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18 de agosto de 2019
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14:13

Caso de militar réu por estupro abre precedente para punir crimes da ditadura

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Sul 21
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Caso de militar réu por estupro abre precedente para punir crimes da ditadura
Caso de militar réu por estupro abre precedente para punir crimes da ditadura
Sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro Lima se tornou réu pelos crimes de sequestro, cárcere privado e estupro. Foto: Comissão Nacional da Verdade

Por Tiago Angelo
Do Brasil de Fato

O Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) decidiu na última quarta-feira (14) que o sargento reformado Antônio Waneir Pinheiro Lima, também conhecido como “Camarão”, irá responder na Justiça por sequestro, cárcere privado e estupro. Os crimes foram cometidos contra a historiadora e ex-líder da Vanguarda Revolucionária Palmares (VPR), Inês Etienne Romeu.

O caso ocorreu na chamada “Casa da Morte”, local de tortura comandado pelo Centro de Informações do Exército durante a ditadura militar. A prisão clandestina ficava em Petrópolis, região Serrana do Rio de Janeiro.

Além de ser o primeiro processo criminal de estupro aberto contra militares por crimes cometidos na ditadura, a Justiça decidiu, também pela primeira vez, não aplicar a Lei de Anistia (Lei nº 6.683, de 1979), que perdoa violações cometidas durante o período de exceção.

A decisão inédita ocorreu porque o tribunal entendeu que o episódio se trata de um crime contra a humanidade, considerado imprescritível e não passível de anistia. Pela natureza do caso, os procuradores proferiram sua decisão sob a ótica do Estatuto de Roma, ratificado pelo Estado brasileiro em 2002.

Precedente para Justiça

De acordo com especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato, a decisão do TRF-2 pode abrir precedentes para que outros crimes cometidos durante a ditadura militar sejam julgados e punidos.

Segundo a procuradora regional da República e ex-presidente da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, Eugênia Gonzaga, a decisão representa um grande avanço. “[O tribunal não fez uso] da Lei de Anistia, nem da norma que trata da prescrição, aplicando, finalmente, conceitos de crimes contra a humanidade”, afirma.

Gonzaga explica que, após a Constituição de 1988, instrumentos de direitos humanos ratificados pelo Brasil passaram a ter valor de Emenda Constitucional. No entanto, de lá para cá, somente a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência ganhou esse status e foi internalizada no ordenamento jurídico brasileiro. “O uso das normas internacionais sempre foi tabu”, argumenta.

Para ela, o fato do TRF-2 ter levado Camarão à Justiça fazendo uso de normas internacionais que não têm valor de emenda é bastante representativo. “Isso demonstra, mais uma vez, a importância da decisão, que foi a de acolher uma norma de direito consuetudinário internacional que nem foi internalizada com a estatura de emenda constitucional”, assinala.

Pedro Dallari, professor de Direito Internacional da Universidade de São Paulo (USP) e ex-coordenador da Comissão Nacional da Verdade (CNV),  também considera importante a medida tomada pelo TRF-2. “A CNV documentou de forma muito detalhada essas violações e o que falta no Brasil é que aqueles que deram causa sejam processados, julgados e condenados. E é muito bom ver que o Judiciário está perseverando nessa linha”, comenta.

Dallari afirma ainda esperar “que com essa nova decisão [do TRF-2] e com outras que podem vir a ser tomadas, o Judiciário possa consolidar um entendimento a favor da possibilidade de julgamento dos responsáveis por graves violações de direitos humanos”.

Supremo Tribunal Federal

A denúncia envolvendo Camarão havia sido rejeitada pela 1ª Vara Federal Criminal de Petrópolis, em 2017. Na ocasião, o juiz Alcir Luiz Lopes Neto arquivou o caso invocando a Lei de Anistia e a prescrição dos crimes.

O Ministério Público Federal (MPF) entrou com um recurso no TRF-2, onde o caso foi julgado pela 1ª Turma Especializada. O relator do processo, Paulo Espírito Santo, votou contra. Votaram a favor os desembargadores Gustavo Arruda e Simone Schreiber.

De acordo com Dallari, Camarão deve recorrer da decisão no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o caso pode ir parar no Supremo Tribunal Federal (STF).

A procuradora Eugênia Gonzaga acredita que a decisão do TRF-2 pode ser mantida. “Eu acho que estamos em um momento em que o sistema de Justiça está vendo a gravidade que foi não fazer seus deveres de justiça de transição”, explica.

Parte das dificuldades envolvendo o julgamento e punição dos crimes da ditadura se deve ao fato de o STF ainda não ter compatibilizado a questão. O Supremo teve a oportunidade de rever a Lei de Anistia em 2010, quando julgou a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153), movida pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB).

A entidade pedia, à época, que o Supremo anulasse o perdão concedido aos militares acusados de crimes contra a humanidade. No entanto, o STF decidiu, por 7 votos a 2, a favor da constitucionalidade da anistia.

Um novo pedido de revisão, por meio da ADPF 320, dessa vez de autoria do PSOL, foi enviado ao STF em 2014. Desde então, a Suprema Corte tem postergado uma nova apreciação sobre a Lei de Anistia.

Antes de 2010, de acordo com Gonzaga, o maior entrave para julgar militares não era a Lei de Anistia mas a prescrição dos crimes. “Os próprios colegas procuradores da República com atuação na área criminal tinham dificuldade em aceitar essa tese de crime contra a humanidade, da imprescritibilidade pelo menos”, relembra.

CIDH

Após a decisão do STF de manter a constitucionalidade da anistia, o Brasil foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por crimes relacionados à ditadura. A primeira condenação ocorreu no final de 2010 e diz respeito ao caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia).

O país foi novamente condenado em julho de 2018, desta vez pela falta de investigação, julgamento e punição dos responsáveis pela prisão, tortura e morte do jornalista da TV Cultura Vladimir Herzog.

Por ter ratificado a Convenção Americana de Direitos Humanos em 1992, o Brasil reconhece a jurisdição da CIDH e deveria, em tese, cumprir as decisões do tribunal, que nas duas ocasiões ordenou que o país revisasse a Lei de Anistia.

Tanto Dallari quanto Gonzaga acreditam que, levando em conta os acontecimentos posteriores à decisão de 2010, o STF pode reverter sua posição sobre a Lei de Anistia.

“A decisão do STF foi anterior ao relatório da Comissão Nacional da Verdade, que é de 2014. Depois do relatório, após várias iniciativas promovidas pelo Ministério Público e de decisões como essa da Inês Etienne Romeu, do TRF-2, isso tende a criar um volume de elementos que possibilitam ao STF evoluir da posição anterior”, relata Dallari.

Já para Gonzaga, a composição da corte mudou muito de 2010 para cá, o que pode pesar a favor da reverão da anistia.

“Muita coisa ocorreu e me parece que hoje em dia a população está muito mais consciente da gravidade do que aconteceu. Hoje haveria a chance de uma mudança de posição. Mas precisa que o ministro Luiz Fux coloque [a anistia] na pauta. Ele vem prometendo fazer isso há pelo menos quatro anos”, analisa.

Ela também não vê a possibilidade do Brasil avançar do mesmo modo que países como o Chile em questões relacionadas ao julgamento dos militares. Embora o vizinho também possua Lei de Anistia, houve uma mudança de entendimento após a Suprema Corte considerar que crimes contra a humanidade não são anistiáveis nem prescritíveis.

De acordo com ela, o Judiciário brasileiro é, “em geral, conservador”. Enquanto “no Chile e Argentina, a própria magistratura foi desde sempre muito aberta ao tema [da violação de direitos humanos]. Aqui no Brasil isso já poderia ter andamento há muito mais tempo. Pelo menos desde 2005 a gente vem debatendo sobre essa questão”, conclui.

 


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