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28 de julho de 2019
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12:13

‘Somos culpados de tudo que acontece de ruim’: a perseguição do governo argentino aos imigrantes

Por
Sul 21
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Coordenadoras do movimento Bairrios de Pie lutam por seus direitos como imigrantes. Foto: Sofia Schuck

Sofia Schuck
De Buenos Aires

“Fiquei dois anos longe dos meus filhos pequenos e a saudade foi muito grande, não consigo imaginar a dor que sentem os pais que estão sendo separados tão repentinamente”, foi assim que a coordenadora do movimento Barrios de Pie, Ruth Contreas, exemplificou o drama vivido por famílias de imigrantes em Buenos Aires. Natural da Bolívia, ela largou tudo e foi para a Argentina com apenas 23 anos, em busca de uma cirurgia que poderia salvar a vida de seu marido. Deixou para trás a família, incluindo seus dois filhos pequenos, pois não tinha condições de sustentá-los no novo país. “A decisão foi muito dura”, contou entre lágrimas. “Graças a deus, estou com eles novamente. Agora imagine as famílias que sofrem isso todos os dias… Quantos horrores mais o governo vai cometer?”.

Segundo o movimento de direitos humanos Barrios de Pie, os casos de deportações aumentaram no governo de Mauricio Macri, que tem sido mais arbitrário nessas decisões, utilizando como justificativa a questão da segurança nacional: “Antes, nos viam apenas como a população pobre, agora somos os imigrantes. Não nos veem com bons olhos, somos culpados de tudo que acontece de ruim, logo, somos vistos como delinquentes. Qualquer motivo é suficiente para nos mandarem embora do país”, lamentou Contreas.

Apenas no primeiro trimestre de 2019, já foram deportados 156 estrangeiros da Argentina, segundo o Departamento Nacional de Imigração (DNM). No ano passado, foram 703 casos registrados, o que representa um aumento de 30% em relação ao ano anterior e quase o triplo em relação à 2015, início do governo do presidente Macri. São imigrantes expulsos do país por diferentes razões: prática de crimes, irregularidades ou qualquer violação estabelecida pela Lei de Imigração. Em 2017, Macri assinou um decreto que alterou a lei e tornou mais rígidos os controles de imigração, acelerando o processo de expulsão de um estrangeiro com antecedentes criminais. Com a nova lei, os imigrantes podem ser deportados por qualquer tipo de delito. Antes, isso ocorria apenas em casos de crimes mais graves e com pena superior a três anos de prisão, como o tráfico de pessoas, drogas e armas.

Ruth Contreas e Marisol Choque contam sobre a situação das famílias imigrantes em Buenos Aires. Foto: Sofia Schuck

Nesse sentido, as deportações ligadas às infrações da Lei de Imigração subiram de 75, em 2017, para 236, em 2018. Os números vêm crescendo e  segundo o Barrios de Pie, há pelo menos 1.500 casos de imigrantes em processo de expulsão.

Foi o caso de Juan Rolon, imigrante do Paraguai, que teve que deixar o país depois de 30 anos morando com sua família em Buenos Aires. Já fazem seis meses que tenta retornar e não recebe respostas das autoridades. “Deixei três filhos pequenos, um trabalho estável. Tudo isso por conta de uma injustiça feita pela imigração. Não sou nenhum delinquente, nunca roubei nada, nunca violei nenhuma lei”, afirmou. Segundo ele, o motivo alegado foi uma acusação feita contra ele há  anos atrás e que já havia sido considerada uma denúncia falsa. “Não sei o que fazer, estou ficando louco… meus filhos precisam de mim e choram todos os dias pois sentem muito minha falta”. A irmã de Juan, Graciela, reforça a injustiça no processo e afirma que não deram tempo nem de ele fazer sua defesa: “Ele recebeu a notificação para comparecer ao departamento de imigração, aí pensou que fosse algum problema com seus documentos. A surpresa foi outra: em menos de um dia, o enviaram em um avião de volta para o Paraguai”, contou. A família segue na luta.

Na Argentina, diferentemente do Brasil, a maior parte das favelas é habitada pelos imigrantes, principalmente do Paraguai, Uruguai e Colômbia. “Com a crise, não conseguem trabalho, nem ao menos alimentar sua família. Tornou-se um lugar de extrema pobreza. É comum termos apenas uma peça na casa: cozinha, quarto, sala e banheiro, é tudo junto”, explicou Contreas. No entanto, além das favelas, é muito comum vê-los diariamente pelo Centro de Buenos Aires. Estão por toda parte: nas avenidas principais, como vendedores de rua, ou trabalhando no comércio local.

Dados da organização Bairrios de Pie apontam cerca de 7 mil imigrantes regularizados. Os registros de casos de deportação não estão sendo divulgados publicamente pela Direção Nacional de Imigração (DNI), órgão responsável do Ministério das Relações Exteriores. Este também é um dos motivos de protesto dos imigrantes, que reclamam da falta de informação e aviso prévio sobre os casos, para que possam recorrer à defesa: “Agora, o sistema só permite o acesso para quem paga uma taxa, mas nessa situação de crise e pobreza que vivemos, não temos como pagar”, reforçou Contreas. Na maioria das vezes, a polícia vai na residência do imigrante indicado para entregar a notificação e, em questão de poucos dias, a pessoa é deportada para o seu país de origem.

Protesto contra deportação de imigrantes. Foto: Sofia Schuck

A deportação, a política xenófoba de Macri e a crise são as principais razões das manifestações dos imigrantes. Há poucas semanas, centenas foram às ruas e se concentraram em frente ao prédio da Imigração, onde criticavam a falta de oportunidades de trabalho e as políticas excludentes. Com bandeiras como “Migrar no es delito” e “basta de separar as famílias”, demonstraram revolta às medidas de deportação. De acordo com Accosta Walter, um dos participantes da ação, há ainda pouco conhecimento dos casos, pois a maioria são omitidos: “Deve haver muito mais do que podemos imaginar, é muito triste”. A maioria dos presentes no protesto era de origem peruana, boliviana ou colombiana. Preferiram não se identificar, reflexo do medo e desconfiança.

De acordo com o último relatório do Migration Data Portal, a Argentina tem 2,2 milhões de imigrantes, o que representa 4,9% da população de 44,3 milhões. Destes, mais de 54% são mulheres, totalizando 1,2 milhão. Os três maiores grupos de imigrantes são do Paraguai, Bolívia e Chile. Um pesquisa realizada pela Universidade Católica Argentina (UCA) sobre os processos de integração social e urbana em três favelas (“Los procesos de integración social y urbana en tres villas porteñas”) mostra que os imigrantes estão em maior quantidade nas favelas e não nas áreas da cidade formal, com predominância na Villa 31, a maior ocupação irregular de Buenos Aires. Na Villa 31, os nativos da Bolívia representam 14,3% da população, os do Paraguai 15% e os do Peru 7,1%.

Marisol Choque, imigrante da Bolívia, chegou em Buenos Aires em 2003 na esperança de encontrar trabalho e dar condições melhores de vida para sua família. Decidiu tentar ajudar sua mãe, que sofria com o alcoolismo. “Naquela época, era tudo pago em dólar. Parecia o país da prosperidade”, afirmou ela.

Ela migrou com dois filhos e o marido. Começou a trabalhar numa oficina de costura, até que aconteceu um incêndio no local, provocando a morte de três crianças. Em resposta ao acidente, o governo implicou com os documentos da família e os pôs para fora de casa, os obrigando a ir morar na rua. “Continuei na busca da documentação, mas sempre me diziam que faltava algo. Até que depois de um tempo consegui uma nova casa. Foram tempos muito difíceis”, contou.

A segunda casa de Marisol também foi tomada, só que dessa vez pelas drogas. A família precisou desocupar o local e novamente procurar por outra moradia. Desde 2007, ela reside no Bairro Flores de Buenos Aires e trabalha em uma cooperativa. “A minha situação melhorou, mas comecei a me engajar nos movimentos de luta de imigrantes e entendo que temos muito o que avançar ainda”, diz ela, que hoje também coordena o movimento Bairrios de Pie.

Protesto contra deportação de imigrantes. Foto: Sofia Schuck

Efeitos da crise 

Seja nas favelas ou no centro da cidade, a crise econômica vivida pela Argentina afeta, em níveis diferentes, toda população. Nesse contexto, os imigrantes, em situação de maior vulnerabilidade, sofrem com a falta de dinheiro e emprego. Muitos optam por vender objetos pelas ruas, enquanto outros tentam trabalhos em comércios locais, como lojas e restaurantes. É o caso da venezuelana Diana Lara, garçonete de um restaurante do bairro Recoleta. Ela se mudou para Buenos Aires no ano passado para cursar a universidade e buscar melhores condições de vida. Mesmo afirmando que a crise argentina não chega nem perto da situação em que vivem na Venezuela, ela explica que as dificuldades que enfrenta. “Preciso ajudar minha família que está na Venezuela, pois lá não se encontra comida e nem medicamentos, aí preciso enviar daqui. Só que me deparo todos os dias com preços muito altos”.

Outra imigrante venezuelana, Ruth Santiago, está na Argentina há seis meses e também trabalha num restaurante. Segundo ela, apesar de vir de um país com a maior inflação mundial, também sente os efeitos da crise argentina: “Os nossos custos de aluguel são muito altos e o preço da comida e do transporte aumenta constantemente, ainda assim, acredito que podemos sobreviver com um salário mínimo”, afirma.

Alguns trabalham duro e ainda conseguem estar sempre com um sorriso no rosto, como a haitiana Joanne Toussant, que vende flores em bares e pelas ruas da cidade, encantando a todos com a sua simpatia. Quando lhe perguntam sobre a crise, ela não exita em responder: “Isso no sé, solo sé que me gusta mucho la Argentina”.

 

         


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