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12 de agosto de 2019
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18:11

Para as vítimas do rompimento de barragens, o desastre segue acontecendo, diz pesquisadora

Por
Sul 21
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Tatiana Ribeiro: “As pessoas atingidas têm que viver em um processo de permanente atenção para que elas não sejam lesadas”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

Marco Weissheimer

No dia 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, no distrito de Bento Rodrigues, deixou 19 mortos e um rastro de destruição que impactou a vida de milhares de pessoas. No dia 25 de janeiro de 2019, o rompimento da barragem de Brumadinho, também em Minas Gerais, causou uma tragédia ainda maior, com mais de 200 mortos e dezenas de desaparecidos até hoje. Os dois rompimentos de barragens colocaram na agenda nacional o tema dos impactos sociais e ambientais da mineração. Passado o impacto midiático maior dos dois rompimentos, a vida das pessoas atingidas, porém, segue sendo afetada.

“O dia 5 de novembro de 2015 foi só gatilho para que esse desastre tomasse proporções que nunca tinham acontecido no Brasil. E o desastre continua acontecendo, ele não se interrompeu, não terminou. Para as vítimas das empresas, os efeitos dele se prolongam no tempo”, diz Tatiana Ribeiro, professora e pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais (Gepsa) da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOR), que vem acompanhando a situação dos atingidos pelo rompimento das barragens. Em entrevista ao Sul21, a pesquisadora fala sobre a realidade dessas famílias e sobre a sua luta por uma reparação integral pelo ocorrido, o que até hoje não aconteceu.

“As pessoas atingidas têm que viver em um processo de permanente atenção para que elas não sejam lesadas. As empresas atuam no sentido de buscar acordos individuais e dividir as comunidades, o que acaba prejudicando a articulação das pessoas atingidas na defesa dos seus direitos”, assinala Tatiana Ribeiro.

O rompimento da barragem de rejeitos da mineradora Samarco causou uma enxurrada de lama que invadiu o distrito de Bento Rodrigues, em Mariana, na região central de Minas Gerais. Foto: Rogério Alves/TV Senado

 Sul21: Como nasceu o Grupo de Estudos e Pesquisas Socioambientais, criado por um grupo de pesquisadores em Ouro Preto, e qual tem sido sua atuação com os atingidos por rompimentos de barragens em Minas Gerais?

Tatiana Ribeiro: O GEPSA foi criado logo após o rompimento da barragem de Fundão, muito em reação à forma como a Universidade Federal de Ouro Preto se posicionou. O rompimento da barragem ocorreu no dia 5 de novembro de 2015 e começamos essa mobilização no mesmo ano. O grupo foi formalizado como um grupo de pesquisa no CNPq no início de 2016, mas já como resultado da mobilização de vários departamentos da universidade. A UFOP é uma universidade reconhecida nacionalmente como formadora dos engenheiros de minas. Até por essa razão, a gente entendia que a universidade tinha uma responsabilidade muito grande em se posicionar sobre o que aconteceu. Mas o que se observou não foi isso. Pelo contrário.

Na semana seguinte ao rompimento da barragem de Fundão, houve um evento organizado no Departamento de Geologia da UFOP e os engenheiros que participaram desse debate tiveram uma postura muito de justificar o rompimento, atribuindo-o a um tremor de terra e sustentando o argumento de que a ciência é neutra e a barragem era segura. Foi exatamente esse encontro que causou uma reação em outros professores, que entendem que a ciência não é neutra e serve a determinados interesses. Nós passamos a nos reunir em torno dessa temática, contra o discurso da neutralidade da ciência e defendendo que a opção por um determinado tipo de barragem é uma escolha política da empresa, embora a construção da barragem em si possa ser considerada uma questão exclusivamente técnica. Mas a escolha pela técnica é uma escolha política.

O grupo passou a se reunir e a buscar entender como a universidade deveria se posicionar e como poderia contribuir com as pessoas que, naquele momento, tinham se tornado vítimas dessas empresas.

Sul21: Poderia relembrar um pouco o episódio do rompimento da barragem de Fundão em 2015, o cenário que se seguiu ao mesmo e suas principais consequências do ponto de vista social e ambiental?

Tatiana Ribeiro: O desastre aconteceu no dia 5 de novembro de 2015. Ao longo desses quase quatro anos, a gente vai apurando também o nosso discurso e a nossa narrativa sobre o que aconteceu, como as empresas também fazem com a narrativa delas. Uma coisa que a gente entende hoje é que o 5 de novembro não é o dia do desastre porque esse desastre foi gestado. Ele começou a aconteceu quando começaram a ser feitas as escolhas. A opção por construir uma barragem acima de uma vila é o início de um desastre. É uma decisão equivocada, evidentemente, porque a comunidade de Bento Rodrigues já existia ali. O desastre começou, então, com decisões erradas que foram tomadas, como a decisão locacional.

“O dia 5 de novembro de 2015 foi só gatilho para que esse desastre tomasse proporções que nunca tinham acontecido no Brasil”. (Foto: Giulia Cassol/Sul21)

O dia 5 de novembro de 2015 foi só gatilho para que esse desastre tomasse proporções que nunca tinham acontecido no Brasil. E o desastre continua acontecendo, ele não se interrompeu, não terminou. Para as vítimas das empresas, os efeitos dele se prolongam no tempo. No dia 5 de novembro, então, se deu o gatilho para essa desastralização, termo que temos utilizado em nosso grupo de pesquisa por sugestão da pesquisadora Karine Carneiro, professora de Arquitetura e Urbanismo da UFOP. A barragem de Fundão fazia parte de um complexo de três barragens da mineradora Samarco, uma joint-venture da Vale e da BHP Billiton. O Direito prevê que, em caso de dano ambiental provocado por atividade econômica potencialmente poluidora, existe uma responsabilidade poluidora entre os proprietários dessas empresas. É uma responsabilidade objetiva, o que significa que não depende da culpa. Assim, nem é preciso discutir no processo de reparação se a empresa teve culpa ou não pelo rompimento da barragem. O fato dela ter construído a barragem e desenvolvido uma atividade econômica que impõe risco ao meio ambiente e à sociedade já implica o dever de reparar qualquer dano decorrente dessa atividade econômica.

Isso é regido pelos princípios da responsabilidade objetiva e da reparação integral, que orientam o direito ambiental, atribuindo as responsabilidades às três empresas: Samarco, Vale e BHP Billiton.  Elas devem responder por todos os efeitos decorrentes desse rompimento, sejam ambientais, econômicos ou sociais. Esses efeitos não são dissociados. A extinção de uma espécie de peixe, por exemplo, está associada também à economia dos pescadores. Assim, não dá pra separar o aspecto econômico do ambiental, embora as empresas tenham criado programas de reparação que estão divididos em eixos diferentes, um eixo socioeconômico e um socioambiental, o que, na nossa opinião é uma forma equivocada de lidar com a reparação.

Sul21: Por que é equivocada?

Tatiana Ribeiro: Porque essas dimensões não são separadas. Eu dei o exemplo do peixe. Uma espécie que não existe mais está relacionada com uma economia que diz respeito também a um modo de vida, a projetos de vida que estão relacionados com as territorialidades na região da bacia do rio Doce. Um impacto está relacionado com outro. Existe aí também uma relação corporativa com o meio ambiente que consiste em tratá-lo não como natureza, mas como recurso. Essa é a postura corporativa que orienta as decisões das empresas. As populações que foram atingidas, que são agricultores, povos tradicionais, ribeirinhos, pescadores, faiscadores (garimpeiros artesanais), povos indígenas, constituem uma diversidade muito grande e foram atingidas de maneiras diferentes.

Temos três comunidades que foram inteiramente destruídas, que são Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo (dois distritos de Mariana) e Barra Longa. Barra Longa é o município que foi atingido logo depois de Mariana e é o único municípios que teve a sede invadida pela lama de rejeitos. Depois que a sede do município foi tomada pela lama de rejeitos da barragem de Fundão, começou um processo de retirada desse rejeito do centro da cidade que foi inteiramente gerido pela Samarco, sem acompanhamento nem controle pelo poder público, nem federal, estadual ou municipal. Isso permitiu que a empresa passasse a controlar os territórios. Em Barra Longa isso foi muito forte. Permitiu, por exemplo, que a empresa retirasse os rejeitos da praça central da cidade e os depositassem no campo de exposições que fica numa área habitada por uma população economicamente mais vulnerável.

Esse procedimento da empresa revitimizou a população, numa clara manifestação daquilo que a gente chama de racismo ambiental, que, no caso, significa retirar o problema da área central da cidade, onde vive uma população economicamente mais favorecida, levando-o para uma região onde vive uma população predominantemente negra e mais pobre. Em Barra Longa, a empresa conseguiu levar o rejeito onde o rejeito não tinha chegado. Como se não bastasse essa arbitrariedade da Samarco, a empresa passou a ter o controle também de indicar quem eram as vítimas por meio de um cadastro. Isso, no nosso entendimento, deveria ser feito pelo poder público.

Sul21: Não houve nenhuma participação do poder público neste processo?

Tatiana Ribeiro: Algumas medidas pontuais foram tomadas. Em Mariana, por exemplo, o Ministério Público foi muito atuante desde o início. O governo federal e os governos de Minas Gerais e Espírito Santo deram início a uma ação civil pública que acabou gerando um acordo com as empresas. Mas esse acordo não foi entendido como sendo um acordo que beneficiava as vítimas, pelo contrario. Esse acordo foi considerado arbitrário, sem a participação das pessoas atingidas, e atribuiu a uma fundação criada pelas empresas e controlada por elas o papel de gerir os programas de reparação. Isso gerou uma reação muito grande. Por conta desse acordo, um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC) que criou a Fundação Renova e 42 programas de reparação divididos em dois eixos (socioeconômico e socioambiental), o Ministério Público Federal propôs outra ação de valor muito superior ao estabelecido pela primeira ação.

Barragem de Fundão derramou 48,3 milhões de metros cúbicos de lama de rejeitos na natureza | Foto: Fred Loureiro/Secom ES

Nesta segunda ação,  o Ministério Público passa inclusive a questionar esse acordo. Foram feitas várias tentativas de anular o acordo, cujas partes eram os governos e as empresas. Ele chegou a ser homologado judicialmente numa situação muito estranha do ponto de vista jurídico. Nem o Ministério Público nem a Defensoria Pública (Federal e Estadual), nem as pessoas atingidas participaram da elaboração desse acordo. Foi um acordo de gabinete feito entre governos e empresas, o que já é uma relação muito questionável porque os dados eleitorais das últimas eleições, antes do rompimento da barragem, revelavam que o investimento da Vale nas campanhas eleitorais era tal que fazia com que a empresa sempre ganhasse as eleições, não importando qual partido vencesse. Quem nunca perdia as eleições era a Vale. Isso levanta suspeitas sobre a independência e a autonomia desses agentes políticos para representar os interesses da sociedade frente aos interesses corporativos.

Esse acordo criou uma fundação de direito privado, controlada pelas empresas, para gerir 42 programas de reparação. Além disso, criou uma entidade chamada Comitê Interfederativo, formada por representantes dos entes públicos, para acompanhar e fiscalizar a Fundação Renova. Essa estrutura é considerada o primeiro modelo de governança desse desastre. Mas houve uma reação do Ministério Público Federal, que propôs outra ação, onde todos os que estavam na primeira ação civil pública, se tornaram réus. Ou seja, o MP Federal tornou réu também a União e os estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Mais tarde, o Espírito Santo deixa de figurar como réu porque houve o entendimento de que ele não teve nenhuma atribuição no licenciamento da barragem que rompeu. Então, permaneceram como réus o governo federal, o governo de Minas Gerais e as três empresas.

No âmbito dessa segunda ação começou um novo processo de negociação proposto pelo Ministério Público, mas as empresas insistiam no aperfeiçoamento do Termo de Transação e Ajustamento de Conduta. Depois de muitas idas e vindas, no dia 8 de agosto de 2018 chegou-se à homologação de um acordo chamado TAC Governança, que é um Termo de Ajustamento de Conduta feito entre todos os atores públicos envolvidos e as empresas. Esse foi realmente um acordo mais amplo que impõe uma série de modificações na forma de governança do desastre, uma expressão que pertence ao léxico corporativo. O Ministério Publicou passou a acompanhar essa ideia da governança fazendo algumas exigências e contratando especialistas para a realização de perícias, laudos e relatórios.

Hoje, esse processo de gestão do rompimento da barragem de Fundão envolve vários acordos que estão em vigor. O TTAC, que foi o primeiro, está em vigor com algumas modificações. Depois veio o Termo de Ajustamento Preliminar (TAP), o Termo Aditivo ao TAP e o TAC Governança. O que foi modificado de forma mais substancial foi o TTAC. Todos os outros vieram para corrigir pontos do primeiro acordo. Mas há um problema muito grande nos territórios por conta da atuação da Fundação Renova. A empresa que foi contratada como expert pelo Ministério Público para fazer o acompanhamento da atuação da Fundação Renova emitiu um relatório no final de 2017 indicando uma série de impropriedades nos programas executados pela fundação. As denúncias das pessoas atingidas são constantes, tanto para o Ministério Público quanto para as defensorias públicas e para a imprensa. A insatisfação é tanta que foi proposta uma audiência pública na Assembleia de Minas Gerais para ouvir as pessoas a respeito dessas denúncias.

Gesteira, distrito de Barra Longa (MG), atingido pelo rompimento da barragem da Samarco. (Foto: Felipe Werneck/Ibama)

Sul21: Quais são as denúncias exatamente?

Tatiana Ribeiro: Há denúncias, por exemplo, envolvendo o cartão emergencial distribuído pela fundação para as pessoas atingidas que perderam renda, enquanto não são feitas as indenizações e concluídas as negociações para a reparação integral. Essas pessoas recebem mensalmente um determinado valor, até que a situação de cada uma delas seja definida. Segundo as denúncias, há uma manipulação da fundação envolvendo esses cartões, com um tratamento diferenciado em relação às mulheres. Muitas mulheres que tinham renda não receberam o cartão e passaram a ser “representadas” pelos maridos. Outro problema é a existência de pessoas na mesma situação, com umas recebendo o cartão e outras não, criando conflitos internos nas comunidades.

No caso da comunidade de Gesteira, representantes da fundação tentaram dissuadir as pessoas de levar adiante a ideia de reassentamento, propondo, ao invés disso, acordos individuais. Levou uma equipe do chamado Programa de Indenização Mediada, para que cada um fizesse a sua negociação individualmente, abandonando a proposta de reassentamento. Mas uma das principais reclamações está relacionada à situação da saúde que é muito grave, principalmente em Barra Longa. Em Barra Longa foi feito um estudo por um instituto de saúde com onze pessoas e todas elas apresentaram níveis alterados no exame de sangue mostrando intoxicação por metais pesados. A Fundação Renova não reconhece essa situação de intoxicação das pessoas e há indicativos de que toda a cidade de Barra Longa possa estar contaminada.

Sul21: Estamos falando de quantas pessoas neste caso?

Tatiana Ribeiro:  No município de Barra Longa, de 10 a 12 mil pessoas, com algumas situações mais graves, de pessoas que já apresentam problemas de pele, doenças respiratórias e dificuldades na gravidez. Algumas dessas situações têm sido atribuídas à toxidade do ar, do solo e da água. O rejeito seguiu sendo carreado no rio. Não houve uma contenção 100% do rejeito dispensado no rio. A atuação da Fundação Renova tem sido no sentido de não retirar o rejeito de onde ele ficou depositado. Ela vem usando um discurso que fala da acomodação do rejeito e de que a tentativa de retirá-lo causaria mais impacto do que deixá-lo onde está. No entanto, ainda não existem estudos que comprovem que isso não vai causar dano à saúde humana, à saúde animal e à natureza. Há uma resistência muito grande por parte da empresa em relação à exigência das pessoas atingidas de retirada do rejeito.

Sul21: Isso diz respeito ao rejeito que está no rio somente ou aos rejeitos em geral?

Tatiana Ribeiro: Em geral. Em Barra Longa, por exemplo, o rejeito foi retirado da cidade e levado para outras áreas. Houve uma mudança inclusive da paisagem. Barra Longa, hoje, tem montanha que não existia. As margens do rio são outro exemplo. Muitas vezes, para evitar a erosão, a empresa colocou pedras nas margens em regiões onde o gado utilizava a água do rio. Hoje tem problema com gado que quebra a pata nas pedras e não consegue mais acessar o rio. Em muitos lugares, as pessoas não acessam mais o rio em razão da forma como a empresa fez a contenção nas margens.

Atingidos pelo rompimento da Barragem do Fundão seguem lutando por seus direitos (Foto: Willian Dias/AL-MG))

Há uma crítica muito grande à forma de atuação da fundação, que é feita sem participação, embora ela faça uma propaganda de que valoriza e garante a participação. Isso não tem sido demonstrado na prática e não é a impressão que as pessoas atingidas têm em relação à atuação da Fundação Renova. Ao ponto de, na audiência pública realizada na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, praticamente todas as pessoas que participaram como convidadas e as que estavam no auditório pediram para que fosse instalada uma CPI da Fundação Renova na Assembleia para apurar possíveis irregularidades, inclusive em relação aos gastos que a fundação tem para se manter sem promover a reparação dos danos causados.

Antes que os problemas fossem, nem digo resolvidos, pois vai levar algumas décadas para resolvê-los, mas encaminhados de forma adequada, a empresa começou a tomar iniciativas para voltar a operar, gerando uma divisão muito grande na sociedade, sobretudo de Mariana, onde a população em geral apóia o retorno das atividades em função da dependência econômica do município em relação à mineração. Por outro lado, o fato de não ter reparado as pessoas atingidas gera uma resistência ao retorno das atividades dela. Neste contexto, a empresa iniciou um processo de licenciamento de modo fragmentado. Ao invés de fazer um licenciamento do complexo minerário onde funcionava inclusive a barragem de Fundão, a empresa deu início a um processo de licenciamento do uso de uma cava, a cava Alegria sul, onde ela já tinha minerado. A proposta da empresa era usar essa cava para depositar rejeito. Hoje ela não volta a operar porque não tem onde depositar os rejeitos que produz.

Sul21: Esse processo de licenciamento está em curso?

Tatiana Ribeiro:  Sim, está em curso. Na verdade, pela projeção que a empresa fazia, ela já deveria ter voltado a operar. Não se sabe ao certo se é um bom negócio para a empresa voltar a operar. Não há muita transparência, por exemplo, em relação ao seguro que a empresa recebeu pelo rompimento da barragem.

Sul21: Sabe aproximadamente qual foi o valor desse seguro?

Tatiana Ribeiro: Não tenho ideia. Não temos essa informação. Há especulações de que a empresa tinha um acordo com a Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais) para que ela pudesse vender o excedente de energia que ela comprava a um preço muito especial. Também não há transparência sobre esse contrato com a Cemig e sobre se o fato dela não estar operando permite que negocie toda a energia que ela compra da Companhia. Sem ter acesso a essas informações, a gente não sabe se é vantajoso para a empresa voltar a operar ou se é mais vantajoso para ela não voltar a operar. Não podemos fazer sequer esse tipo de acusação contra a empresa, mas são questões onde a falta de transparência gera uma certa dúvida sobre o que existe por detrás desse atraso, considerando que a empresa tinha se mobilizado de uma maneira muito intensa para voltar a operar, o que ainda não aconteceu.

Comissão de Atingidas e Atingidos de Barra Longa e a comunidade de Gesteira em uma oficina para a construção do “Plano Popular do Reassentamento Coletivo de Gesteira”. (Foto: Gepsa/Facebook)

Sul21: Depois do que aconteceu em Mariana e em Brumadinho houve, na sua avaliação, uma mudança qualitativa de consciência da população de Minas Gerais sobre os impactos da mineração e sobre o padrão de desenvolvimento que acompanha essa atividade econômica nos moldes atuais?

Tatiana Ribeiro: De uma maneira geral, a população foi despertada para um risco que ela não achava que existia. Os dois rompimentos de barragem colocaram na agenda a questão da mineração e dos riscos inerentes a essa atividade. Isso fez, por exemplo, com que o Ministério Público ficasse mais atento às barragens que ainda existem em Minas e passasse a exigir um posicionamento mais responsável das empresas em relação a isso.

Por outro lado, isso tem causado um pânico na população em geral, de vários municípios, como Barão dos Cocais, Congonhas e Macacos, na região metropolitana de Belo Horizonte. Há um processo de desterritorialização das pessoas que vivem nestas regiões. Essa necessidade de retirar as pessoas de suas casas, que acabam produzindo deslocamento forçado, alertou a população para os riscos da mineração, que não são riscos limitados às pessoas que moram próximo ou abaixo das barragens. Há uma percepção muito maior de que a mineração pode levar a conseqüências que vão atingir pessoas que antes não se sentiam vulneráveis e sujeitas aos efeitos dessa atividade. Isso parece muito presente, hoje, em Minas. Agora, a gente não sabe até que ponto isso também não é de interesse das empresas.

Sul21: Como assim?

Tatiana Ribeiro:  Isso gera uma especulação imobiliária em relação a esses imóveis. Na verdade, há uma desvalorização desses imóveis que ficam em regiões que são de interesse minerário e de onde as pessoas jamais sairiam por livre vontade. Então, esse pânico, de alguma maneira, faz com que essas regiões próximas a áreas já mineradas fiquem mais acessíveis às empresas. No caso de Brumadinho, inclusive foi feito um acordo muito questionado entre a Defensoria Pública de Minas Gerais e a Vale. Em princípio, eles queriam manter esse acordo em sigilo, inclusive para outras entidades públicas. Depois, a Defensoria divulgou pela imprensa que esse acordo tinha ocorrido e o Ministério Público teve que recorrer à Justiça para ter acesso aos termos do mesmo.

Esse acordo criava um sistema de reparação individual para as pessoas atingidas em Brumadinho e previa uma permuta mediante indenização, por meio da qual a pessoa transferia a propriedade do imóvel para a Vale. Depois, houve uma especulação sobre a desvalorização na avaliação desses imóveis, pois a empresa teria omitido a informação de que se tratava de uma área onde ela tem processo pedindo autorização para mineração. Isso faria com que esses imóveis tivessem uma valorização em termos de indenização, o que acabou não sendo considerado na avaliação dos imóveis e nas negociações individuais que foram feitas. A Defensoria disse que, se houvesse a constatação de que ocorreu uma subavaliação, isso poderia ser corrigido.

O fato é que as pessoas atingidas têm que viver em um processo de permanente atenção para que elas não sejam lesadas. As empresas atuam no sentido de buscar acordos individuais e dividir as comunidades, o que acaba prejudicando a articulação das pessoas atingidas na defesa dos seus direitos.


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