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17 de agosto de 2019
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12:15

Apoiada por empresários e pelo Município, Fraport avança em remoções mas usa o Minha Casa, Minha Vida

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Sul 21
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Justiça Federal permitiu a continuidade da remoção das famílias da Vila Nazaré para as obras do aeroporto. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro 

Em decisão publicada na noite da última quarta-feira (14), a juíza Thaís Helena Della Giustina, da 3ª Vara Federal de Porto Alegre (RS), autorizou a continuidade do processo de remoção das famílias da Vila Nazaré para os loteamentos Nosso Senhor do Bom Fim, nas proximidades da Av. Assis Brasil, e Irmãos Maristas, na Vila Timbaúva, bairro Rubem Berta. Com a decisão, o Departamento Municipal de Habitação (Demhab) da Prefeitura de Porto Alegre prevê que a segunda etapa da remoção dos moradores comece em setembro.

Em 13 de julho, a juíza havia suspendido a segunda etapa da remoção dos moradores até que a Fraport Brasil, concessionária do aeroporto, realizasse o cadastramento total das famílias da Nazaré e de suas atividades comerciais realizadas na Vila e na região do entorno do Salgado Filho que não é considerada sítio aeroportuário. A decisão da juíza foi uma resposta à ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público Federal, pelo Ministério Público do Rio Grande do Sul, pela Defensoria Pública da União e pela Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul em 4 de julho. A ação tem como réus a Fraport, o Município de Porto Alegre, o Demhab, a Agência Nacional de Aviação (ANAC) e a União.

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No documento, os órgãos apontavam que a Fraport havia feito o cadastramento de apenas 932 famílias da Nazaré. De acordo com as entidades, estima-se que cerca de duas mil famílias vivam na região. Os órgãos também responsabilizavam a Fraport pelo reassentamento dos moradores, exigiam que não ocorressem remoções forçadas e pediam a elaboração de um plano de reassentamento adequado para as famílias que não querem ir para os dois empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida que estão sendo oferecidos.

Em julho, a juíza Thaís havia concordado que o cadastramento incompleto impossibilitava a dimensão do número de famílias que seriam atingidas pela obra e também a elaboração de uma política de reassentamento que suprisse a necessidade dos moradores. Na decisão desta quarta, a magistrada afirmou que as remoções poderiam ser retomadas pois a Itazi, empresa contratada pela Fraport para realizar o levantamento, havia concluído o cadastramento de todas as famílias que vivem no entorno da Nazaré, assim como de suas atividades geradoras de renda. De acordo com ela, a empresa cadastrou 1.221 ocupações, incluindo aquelas existentes na área externa ao sítio aeroportuário.

Em decorrência das obras de ampliação do Aeroporto Salgado Filho, segunda etapa das remoções na Vila Nazaré deverá começar em setembro. Foto: Luiza Castro/Sul21

Em nota enviada ao Sul21, a Fraport disse estar “muito satisfeita com a decisão judicial e com o fato de poder continuar os trabalhos de desocupação da área”. “A decisão representa um enorme ganho de qualidade de vida às famílias que vivem na Vila Nazaré e, ao mesmo tempo, viabiliza o cumprimento do compromisso assumido pela Fraport em ampliar a pista do aeroporto de Porto Alegre para a promoção do desenvolvimento econômico da região”, diz o texto.

Entretanto, o Ministério Público do Rio Grande do Sul, um dos autores da ação pública, entende que a decisão da Justiça Federal não atendeu ao pedido das entidades que ajuizaram a ação e aponta a necessidade de que a Fraport apresente um plano de reassentamento que dê opções para as famílias que não querem ir para os loteamentos Bom Fim ou Irmãos Maristas. “As partes rés estão irredutíveis quanto à possibilidade de apresentar o que nós queríamos, que era uma terceira opção para as família. Queríamos um plano de reassentamento para que todos tivessem a possibilidade de escolher quais das opções eles gostariam”, disse ao Sul21 a procuradora Ana Paula Carvalho de Medeiros, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do MPF-RS.

De acordo com ela, a ausência de uma terceira opção acaba prejudicando as famílias. “Tu não podes fazer uma opção livre quando tu não tens a dimensão do que tu estás escolhendo”, pontua. Segundo ela, um plano de reassentamento que incluísse uma opção além dos empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida foi principal tópico discutido na audiência de conciliação que aconteceu na 3ª Vara Federal de Porto Alegre, em 8 de agosto, e terminou sem acordo.

O mesmo ponto é levantado pelos moradores da Vila Nazaré. “Tem pessoas que não se enquadram no Minha Casa, Minha Vida e que vão ter que encontrar depois uma casa na região. Mas eles não deram para todo mundo a terceira opção. O pessoal que se enquadra no programa vai, obrigatoriamente, para o Minha Casa, Minha Vida. Eles disseram ‘eu tenho o Marista e Bom Fim. Não deram uma outra opção”, afirma o líder comunitário Daniel Alex da Silva Dutra.

Alex também explica que a realocação das famílias para dois empreendimentos distantes irá prejudicar a comunidade que se criou em torno da Nazaré. “O ideal para a nossa comunidade seria todos juntos no mesmo local. Eles vão nos dividir. Nossa comunidade, nossa cidade vai deixar de existir. Tem duas mil famílias aqui hoje. Esse pessoal todo vai se evadir, os costumes, crenças, vai tudo deixar de existir, vai separar todo mundo e causar um empobrecimento da comunidade”, afirma o líder comunitário, que também menciona a grande pressão que os moradores sofrem do Executivo Municipal para deixar o local: “Eles vem com polícia, eles entram aqui e fazem de tudo. Eles colocaram na cabeça das pessoas que elas não tinham direito a casa”.

Apoio do empresariado

Se outros setores têm questionado a responsabilização da Fraport no processo e as opções restritas dadas à comunidade, o mesmo não acontece com o empresariado gaúcho. Em nota, a presidente da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), Simone Leite, disse que a entidade recebia a notícia da decisão da Justiça Federal de liberar as remoções com “imensa satisfação”. “São decisões céleres como esta, que considera o interesse público e permite o seguimento de obras essenciais ao Estado, que nos possibilitam acreditar em um futuro melhor para todos os gaúchos”, disse.

No início do mês, a Fraport chegou a apresentar, em um café da manhã na Federação das Indústrias do Estado do Rio Grande do Sul (FIERGS), o ponto de vista da companhia alemã a respeito do assunto. “O contrato é muito claro, nossa responsabilidade é apenas a de desocupar a área. Se tivermos que realocar as famílias, provavelmente não seguiremos com a construção ou não pagaremos tanto à União pela concessão; esperamos uma compensação”, afirmou na ocasião Andrea Paal, diretora-presidente da Fraport Brasil.

O prefeito de Porto Alegre, Nelson Marchezan Júnior (PSDB), também participou do evento e se mostrou em empenhado em, nas palavras dele, “resolver a questão”. “É importante frisar que toda essa dedicação da Prefeitura em desocupar o terreno e a busca de um investimento imobiliário começou muito antes da licitação da Fraport. É um compromisso social do município de Porto Alegre com mais de mil famílias”, afirmou.

Segunda etapa da remoção

Na primeira etapa do processo de remoção, que foi concluído na última segunda-feira (12), a Prefeitura realocou, por meio de sorteio, 128 famílias para a Nosso Senhor do Bom Fim. De acordo com o Demhab, na segunda fase mais 236 irão para o local, totalizando 364. Para fechar o total de 1,3 mil famílias que o Executivo Municipal pretende remover da Vila Nazaré até o fim deste ano, o loteamento Irmãos Maristas, que ainda não teve as obras concluídas, receberá as outras 936. A previsão é de que o condomínio fique pronto no início de outubro, conforme informações do Demhab.

Ainda de acordo com o órgão, a segunda etapa, que deve iniciar em setembro, começará mediante ao sorteio da Caixa Econômica Federal. Segundo a decisão da Justiça Federal, a realização da segunda fase das remoções deve continuar a ser executada nos mesmos moldes realizados pelo Demhab e pelo poder Municipal na primeira etapa do processo de remoção, ou seja, “mediante sorteio a ser efetivado dentre as famílias residentes no sítio aeroportuário que manifestarem interesse à ocupação das unidades habitacionais oferecidas, ressalvadas as situações de prioridade pontuadas acima” Além disso, a juíza afirmou que existe, nesse primeiro momento, uma solução habitacional adequada proposta às famílias da Nazaré. “Deveras, consoante aduzido pelo Demhab e Município de Porto Alegre, os loteamentos em apreço apresentam saneamento básico, infraestrutura, locais para comércio, e, quanto ao Irmãos Marista, posto da Polícia Civil”, observou a juíza.

Porém, de acordo com o líder comunitário Alex, os moradores que já foram realocados para o Bom Fim estão relatando problemas nos imóveis, como goteiras nas casas, por exemplo. Ainda, as famílias também reclamam a respeito da ausência de um ponto comercial. “O pessoal que tinha casa e comércio na Nazaré trocou a casa e o comércio trocou por uma única casa. Ficaram sem trabalhar, não tem como se sustentar, e estão chegando as contas de luz, de água”, relata.

A Prefeitura pretende remover 1,3 mil famílias da Nazaré até o final do ano. Foto: Luiza Castro/Sul21

Na decisão, a juíza também pontuou que, em razão de haver novas famílias cadastradas, “há de ser revisada a eventual existência de outros núcleos que se enquadrem em tal condição de vulnerabilidade previamente ao sorteio das unidades habitacionais remanescentes aos demais moradores”. Além disso, destaca que caso existam unidades sobrando nos empreendimentos, elas devem ser encaminhadas para as famílias que vivem na área externa ao sítio aeroportuário e também se enquadram em situação de vulnerabilidade.

A promotora, no entanto, critica a decisão da juíza de que o processo de remoção deve continuar sendo feito nos moldes do Município e do Demhab. “De novo as famílias que estão fora do sítio não poderão concorrer a esse empreendimento do Bom Fim, que é o que tem mais pessoas interessadas. Novamente, da maneira como consta na decisão, só vão concorrer as pessoas que estão na área aeroportuária. Não concordamos com a decisão da maneira com que ela foi tomada”, afirma Ana Paula. Ainda cabe às entidades ingressarem com um recurso no Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4).

Responsabilização da Fraport

Uma das questões centrais no impasse envolvendo a remoção das famílias, no entanto, diz respeito a quem deve e arcar com os custos, tanto da operação quanto das novas moradias. De acordo com o procurador Enrico Rodrigues de Freitas, da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC) do MPF-RS, as entidades ajuizaram a ação responsabilizando a Fraport pelo reassentamento das famílias baseadas no contrato de concessão das obras do aeroporto. “Entendemos que a responsabilidade é da Fraport por conta da previsão contratual. O contrato com a Fraport diz, na cláusula 2.5, que “nas eventuais desocupações de áreas localizadas no sítio aeroportuário em posse ou detenção de terceiros prévias ou posteriores à celebração do contrato serão de integral responsabilidade da concessionária”, explica.

O procurador pontua ainda a necessidade de entender todos os processos que aconteceram antes de o contrato ser assinado pela Fraport e pelo poder concedente. Naquele momento, segundo Freitas, fazia sentido que se utilizasse um empreendimento vinculado ao poder público para reassentar as famílias. “Inicialmente, existia a ampliação da pista com a sua realização pela Infraero. Nesse momento, houve uma idealização de realização de empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida para que o poder público tivesse alguma disponibilidade habitacional para esses reassentamentos. Mas, em determinado momento, a presidência da República decidiu mudar essa modelagem e resolveram estabelecer a construção do aeroporto Salgado Filho pelo formato de concessão”.

Segundo ele, inicialmente o contrato de concessão incumbia ao Poder Público Municipal de solucionar a questão habitacional. “Em uma audiência, lá em 2016, foram feitas inúmeras contribuições, inclusive do Poder Público Municipal dizendo que era inviável essa solução habitacional e falando que esses empreendimentos do Minha Casa, Minha Vida se adequavam à solução habitacional para aquela comunidade”, relata Freitas.

O procurador ressalta que a versão final do contrato responsabiliza a concessionária pela remoção e reassentamento das famílias. De acordo com ele, o contrato afirma que “é responsabilidade da concessionária todos os custos decorrentes das desocupações do sítio aeroportuário, bem como de eventuais reassentamentos e realocações”. Conforme estimativas de um estudo preliminar da União, o valor dos custos estaria em aproximadamente R$ 140 milhões.

Segundo Freitas, uma vez que os dois empreendimentos foram construídos com recurso público, a Fraport teria obrigações de ressarcir a União. “Ela está deixando de pagar esses custos e com isso tem um enriquecimento indevido. Como [os condomínios do Minha Casa, Minha Vida] foram construídos com recursos públicos, recorrente disso temos outras habitações que deixam de ser construídas”, afirma. No dia 19 de junho, o Poder Municipal e a Fraport fizeram um acordo para que a empresa assumisse as obras complementares nos dois condomínios. Segundo o Demhab, esse investimento será feito somente para terminar as unidades comerciais que deverão ser construídas nos loteamentos e não há previsão de reembolso a respeito das obras que já foram feitas.

O procurador também afirma que um plano de reassentamento adequado deveria perpassar pela preocupação com as necessidades básicas de todas as famílias. “Mais de 40% das famílias de lá vivem de reciclagem. Como tu vais resolver isso com a mera transferência delas para apartamentos? Precisamos ter uma situação habitacional adequada que mantenha essa geração de renda”, afirma. Ele também reforça que não é possível que essas atividades continuem ocorrendo no entorno do sítio aeroportuário em função dos possíveis riscos de acidentes, mas pontua que é necessário que a empresa desenvolva uma solução habitacional adequada pensando nesses pontos.

Questionada pelo Sul21, a assessoria de imprensa da Fraport disse que a empresa só irá se manifestar sobre a ação após a Justiça decretar o resultado.


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