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14 de agosto de 2019
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11:02

Autolicenciamento ambiental: ‘Estado não quer solução, nem proteção ambiental. Quer lucrar com os erros’

Por
Sul 21
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Foto: Reprodução/MP-RS

Annie Castro e Luís Eduardo Gomes 

Durante a campanha eleitoral ao Piratini, Eduardo Leite (PSDB) já mencionava planos de mudanças nas leis ambientais do Rio Grande do Sul, afirmando que iria desburocratizar o licenciamento. Após oito meses de mandato, o governador começa a concretizar uma das propostas de campanha e prevê revisão completa do Código Estadual do Meio Ambiente. Nas mudanças está prevista a implementação da modalidade de licença ambiental por meio do Licenciamento por Adesão e Compromisso (LAC), conhecido também por autolicenciamento ambiental.

Atualmente, o licenciamento ambiental no Estado funciona por meio de um processo que inclui três etapas onde técnicos da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) realizam a análise dos projetos de empreendimentos e dos estudos de impactos ambientais. Caso ocorra a mudança proposta pelo Governo do Estado, os empresários passarão a poder adquirir a licença ambiental por meio de um sistema online, apenas com o envio de informações ao Poder Estadual.

Artur Lemos Júnior | Foto: Guilherme Santos/Sul21

O secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura, Artur Lemos Júnior, explica que, atualmente, os empresários já participam de uma etapa online, onde precisam realizar o cadastro em um sistema de licenciamento e inserir ali documentos, detalhes da atividade que realizarão, plantas de obras, etc. De acordo com Lemos, na modalidade de licenciamento por adesão e compromisso a interação online continuaria igual, porém “com um caminho conclusivo”. Assim, conforme o secretário, para adquirir a licença o empresário precisaria responder diversas perguntas no sistema online sobre o empreendimento e sobre os possíveis impactos ambientais, tendo um técnico que responde e assina como responsável por essas informações prestadas e pelos documentos reunidos.

“Os documentos estando de acordo com o que está sendo solicitado pelo órgão, a licença já estaria apta a ser deferida e estar com o empreendedor. Passo seguinte a essa licença automática – que não é automática, mas é chamada assim porque ela não teve interação – passa diretamente para um setor de fiscalização que vai aguardar os momentos adequados para que se faça a fiscalização para identificar se aquela proposta que foi licenciada está sendo seguida”, diz o secretário.

Lemos ressalta que o Governo do Estado não enxerga a modalidade como um autolicenciamento. “No autolicenciamento compreendemos que você por si só se autogerencia e tem atividades sem nenhuma interação ou sem nenhuma intervenção do órgão ambiental, isso seria um autolicenciamento. Entendemos que, nesta modalidade que está buscando se propor para a sociedade, o órgão continua tendo interação e tendo a capacidade de fazer o licenciamento”, afirma. Segundo o secretário, o Governo busca por meio do LAC fazer com que o empreendedor assuma sua parcela de responsabilidade em determinadas situações. “Lá na campanha, o governador já mencionava inverter um pouco a lógica em algumas situações, de nós encararmos o empreendedor não como um inimigo, como um degradador do meio ambiente, mas como uma pessoa também interessada”, diz.

Ainda não há a definição de quais atividades estarão habilitadas para conseguir a licença por meio do autolicenciamento. A decisão caberá ao Conselho Estadual de Meio Ambiente (Consema). Inicialmente, a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) pretende permitir a modalidade para cerca de 30 atividades com potencial de poluição baixo, médio e alto. No momento, a alteração no Código, que será proposta por meio de um Projeto de Lei, está em análise no gabinete de Leite. Segundo o secretário do Meio Ambiente, a expectativa é de que o processo de aprovação ou não das mudanças ocorra ainda neste semestre, quando o Governo deverá apresentar o PL aos deputados da base aliada – que atualmente também integra a presidência da Comissão de Saúde e Meio Ambiente.

Riscos do autolicenciamento

Para o biólogo, arquiteto,urbanista e presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez, o modelo de licenciamento proposto pelo Governo Leite apresenta riscos para o meio ambiente, uma vez que poderá fazer com que os empresários não tenham a tutela necessária do Estado antes de iniciar seus empreendimentos, aumentando a chance de danos ambientais. “Com ou sem Estado, com ou sem autolicenciamento, ele [empresário] vai precisar de consultoria igual. O que afeta é o risco dele, por não ser tutoriado pelo Estado, cair em mãos de consultores incompetentes ou mal intencionados. Se o empresário não sabe nada de meio ambiente, do processo que está fazendo ali, ele contrata alguém e paga. Então, com isso, o Estado desprotege o cara”, afirma Milanez.

Francisco Milanez. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Ainda, o biólogo aponta que o processo atual de licenciamento é algo que “incomoda o Estado” em razão dos custos com pessoal. Porém, segundo Milanez, esse seria o processo “mais importante, educativo e tutorial da atividade empresarial”. “É uma bobagem o empresário querer escapar dele porque quem vai se ferrar é ele, porque ele é responsável por todas as coisas daquele produto”, diz. “Os processos de licenciamento, que tanto reclamam meia dúzia de empresários e os puxa-sacos dos empresários, é o processo mais preventivo do Estado”.

Para Milanez, a mudança seria ainda uma medida “perversa”, que facilitaria para empresários que “querem fazer malandragem”, aumentando o risco dos que querem realizar uma atividade séria, preocupados com os danos ambientais. “Existe atividade empresarial séria e existe atividade empresarial não séria. Quem está levantando isso [a mudança] são as pessoas não sérias, que têm influência sobre o Estado e querem liberalização e aceleralização. Uma atividade séria tem que ter certeza da segurança e a única forma de ter segurança é com a tutela do Estado, porque o Estado, de certa forma, assume várias responsabilidades junto”, afirma. “Para fazer mais rápido, basta fazer um processo mais competente, contratar mais gente, se tu tem muito pouca gente, isso é velocidade. Mas eles [empresários] não querem, eles querem liberar e liberar só interessa para quem não é sério. Quem é sério quer acompanhamento”.

Para Milanez, a proposta do Governo Leite também é problemática ao prever permitir o autolicenciamento para atividades de alto risco ambiental. O biólogo critica a fala da presidente da Fepam, Marjorie Kauffmann, que disse não acreditar que a silvicultura apresenta médio e alto risco de poluição e que pretendia fazer a reclassificação da atividade. “Ela é engenheira florestal. Engenheiros florestais não entendem nada de meio ambiente, eles entendem de produção de árvores. A silvicultura no mundo inteiro causa danos, os eucaliptos, onde são plantados, secam todos os riachos e arroios, em todos os continentes”, explica. “É uma visão de um técnico que sabe plantar, mas não sabe nada de meio ambiente, então, ela não pode dizer uma bobagem dessas. Se ela fizer a reclassificação das atividades que ela quer, ela vai mudar conforme a sua visão limitada de um conselho controlado pelo Estado e somado pelos empresários”.

O biólogo também ressalta que, uma vez que o Governo pretende, a partir da mudança, intensificar o número de fiscalizações, a medida poderá transformar o Estado em uma fábrica de multas. “Querem transformar o Estado em uma máquina de arrecadação de multas. O Estado quer deixar de ajudar os empresários a desenvolver sua atividade de forma coerente com o meio ambiente e depois quer multar. Eles só querem uma fábrica de multa. Não querem solução, nem proteção ambiental, querem lucrar com os erros. Acho muito perverso. Para o meio ambiente, é horrível”, pontua.

Entretanto, para o secretário do Meio Ambiente e Infraestrutura, o debate acerca de como será a fiscalização dos empreendimentos autolicenciados será feito somente após a definição de quais atividades serão aprovadas para a modalidade. “Vamos começar a nos debruçar com os técnicos para ver qual a melhor forma, qual a melhor estratégia de trabalho, a medida em que ficar claro quais atividades serão licenciadas e em qual formato. Antecipar esse debate é falar em cima de suposições”, diz Lemos. Segundo ele, primeiro o Estado precisa saber quais serão as atividades para saber que “tipo de fiscalização, interação ou vistoria in locu as atividades necessitam”. “Tem algumas que não necessitam ter no seu início, mas necessitam ter ao seu final, tem outras que não necessitam ter ao seu final, mas precisam ter no meio de construção e instalação”, diz.

Sobre o Estado se tornar uma fábrica de multas, o secretário defende que nem todas as fiscalizações resultam na multa. “Para você ter uma ideia, em questão de multas, das fiscalizações que foram feitas no ano passado menos de 20% se reverteram em multas. Claro, algumas foram dadas advertências, outras estava tudo ok. Não é interesse do órgão ampliar o número de multas expedidas”, garante.

Exemplos já existentes

A modalidade de autolicenciamento acontece em outros estados que serviram de inspiração para o Governo Leite, como Santa Catarina e Bahia. Porém, em Santa Catarina a possibilidade existe somente em uma atividade: na avicultura. A mudança ocorreu em agosto de 2018, quando Instituto do Meio Ambiente (IMA) de Santa Catarina lançou o modelo digital de licenciamento por adesão e compromisso para o setor. Está previsto que a modalidade seja implementada também no setor de transporte de produtos perigosos ainda neste ano no estado catarinense.

Apesar do licenciamento por adesão e compromisso funcionar desde o ano passado, a alteração no Código Ambiental de Santa Catarina havia acontecido em 2013. Na época, a mudança fez com que o Ministério Público do Estado estado ingressasse com uma ação declaratória de inconstitucionalidade no Tribunal de Justiça (TJ-SC). “No entender do MP essa previsão exorbitou da competência legislativa concorrente do estado de Santa Catarina em relação à União”, explica Luciana Cardoso Pilati Polli, promotora de Justiça e coordenadora do centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente do MPSC.

“Recentemente houve o julgamento dessa ação e o Tribunal entendeu que esse dispositivo é constitucional. Por não concordar com esse entendimento, o Ministério Público de Santa Catarina interpôs um recurso extraordinário em face dessa decisão perante o Supremo Tribunal Federal (STF)”, diz Luciana. A promotora afirma que o MPSC entende que “cabe à União e não ao Estado estabelecer normas gerais sobre a proteção do meio ambiente”. “Dessa forma, além disso, o Estado de Santa Catarina teria feito uma previsão de uma nova regra que é ainda menos protetiva em relação ao meio ambiente”, afirma.

Por ser uma implementação recente, a promotora afirma que ainda não há um balanço dos efeitos da LAC no setor de avicultura. “Até o momento foram expedidas na avicultura 313 licenças nessa modalidade”, relata. Porém, o biólogo Milanez afirma que o governo catarinense atualmente está fazendo um “extrativismo suicida”: “Santa Catarina, com todo respeito, é uma vergonha. É o paraíso da destruição. Estão jogando fora o grande potencial ambiental, de riqueza de turismo e tudo”.

A promotora Luciana pontua que a maior preocupação do MP é que a modalidade LAC faz com que o controle do Estado acerca dos danos ambientais não aconteça previamente. “A lógica do licenciamento é que exista uma fiscalização por parte do poder estatal previamente em todas as fases de implementação dos projetos. Dessa forma como vem sendo feita, como prevista e como iniciou recentemente aqui no Estado, ela é concedida eletronicamente mediante uma mera declaração de compromisso firmado pelo interessado. Então, esse controle prévio não existe”, diz.

A promotora também afirma que o procedimento de licenciamento ambiental existe com caráter preventivo, que faz com que o órgão licenciador possa analisar e atestar a viabilidade ambiental dos projetos de empreendimentos para liberar ou não a licença ambiental. “Em matéria de meio ambiente se entende que se deve sempre agir previamente ao dano, não deixar que ele aconteça para que daí se tome previdências. Nessa licença por mera declaração esse controle de condições de viabilidade não é feito de uma maneira prévia”, diz. Em função disso, o MPSC teme que essa modalidade acabe sendo menos protetiva ao meio ambiente.


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