Cultura
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13 de julho de 2019
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12:11

‘Tinder dos Livros’: projeto busca democratizar o acesso de pessoas negras à literatura

Por
Annie Castro
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'Projeto Tinder dos Livros' busca democratizar o acesso de pessoas negras à literatura.  Foto: Luiza Castro/Sul21
'Projeto Tinder dos Livros' busca democratizar o acesso de pessoas negras à literatura.  Foto: Luiza Castro/Sul21

Enxergando a leitura como uma ferramenta que auxilia os processos de emancipação da população negra, a doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul Winnie Bueno criou um projeto que conecta pessoas negras que precisam de um livro, mas que não têm condições de comprá-lo, à quem está disposto a realizar doações.

Chamado de Tinder dos Livros, uma referência ao aplicativo de relacionamento, o projeto de arrecadação de livros surgiu em novembro de 2018, após o Dia Nacional da Consciência Negra. “Eu fiquei muito impressionada com o engajamento das pessoas sobre 20 de novembro, sobretudo pessoas brancas que se colocavam como aliadas na luta contra o racismo nesse dia”, lembra Winnie. As manifestações na data motivaram a doutoranda a fazer uma publicação afirmando que existem formas mais efetivas de a população branca ser anti racista, “como, por exemplo, se dispor a doar um livro que uma pessoa negra precisa para estudar e não tem”.

Com a publicação, diversas pessoas se ofereceram para fazer doações. “Eu comecei a fazer postagens dizendo que tinha gente disponível para comprar um livro para uma pessoa negra, e as pessoas começaram a me mandar seus pedidos de livros”, lembra Winnie. Desde então, ela atua como ponte entre quem pediu um livro e quem irá doar. “Eu recebo no meu Twitter os pedidos de livros e mensagens de pessoas que se dispõem a comprar. A pessoa que quer receber me manda o seu nome e endereço completos, com CEP e tudo, e o livro que ela quer. Eu pego essa informação e envio para uma pessoa que quer doar”, explica.

A doutoranda Winnie Bueno é a idealizadora do Tinder dos Livros. Foto: Arquivo Pessoal

A criadora do projeto estima que cerca de 500 pessoas já receberam livros desde novembro do ano passado. “Não tenho uma tabela controlando, mas pensando nesse tempo todo e na quantidade de pedidos que aparecem nas levas grandes, que é quando tem muito doador e muito pedido, eu imagino que sejam umas 500 pessoas mesmo”, afirma. No Twitter, as pessoas que receberam os livros utilizam a hasthag #TinderDosLivros para agradecer ao projeto e à Winnie.

De acordo com a doutoranda, o processo de envio do livro é responsabilidade de quem está fazendo a doação. “Às vezes acontece de a pessoa ter o livro, mas a maioria compra o livro em um site na internet e já coloca o endereço de entrega de quem vai receber”, conta. Segundo a doutoranda, o projeto recebe doadores de diversas cidades do Brasil e, até mesmo, de outros países, como Estados Unidos, Alemanha e Espanha.

A professora e youtuber Jana Viscardi foi uma das doadoras que participou do Tinder dos Livros. Ela, que descobriu o projeto por meio do Twitter da Winnie, fez a doação em novembro, logo no início da campanha. “O livro que eu doei era ‘O Genocídio do Negro Brasileiro’”, lembra Jana. Ao contrário do que normalmente acontece, por curiosidade, Jana entrou em contato com a pessoa que iria receber o livro. “A gente conversou um pouco, ela contou que estava fazendo uma pesquisa e por isso precisava ler esse livro”, lembra. A pessoa para quem Jana doou o livro mora em Minas Gerais, enquanto a professora é de São Paulo.

Segundo Jana, ela decidiu participar do projeto por observar um caráter social e educacional no Tinder dos Livros. “Quando eu vi ela [Winnie] falando sobre essa possibilidade de mandar livros para as pessoas, eu pensei em todo o acesso a diferentes ferramentas que eu tive e a possibilidade que tive de ler várias coisas, e quis retribuir isso”, explica. “Sou uma pessoa que estudou em escola pública e em universidade pública, que teve acesso a livros, e esse acesso foi muito importante para que eu continuasse fazendo as coisas que eu queria fazer, como pesquisas na Faculdade. Então, achei que era uma maneira de retribuir”.

Embora qualquer pessoa posa se habilitar para realizar uma doação, o projeto possui uma delimitação a respeito de quem irá receber os livros: ele é voltado apenas à comunidade negra. “Decidi dedicar o meu tempo para fazer chegar livros às pessoas negras, porque eles não chegam. O acesso à intelectualidade, sobretudo à intelectualidade negra, ainda é muito pequeno”, explica Winnie. De acordo com a doutoranda, esse foi o fator que fez com que ela passasse a usar sua visibilidade no Twitter e seu tempo para aumentar o acesso da população negra às publicações acadêmicas e literárias.

Livros de teóricas e teóricos negros, como Angela Davis, Muniz Sodré, Bell Hooks e Abdias do Nascimento, são os mais pedidos à Winnie. “São livros que, por mais que agora tenha todo um interesse editorial em veicular no Brasil e em português, você ainda não encontra facilmente em uma biblioteca de escola ou pública. São livros que o acesso ainda é limitado”, diz. A doutoranda ressalta ainda que essas publicações normalmente são vendidas por um preço alto. “A média do valor dos livros que eu recebo o pedido é 40 ou 50 reais. Esse valor, para um estudante negro de graduação e, às vezes, de pós graduação, é muito dinheiro”, pontua.

Tóricas como Angela Davis e Bell Hooks são algumas das escritoras mais pedidas ao Tinder dos Livros. Foto: Luiza Castro/Sul21

A psicóloga e pós-graduanda em Psicologia Social Liziane Guedes, que recebeu dez livros por meio do projeto, afirma que obras produzidas por intelectuais negras e negros ainda são de difícil acesso para a maior parte da população e, principalmente, para a própria comunidade negra. “Não é que a gente não produza livros, porque historicamente a gente produz, tanto no Brasil quanto no mundo, mas porque essas obras, em geral, são produzidas de uma forma mais artesanal ou acabam se tornando tão caras que a gente não consegue pagar por elas”, afirma.

Dos livros que Liziane recebeu, oito eram para leituras acadêmicas e outros eram romances ou ficções, mas que dialogam sobre os temas pesquisados pela psicóloga. “Eu soube de muitos desses livros através da internet e não tive a oportunidade de acessá-los”, conta. Nove das publicações solicitadas por ela para o projeto eram escritas por autores ou autoras negras, como Renato Noguera, Maya Angelou, Toni Morrison e Muniz Sodré. Liziane aponta que os fatores que dificultam o acesso a essas publicações são uma demonstração do racismo presente no mundo da literatura. “É o racismo das próprias editoras que não investem nisso ou então o racismo que diz respeito ao fato dessa produção ser tão cara que não vai chegar na pessoas que realmente precisam ler sobre aquilo, já que aquela literatura fala sobre elas. De que adianta termos autoras e autores negros sendo publicados, se esses livros e essas narrativas não chegam nas pessoas negras?”, questiona.

A graduanda em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Thaís Nascimento, que recebeu uma doação do Tinder dos Livros, enxerga o projeto como de grande importância para a população periférica e negra, principalmente para aqueles que estão na Universidade, mas que não têm condições de investir em diversos livros. “Quando a gente chega na faculdade nos deparamos com uma realidade muito diferente da nossa. O professor pede um texto de um livro, e a maioria da turma que não é periférica tem condições de comprar, mas a gente que é tem que revezar o livro, fazer vaquinha pra tirar xerox”, afirma.

Thaís conta que, em função da não ter como bancar as leituras e até mesmo passagens, muitos de seus colegas estavam desistindo do curso. Para evitar que isso acontecesse, a turma se uniu para criar uma caixinha com dinheiro coletivo. “Sempre que sobrava, alguém da turma colocava um valor ali, a turma ia dando quanto podia, e sempre que alguém precisava de uma passagem ou xerox essa pessoa recorria à essa caixinha”. Entretanto, mesmo com a vaquinha, os alunos não conseguiam adquirir um livro impresso. Agora, após ter ganhado do projeto a publicação que precisava ler para uma disciplina, Thaís afirma que se dispôs a passar o livro para quem precisasse dele.

Para a psicóloga Liziane, o projeto criado por Winnie funciona como uma ação anti racista, com caráter político, e que facilita a democratização do acesso ao conhecimento. “No momento em que os livros chegam às mãos de pessoas como eu e de outras pessoas negras, isso facilita a democratização do acesso ao conhecimento. No momento que a gente tem a oportunidade de ler autores e autoras que, até então, estavam restritos a uma parcela da população, a gente pode, de alguma forma, construir outras análises e outras percepções sobre o mundo que a gente vive”, diz.


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