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17 de julho de 2019
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12:34

‘Terceirização da saúde torna mais fácil que gestores se desresponsabilizem da prestação de serviço’

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Sul 21
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Protesto dos trabalhadores da Saúdem em Canoas. Foto: Sindisaúde-RS/Divulgação

Annie Castro 

Há um ano e meio, desde que começou a trabalhar como agente de atendimento nas Unidades Básicas de Saúde (UBS) de Canoas vinculadas ao Hospital Nossa Senhora das Graças (HNSG), Samara Trindade recebe o salário, o vale alimentação e até mesmo o vale transporte sempre atrasados. Porém, a situação de Samara, juntamente com cerca de 300 funcionários do HNSG, pode ficar ainda pior: eles serão demitidos e correm o risco de não receberem o pagamento das verbas rescisórias devido ao fim do contrato de prestação de serviços entre o Hospital e o município, e a falta de condições financeiras da empresa mantenedora do HNSG.

Em 2013, a Prefeitura do município contratou o HNSG, que é uma instituição privada gerida pela empresa Associação Beneficente Canoas (ABC), para a prestação de serviços na área da saúde no município. Atualmente, o Hospital é responsável por atender 32 UBS, oito farmácias e três Unidades de Pronto Atendimento (UPAs). O contrato de licitação, nomeado de número 64, duraria até julho de 2018, mas foi prorrogado pelo poder Executivo por mais um ano em caráter excepcional. Entretanto, em fevereiro de 2019, a ABC passou a administração e a gestão do Hospital para outra empresa, a Associação Beneficente São Miguel (ABSM), que também é a mantenedora da gestão do hospital Beneficência Portuguesa de Porto Alegre.

Com o final do contrato previsto para 31 de julho, os funcionários já estão trabalhando em aviso prévio. Porém, em função da crise financeira atravessada pelo Hospital nos últimos anos, os trabalhadores temem não receber as verbas rescisórias as quais têm direito. “Há um ano a gente já sabia que ia ser demitido, mas o correto seria a administração pública fiscalizar se seriam cumpridos os direitos dos trabalhadores. Sabemos que o Hospital que tem que pagar, só que ele tá mal há muito tempo e sabemos que isso não vem de hoje”, afirma Samara.

O risco do não pagamento levou os funcionários da saúde de Canoas a planejarem uma greve da categoria nesta semana. De acordo com o secretário geral do SindiSaúde – RS Júlio César Jesien, os trabalhadores e os sindicatos ficaram sabendo disso por meio do jurídico da ABSM, que procurou o Tribunal Regional do Trabalho “para buscar uma mediação com relação à questão de não ter dinheiro” para o pagamento das verbas rescisórias dos funcionários.

“A princípio, a ideia deles era buscar um parcelamento das verbas rescisórias, mas a gente não sabe nem quantas parcelas seriam. Por conta disso, nós começamos a dizer que a gente não concordava e algumas coisas foram acontecendo”, afirma Jesien. Na última quarta-feira (18), foi realizada uma reunião no TRF4, onde foi feita, por parte dos funcionários, uma proposta de minimização dos impactos, buscando garantir pelo menos o pagamento do último salário dos funcionários. Dessa forma, a greve da saúde, que estava prevista para iniciar nesta quarta-feira (17), deve passar por uma nova votação da categoria em assembleia.

Assembleia de trabalhadores da Saúde de Canoas. Foto: Sindisaúde-RS/Divulgação

‘Colaterização’ da saúde

Para o SindiSaúde, o caso do HNSG representa uma quarteirização na área da saúde, uma vez que a Prefeitura do município terceirizou o serviço por meio da empresa ABC, que no último ano passou a administração do Hospital para outra instituição privada. De acordo com o médico e professor do Curso de Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Alcides Miranda, que há cerca de dez anos estuda os impactos da terceirização na saúde, casos como esses se tornarão cada vez mais comuns no Brasil. Miranda chama esse efeito de ‘colaterização’, termo que, segundo ele, não é o mais preciso, mas explica a tendência que há hoje de um “fracionamento de responsabilidades” por parte do poder público e de empresas privadas.

Segundo ele, essa colaterização é algo que acontece em diversas áreas, não só no sistema de saúde, e que é apoiada por uma modificação recente na legislação que “autoriza esse tipo de transferência de responsabilidades”. De acordo com Miranda, esse efeito faz com que se torne cada vez mais difícil que se culpe judicialmente os responsáveis por casos de violações de direitos trabalhistas, e até mesmo por desastres ambientais, como foi o caso do rompimento da barragem em Mariana, em Minas Gerais. “O principal motivo para que não tenha havido a punitividade em Mariana foi porque as empresas responsáveis, inclusive a Vale do Rio Doce, dispersaram tanto a questão da gestão que a justiça teve dificuldade para definir quem é que ia responder pelo caso”, explica Miranda. De acordo com ele, no caso específico da Vale, “mais de uma dezena de empresas” estavam envolvidas em “uma rede de colaterização de responsabilidades”.

Conforme aponta o professor, o mesmo acontece na área da saúde. “Se essa empresa deixar de pagar esses trabalhadores e eles acionarem a Justiça, vai haver uma dificuldade na definição de quem é o responsável por esses pagamentos. E esse caso é algo que eu tenho impressão que vai se repetir em vários locais nos próximos anos, porque vamos encontrar cada vez mais uma dificuldade de a Justiça poder responsabilizar esse tipo de transferência”, afirma Miranda.

Para o médio, os governos municipais e estaduais procuram investir na terceirização dos serviços públicos por meio do “argumento da Lei de Responsabilidade Fiscal”. “Como eles não podem gastar a partir de uma determinada proporção com pagamento de pessoal, eles justificam esse tipo de transferência. Mas se tu for analisar hoje em alguns orçamentos qual é o gasto com o pessoal da saúde, esse argumento não se justifica do ponto de vista da eficiência no trato dos recursos públicos e da responsabilidade fiscal”, afirma. Porém, ele aponta que isso tem feito com que se “torne mais fácil que os gestores se desresponsabilizem da prestação de serviço”.

O médio pontua ainda que, tanto casos de terceirização quanto de colaterização geram riscos aos trabalhadores ao se tratar de vínculos trabalhistas e garantias contratuais. Miranda analisou mais de 300 contratos com empresas terceirizadas na área da saúde nos estados de Santa Catarina, Paraná, Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro. “O meu estudo focou nos contratos que foram estabelecidos e quais eram as garantias contratuais estabelecidas neles”, explica. De acordo com o professor, não existia nenhuma garantia presente nessas licitações. “Não se exige garantias nem com relação aos trabalhadores, nem com relação a questões complementares da saúde, como controle social e outras coisas”, afirma.

Embora o poder público seja o responsável pela terceirização dos serviços para uma empresa privada, Miranda aponta que os governos não podem intervir nas relações de trabalho da empresa que ganhou a licitação e do empregado contratado por ela. Porém, o médico aponta que o poder público pode definir no contrato que sejam observados e mantidas as condições e garantias trabalhistas desses trabalhadores, com ameaça de que o contrato seja rompido caso a empresa viole alguma dessas normas. “O gestor poderia, se ele quisesse, exigir contratualmente que esses prestadores privados garantissem condições de equidade com relação às condições de trabalho, de salário e de progressão funcional que os trabalhadores têm”, afirma. Porém, não é comum que existam essas exigências nos editais de licitação e nos contratos. “Eu não vi nada disso em nenhum dos contratos que eu revisei”, diz.

Ainda, de acordo com Miranda, a colaterização da saúde reflete na precarização das relações de trabalho, já que em alguns casos, há trabalhadores com diferentes vínculos trabalhistas cumprindo as mesmas tarefas. “Tu não pode ter no mesmo sistema de saúde trabalhadores em condições distintas, como um trabalhador que é terceirizado e um que é quarteirizado, porque tu vai ter trabalhadores com salários diferentes, com regimes de trabalho diferente e isso precariza. Muito dificilmente esses trabalhadores vão construir vínculos com os usuários ou acompanhar as famílias”, afirma.


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