de produção da cerveja artesanal La Ravachole, uma forma de gerar renda para o espaço. O próximo passo é obter uma licença para o espaço funcionar também como pub, além do brechó, das oficinas e das feiras.

Formada como doula, Maisa Lottermann, 23 anos, acompanha Flora desde a primeira edição da Feira Autonominas, em dezembro do ano passado. Agora, elas planejam realizar rodas de conversa nas feiras para tratar de temas relacionados à maternidade e à gestação.

Ela também tem um brechó, o Templo de Ísis, que é a sua fonte geradora de renda. No dia 10 de agosto, data da próxima Feira Autonominas, haverá uma roda de conversa sobre um tema alusivo ao dia das mães solo. Mais para a frente, além das feiras, a ideia é envolver as pessoas no espaço do Parrhesia, dando apoio às mães e gestantes. “Neste momento delicado elas precisam de uma atenção especial, tanto durante a gravidez quanto depois”, diz Maisa.

Maisa Lottermann: espaço terá roda de conversa para mulheres. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

Julia Stevão, 23 anos, conta que está sempre com suas filhas Luna e Maia nos eventos da Autonominas. “A Flora me trouxe pra cá. Ela me abraçou para trabalhar junto com ela e o Sinistro e eu me senti muito acolhida. A gente que é mãe solo está sempre na correria em dobro porque precisamos fazer tudo sozinhas. A gente tem que pagar aluguel, pagar todas as nossas contas e tem que se virar. Eu sempre passei por trabalhos onde me submeti a muitas coisas para poder dar sustento às minhas filhas. Mas eu sempre tive o meu trabalho paralelo autônomo. Faço jogos pedagógicos e também sou massoterapeuta gestacional. Quando eu comecei a me envolver no Autonominas senti um acolhimento feminino muito forte. Aí eu comecei a querer abraçar outras mulheres também”, conta.

Julia fica com as crianças nos espaços kids criados nos eventos dentro da ideia de acolher as mães nos roles. “Elas geralmente são excluídas, principalmente aqui na Cidade Baixa. Muitas pessoas dizem: nossa, tu vai trazer teu filho? O que essa criança tá fazendo aqui? Aí, geralmente elas nem vêm. Quando tu não tem um acolhimento, tu acaba se sentindo excluída e acaba nem vindo. A parte social para a mulher é muito importante. Quando a mulher se exclui socialmente e fica isolada, mexe com o psicológico também. Ao acolher as crianças dentro das nossas feiras e dos nossos eventos, a gente acolhe também essas mães. Elas se sentem seguras pra vir, tomar uma cerveja, conversar. Elas deixam as crianças comigo e respiram um pouco. Como as gurias já disseram, nosso projeto é cada vez acolher mais mães”.

Júlia Stevão: “Estou recebendo várias respostas de mães falando sobre relacionamentos abusivos”. (Foto: Luiza Castro/Sul21)

As rodas de conversa que farão parte das próximas feiras, diz ainda Julia, tratarão de temas como a maternidade solo, a maternidade real, a romantização da maternidade e a violência contra a mulher.

Ela também está fazendo uma pesquisa, pela internet, para poder ouvir a experiência de outras mães. “Estou recebendo várias respostas de mães falando sobre relacionamentos abusivos e outros problemas enfrentados por mães solos. Elas se sentiram acolhidas por serem ouvidas, oportunidade que nem sempre tem. Querem falar, mas as pessoas não dão bola ou acham que é besteira. Estou fazendo tudo isso para poder ouvi-las”.

Galeria de fotos

Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
Foto: Luiza Castro/Sul21
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