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10 de agosto de 2019
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13:38

Livro reúne relatos de LGBTIs que passaram por programas de reversão sexual ou de gênero 

Por
Sul 21
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Conselhos Regionais de Psicologia entrevistaram 32 pessoas LGBTIs que contaram suas experiências com tentativas de reversão sexual. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro

Perda de vínculos com familiares, sentimento de culpa, medo da rejeição, internalização do preconceito, tentativa de suicídio ou uso de álcool e outras drogas. Esses são alguns dos muitos sofrimentos enfrentados por lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e intersexuais (LGBTIs’) que foram submetidas a tratamentos de tentativa de reversão de orientação sexual ou de identidade de gênero no Brasil. Desde junho deste ano, o livro ‘Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs’, publicado pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), reúne relatos de pessoas que passaram por esse tipo de procedimentos em consultórios psicológicos ou psiquiátricos, nas escolas, em ambientes familiares ou em instituições religiosas.

Durante dezembro de 2017 e março de 2018, as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos Regionais de Psicologia entrevistaram 32 pessoas LGBTIs que relataram os diversos tipos de violências que enfrentaram durante situações que tentavam modificar sua orientação sexual ou identidade de gênero. Essas violações aconteciam em processos formais, em terapias de reversão sexual promovidas por psicólogos e psicólogas ou por instituições religiosas, e não formais, como em escolas, dentro do ambiente familiar e em ambientes sociais, conforme explica a psicóloga Roberta Brasilino Barbosa, integrante da Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia e uma das organizadoras do livro.

Dentre as pessoas entrevistadas para a publicação, 19 delas se identificavam como homens cisgênero, seis como mulheres cisgênero, dois como homens transexuais, dois como não binárie intersexual, uma como travesti, uma como mulher transexual e uma como mulher intersexual. Em relação à orientação sexual, 56% são gays, 16% lésbicas e 13% heterossexuais, 6% bissexuais, 6% pansexuais e 3% não identificados.

Livro foi lançado em junho pelo Conselho Federal de Psicologia. Foto: Reprodução

Segundo Roberta, tanto as terapias de reversão sexual quanto sutilezas desenvolvidas por um contexto social, como solicitar que alguém aja ou seja de uma determinada forma que esteja mais dentro dos padrões heteronormativos impostos pela sociedade, são métodos que tentam aniquilar as subjetividades das pessoas LGBTIs. “São tentativas porque não se efetuam totalmente e aniquilamentos de subjetividade porque nega outras formas. São processos que tentam aniquilar qualquer outra forma de orientação sexual ou identidade de gênero”, explica.

A psicóloga conta que a ideia de produzir uma publicação que reunisse as violências enfrentadas pela comunidade LGBTI nesses procedimentos surgiu em função de uma série de denúncias que as Comissões de Direitos Humanos dos Conselhos de diversas cidades passaram a receber. “Mesmo existindo uma resolução do Conselho Federal que de alguma forma regula a prática em relação a atenção possível de ser dada às pessoas LGBTIs, a gente tomou conhecimento que ainda existiam essas práticas entre muitas aspas de reorientação”, relata.

A resolução a qual Roberta se refere é a Resolução 0199, que desde 1999 proíbe qualquer tipo de entendimento da homossexualidade como doença ou desvio. “A resolução diz a grosso modo que a gente não pode promover tratamento para aquilo que não é doença, e orientação sexual não é uma doença”, pontua Roberta. Porém, em março de 2017 a Resolução virou motivo de debate na sociedade brasileira porque um grupo de psicólogos acionou a Justiça Federal da Seção do Distrito Federal a fim de anular os efeitos do documento. Na ocasião, as terapias de reorientação sexual que eram propostas por alguns profissionais de psicologia ficaram conhecidas como ‘cura gay’.

Em abril de 2019, a ministra Carmem Lúcia concedeu uma liminar do Supremo Tribunal Federal (STF) suspendendo a validade da sentença da justiça do Distrito Federal que desde de dezembro de 2017 permitia a prática em todo território Brasileiro. Os procedimentos de reversão sexual ou de gênero são condenados pelo Conselho Federal de Psicologia. “Não cabe aos psicólogos oferecer algum tipo de tratamento a alguma pessoa em relação a sua orientação sexual independente de qual ela for porque isso não é uma patologia”, afirma Roberta.

Práticas de tentativa de reversão sexual e de gênero

Mesmo com a resolução contrária à prática e a decisão do STF, os tratamentos de reversão sexual continuam sendo realizados por psicólogos, psicólogas e também psiquiatras em diversos locais do país. Existem, inclusive, movimentos de profissionais da psicologia que são defensores da prática condenada pelo Conselho Federal de Psicologia. No livro, os entrevistados relatam diversos tipos de procedimentos utilizados pelos profissionais, como culpabilização, torturas psicológicas e internações compulsórias, por exemplo.

Em um dos relatos, uma mulher fala que ao contar para uma psicóloga que era lésbica, a terapeuta disse para ela que era apenas uma fase que iria passar e que ela estava no lugar certo. “Ela começou dizendo que era uma fase, depois ela teve um discurso do pecado, ou da doença”, conta. Outra mulher, que se identifica como bissexual, conta que chegou a sofrer uma internação compulsória durante a consulta com um psiquiatra. “Eu conversei com uma psicóloga e ela me encaminhou para um psiquiatra.(…) quando eu cheguei nesse psiquiatra, ele era muito agressivo e muito contestador. Ele fez um sinal, vieram dois enfermeiros, e falou: “Interna.” E, aí, no que ele falou isso, os dois enfermeiros me jogaram em uma maca e parecia uma cena de filme”, diz o texto.

Nos relatos presentes nos livros também é possível perceber a forte relação de crenças ou instituições religiosas com as atitudes de psicólogos e psicólogas. Em muitos textos, os entrevistados contam que ouviram de profissionais da psicologia que suas orientações sexuais ou identidades de gênero eram “coisa do demônio”, que “não era o que Deus queria” e que “o homem nasceu para a mulher, e a mulher nasceu para o homem”, por exemplo. Em um dos relatos, um homem de 46 anos, que se identifica como gay, conta que quando assumiu a sua sexualidade para a igreja que frequentava precisou passar cerca de um ano e meio fazendo a terapia de reversão com a psicóloga da instituição. “A (psicóloga) continuou o acompanhamento comigo, me ligava, perguntava como eu estava, dizia que eu tinha que orar, que a responsabilidade da cura era minha. Eu que tinha, se eu quisesse realmente, eu podia ser curado e eu orava e a cura não vinha”, diz o texto.

Em outro relato, uma pessoa que se identifica como mulher interssexual relata que frequentava um local onde existiam “psicólogas que diziam ser psicólogas cristãs”. “Conversavam comigo, falavam que eu tinha que mudar o meu jeito, porque homem não agia daquele jeito. Eu estava dentro da igreja, eu tinha que mudar as minhas atitudes. Então, eu podia fazer o quê? Sair com as meninas, beijar meninas. A psicóloga falava: “Eu estou como psicóloga para te ajudar, eu vou oferecer maneiras de você lidar com isso, de você gostar de meninas, de você se comportar como homem”. Ela foi falando várias passagens da Bíblia, falando que eu ia para o inferno, durante a sessão, se eu continuasse com aquilo, que não era de Deus”, relata.

Diferentes sofrimentos

A mesma mulher que vivenciou isso conta que após os acontecimentos chegou a atentar contra a própria vida. “Eu até tentei me suicidar uma vez, depois disso tudo, porque para mim é uma coisa que você não consegue reverter”, diz. Ela conta que passar por essa situação piorou as dificuldades que ela vivenciava. “No período, eu até larguei a faculdade. Larguei a faculdade e acabei saindo do tratamento também porque era coisa que, ao invés de estar me ajudando, estava piorando. Isso gerou em mim uma grande insegurança. Antes disso, eu era uma pessoa totalmente sociável”, conta. O sofrimento vivenciado por ela é compartilhado também pelas outras pessoas que contaram no livro suas experiências com as terapias de reversão sexual.

Uma vez que esses sofrimentos são gerados por diferentes contextos, os organizadores da publicação resolveram separar em capítulos os diversos movimentos que tentam reverter as pessoas LGBTIs. “Quando a gente constrói essas categorias, que depois viram os capítulos, começamos a trazer um pouco de como só por ser LGBTI você sofre uma série de coisas; mostrar como essas tentativas comparecem no seu dia a dia, como a família, inclusive em nome da própria instituição família, promove essas tentativas de aniquilamento”, explica Roberta.

Dessa forma, capítulos dividem-se em dialogar separadamente sobre aspectos sociais, culturais ou familiares, com histórias mostram “opressões cotidianas, por meio da violência física, verbal e psicológica, pelo preconceito e pela negligência social”; sobre as explicações inventadas pelos profissionais ou religiosos para a origem da orientação sexuais ou identidade de gênero das pessoas LGBTIs. Também abordam a influência da família, grupos religiosos e relacionamentos na procura pelos programas de reversão os diferentes tipos de práticas ofertadas nesses programas.

É no sexto capítulo e no sétimo que o sofrimento vivenciado pelos entrevistados aparece com maior evidência. “Os principais efeitos desses processos de tentativa de cura, não só das formais, mas também das em contextos sociais, tão no âmbito do sentimento de culpa, da confusão mental, da internalização da LGBTIfobia, da tentativa de negação do desejo, dos conflitos familiares, de tentativas de suicídio e até uso de álcool e outras drogas”.

Segundo Roberta, pessoas transexuais e travestis também acabam sofrendo com o processo de patologização. Foto: Joana Berwanger/Sul21

A psicóloga também conta que durante o processo de produção do livro foi possível perceber que os ataques a essas pessoas ocorrem de maneiras diferentes dependendo de com qual letra da sigla LGBTI elas se identifiquem. “As tentativas de aniquilamento LGB se dão de uma maneira diferente das tentativas de aniquilamento TI”, afirma. Segundo Roberta, ao se tratar da orientação sexual, o atravessamento moral é mais presente, enquanto que com a identidade de gênero ainda há uma patologização muito forte. Dessa forma, pessoas transexuais e travestis também acabam sofrendo com o processo de patologização.

Segundo Roberta, a publicação do Conselho Federal de Psicologia busca mostrar que é gerado à população LGBTI muito sofrimento em todas essas práticas que tentam anular ou reverter suas identidades. “A questão é a gente produz muito sofrimento tentando curar e reverter algo que não tem cura, porque não é doença. A gente produz muito sofrimento quando trazemos a cis heteronormatividade como única norma e única forma de existência”. Além de dar visibilidade para os sofrimentos vivenciadas por essas pessoas, Roberta afirma que o livro também busca gerar mais argumentos contra os discursos de ódio crescentes no Brasil.

“O que a gente fez aqui foi produzir mais argumentos e produzi-los a partir de outros marcos, que é o marco daquelas e daqueles que sofreram e sofrem por esses movimentos LGBTIfóbicos”, explica a psicóloga. “Queremos engrossar os argumentos contra os discursos de ódio, que no cenário atual estão cada vez mais em evidência, principalmente associado às políticas armamentistas. Com isso, esses discursos de ódio podem com isso produzir inclusive mortes físicas para a população LGBTI, mas mesmo antes das mortes físicas já produzem uma outra série de assujeitamentos e de controle sobre as vidas dessas pessoas”.


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