Pesquisa tenta descobrir síndrome desconhecida que mata abelhas no Rio Grande do Sul

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Anualmente, síndrome desconhecida mata abelhas no Rio Grande do Sul. Foto: Lucas Kehl/Divulgação

Annie Castro

Em 2014, o Laboratório de Genômica Evolutiva e Parasitismo da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) começou a receber denúncias da morte de diversas abelhas da espécie Melipona quadrifasciata, mais conhecida como mandaçaia. Meliponicultores, que são aqueles que criam abelhas sem ferrão, relatavam que todos os anos, no final do verão, uma síndrome afetava colônias de mandaçaias no Rio Grande do Sul. A doença, que dura cerca de uma semana, faz com que as abelhas apresentem tremores, comecem a rastejar, percam a capacidade de se mover e de voar e depois morram em frente às caixas onde as colmeias são cultivadas.

Apesar de ser uma síndrome que chega a dizimar colônias inteiras, não existem dados oficiais de quantas abelhas já morreram e nem de quando começou. “É comum que nos meliponários quase todas as caixas sofram da síndrome durante o período que ela acontece. Uma colônia bem saudável pode chegar a uns 400 indivíduos, mas depois da síndrome o número baixa para menos da metade da população. Muitos meliponicultores perdem todas as caixas ou apenas poucas conseguem se recuperar”, conta a bióloga Lílian Caesar, que é aluna do Programa de Pós-Graduação em Genética e Biologia Molecular, onde desenvolve desde 2016 uma pesquisa que busca descobrir as causas e do que se trata a síndrome que acomete as mandaçaias.

Embora o laboratório da UFRGS tenha passado a receber relatos somente a partir de 2014, Lílian conta que alguns meliponicultores gaúchos dizem observar sintomas assim há pelo menos dez anos. “Só que não existe nenhum tipo de registro federal ou estadual que acompanhe a sanidade das abelhas aqui”, pontua. Ainda, relatos semelhantes surgem de outros estados do país, como Minas Gerais e Santa Catarina.

De acordo com Lílian, descobrir o que ocasiona a síndrome nas mandaçaias é de extrema importância, uma vez que essa é uma das espécies que só existem no Brasil, além de ser a segunda espécie de abelha nativa mais cultivada no país. A bióloga ainda pontua que as abelhas nativas costumam ser desconhecidas por muitos brasileiros e até mesmo pela academia, que não as utiliza como objeto de estudo científico. “Normalmente, estudam a espécie Apis Mellifera, que é aquela com ferrão, que fica na tampinha do refrigerante, que gosta de coisas doces. Mas essa abelha nem sequer é do Brasil, ela é exótica, uma mistura europeia com africana”.

Segundo ela, como a Apis traz mais dinheiro para o país por meio da agricultura, com a produção de mel e nas polinizações, ela acaba recebendo mais atenção da sociedade. “É uma coisa que movimenta dinheiro e, como há sempre uma preocupação com a questão financeira, as pessoas acabam dando mais valor para ela. Mas aqui no país temos mais de 240 espécies de abelhas nativas. São abelhas que evoluíram aqui no Brasil, evoluíram com esse ecossistema. Então, as coisas que a gente tem aqui estão harmonizadas ao longo da evolução”, diz.

Embora a Apis Mellifera seja a espécie mais cultivada no Brasil, as mandaçaias tem enorme importância para o ecossistema brasileiro, uma vez que possuem um jeito único de polinizar. “Ela poliniza as flores através da vibração. A Apis não faz isso, para polinizar a Apis vai na flor e pega o pólen com a boca ou com as pernas. Mas a mandaçaia pega o pólen, dobra o abdômen e o tórax e vibra na flor”, explica a doutoranda.

Segundo ela, esse método de polinização é importante porque nem todas as flores possuem a mesma forma de armazenar o pólen, o que faz com que, em alguns casos, abelhas da espécie Apis não consigam retirá-lo. “Por exemplo, esse é o caso do tomate, que é uma planta que só esse tipo de abelha que faz vibração consegue polinizar. Além de alimentos, tem diversas outras plantas que são polinizadas pelas Mandaçaias, que a gente não se alimenta, mas que fazem parte de um ecossistema saudável”, diz.

Apesar de criada em diversos meliponários gaúchos, a mandaçaia é uma abelha que corre risco de extinção no Estado. “Não existem mais colmeias de mandaçaias selvagens aqui no Rio Grande do Sul”, afirma Lílian. De acordo com ela, embora a espécie ainda exista em outros estados do país, há o risco de que ela também passe a ser cada vez mais rara nesses locais. “Nada impede que o mesmo aconteça nessas outras áreas em função da perda de habitat. Com desflorestamento, as abelhas não têm mais onde fazer ninhos e também não conseguem fazer ninhos nas cidades”.

Em função disso, Lílian ressalta a importância de estudar a síndrome que está afetando as mandaçaias no Estado. “Essa abelha já não existe mais na natureza, existe somente em  meliponários. Então, a gente precisa solucionar isso para conseguir evitar que a síndrome continue acontecendo. Se a gente conseguir entender o que que ela é, vamos conseguir cuidar das abelhas que estão nos meliponários e, quem sabe futuramente, até reintroduzi-las na natureza”, diz.

A síndrome

No período da síndrome, as mandaçaias são encontrada mortas em frente às suas colônias. Foto: Daniel Iochims/Divulgação

A pesquisa de Lílian, que tem como orientadora a professora do Instituto de Biociência da UFRGS Karen Luisa Haag, está sendo realizada em colaboração com cientistas da UFRGS e da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). De acordo com a doutoranda, o estudo teve diversas frentes de pesquisa. Na primeira, houve uma investigação acerca de quais eram as bactérias intestinais presentes nas abelhas doentes. “Nossas perguntas iniciais eram se havia alguma diferença na composição das bactérias comparando abelhas doentes e saudáveis ou se poderia haver alguma bactéria patogênica nas que estavam doentes”, explica a doutoranda. Entretanto, a pesquisa não encontrou a presença de nenhuma bactéria patogênica nas abelhas analisadas.

A medida em que a doutoranda passou a visitar os meliponários do Estado durante o período da síndrome, ela pode observar de perto os sintomas que as abelhas apresentavam antes de morrerem. “Isso foi essencial porque os meliponicultores nos falavam que as abelhas ficavam rastejando, não conseguiam voar e depois morriam na frente das colônias, mas a gente nunca tinha visto isso exatamente”, conta Lílian, explicando que, ao ver os sintomas, a equipe do estudo percebeu que eles eram parecidos com aqueles que são observados na Apis mellifera quando ela é infectada por algum vírus.

A partir disso, a outra etapa do estudo buscou analisar quais eram os vírus que existiam nas mandaçaias doentes. “O que fez essa pesquisa ter um impacto maior foi o fato de a gente usar uma abordagem um pouco diferente: resolvemos fazer um viroma nas abelhas e, com nisso, pegamos todos os vírus que estavam nelas”, explica. O estudo encontrou, então, diversos vírus desconhecidos no viroma das mandaçaias saudáveis e doentes. “Se a gente estivesse apenas procurado pelos vírus que deixam as Apis doentes, não íamos ter visto nada e descartado a hipótese de vírus”, diz Lílian.

Durante os estudos do viroma das abelhas a pesquisa também descobriu que os insetos que estavam doentes apresentavam um número maior de vírus do que os saudáveis. Ainda, o estudo percebeu que existiam mais vírus desconhecidos em um grupo que vivia em um mesmo meliponário. Com isso, a pesquisa passou a associar a síndrome a uma baixa no sistema imune das abelhas. “O fato de encontrarmos vírus tão abundantes nas abelhas doentes de um único meliponário, e não tanto nas dos outros, levantou a hipótese de que tem uma baixa no sistema imune delas. Como aqueles vírus já ocorria ali, eles se aproveitaram que as colônias ficaram fracas e se replicaram. Nos outros meliponários isso não aconteceu porque provavelmente não tem aqueles vírus lá”, diz.

De acordo com ela, com as descobertas foi possível entender que a síndrome não é causada pelos vírus presentes nas abelhas doentes, mas que os sintomas provavelmente são acentuados por eles. “A presença maior dos vírus ocorreu justamente no meliponário que os sintomas eram mais acentuados. Em outro meliponário pode ocorrer uma baixa no sistema imune e as abelhas acabarem coletando pólen de alguma planta que tenha agrotóxicos, ou de uma planta tóxica, isso também vai prejudicar o sistema imune”, afirma. Segundo a doutoranda, a síndrome que afeta as mandaçaias funciona como outras doenças virais. “Nesses casos, o que causa a morte do indivíduo é o fato de esse vírus levar a uma baixa no sistema imune. Ela não morre pela doença em si, mas sim pelas complicações posteriores”.

Atualmente, o projeto está realizando testes para confirmar a hipótese acerca da baixa da imunidade e tentar descobrir a origem da síndrome e porque ela acontece sazonalmente. “Alguns dados que a gente já tem estão confirmando isso, que nas abelhas doentes há uma baixa na expressão de alguns genes relacionados às respostas a patógenos e à intoxicação, por exemplo”, diz Lílian. Os testes também pretendem descobrir o que está baixando o sistema imune das abelhas. “A gente enviou umas amostras para análise de resíduos para ver se tem algo a ver com agrotóxicos”, conta.


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