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20 de julho de 2019
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12:35

‘Ocupamos um lugar que deveria ser do Estado’: advogadas criam consultoria sobre feminismo e direitos humanos

Por
Sul 21
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As advogadas Luciane Toss e Ariane Leitão criaram a consultoria e assessoria ‘Ó Mulheres’. Foto: Luiza Castro/Sul21

Annie Castro 

Nos anos 1780, a revolucionária francesa Olympe de Gouges criou um panfleto sobre os direitos das mulheres e criticando o patriarcado presente na sociedade da época e, principalmente, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, símbolo da Revolução Francesa. O documento era distribuído nas ruas francesas e continha a frase “Ó mulheres, quando deixareis vós de ser cegas?”. Séculos mais tarde, a frase da revolucionária inspirou o nome da consultoria e assessoria criada por duas advogadas de Porto Alegre, que buscam falar sobre os direitos das mulheres, feminismos, gênero e direitos humanos para coletivos, empresas e municípios.

Intitulada ‘Ó Mulheres’, a consultoria foi criada por Ariane Leitão e Luciane Toss, que durante anos atuaram em defesa dos direitos humanos das mulheres e pela igualdade de gênero. De acordo com elas, o projeto busca difundir “o conhecimento sobre os direitos humanos das mulheres, com ênfase para o estudo, aplicação e qualificação de legislações e políticas públicas para a população feminina, salientando a importância da compreensão do feminismo neste contexto, como elemento fundante para a emancipação e autonomia das mulheres”.

Segundo Ariane, que foi Secretária Estadual de Políticas Para Mulheres do Rio Grande do Sul, a consultoria surgiu por meio da percepção das advogadas de que queriam “mais do que apenas advogar para mulheres”. “Queríamos tratar de uma perspectiva mais ampla essa possibilidade de consultoria e assessoria para debater feminismo, gênero, direitos humanos e aproximar as mulheres, seja na área do direito, seja em outras áreas”, explica.

De acordo com ela, o projeto busca informar profissionais como advogadas, psicólogas, assistentes sociais, que trabalham atendendo outras mulheres, a respeito das legislações específicas e também sobre políticas públicas, a fim de qualificar o trabalho dessas profissionais. “O objetivo final é que as mulheres mais vulneráveis possam estar sendo atingidas pelo nosso trabalho”, diz.

“Grande parte das questões das mulheres não chegam a elas na linguagem e nos discursos que deveriam chegar”, diz Luciane. Foto: Luiza Castro/Sul21

Segundo Luciane, que também é vice-presidente da Associação Gaúcha de Advogados Trabalhistas – AGETRA, o projeto busca desenvolver em empresas e coletivos as questões de “inclusão de mulheres, sobre paridades e a promoção de mulheres para os cargos de chefia”. “Isso é uma demanda que existe na sociedade e ainda são poucos os grupos de mulheres que estão comprometidas com essas questões, que trabalham com isso de uma forma mais legítima e mais identificada”, afirma.

Luciana explica que o projeto possui duas pontes de atuação: uma privada, com serviços pagos, e outra sem fins lucrativos, com caráter assistencial. De acordo com Luciane, a frente gratuita ofertará atendimento pro bono, ou seja, a prestação de serviços jurídicos gratuitos para pessoas de baixa renda. “Se existir alguma mulher que, por exemplo, sofreu violência e vai precisar de atendimento pro bono, eu vou ter alguém nessa rede que será criada pela Consultoria para atender essa mulher. Ela não vai precisar ir na defensoria pública, não vai ter que ficar na fila, não vai ter que dormir com aquele homem de novo naquela noite”, explica Luciane, que afirma que a ideia do projeto é conseguir “perfectibilizar uma certa eficácia para atender as mulheres”, uma vez que a demanda de mulheres que precisam acessar um atendimento específico ainda é muito grande na cidade.

Os serviços oferecidos pelo ‘Ó Mulheres’ variam entre consultoria e assessoria sobre temas que perpassam a vida de mulheres, a geração de formação profissional, social e política por meio de palestras, cursos e oficinas; o ensino sobre como se dá o acesso às políticas públicas específicas para mulheres e demais atividades que envolvam as questões de gênero. A consultoria também tem como atividade a produção de conteúdo nas redes sociais, fazendo publicações sobre temas voltados para mulheres, como aluguel social, alienação parental, feminicídio, lei Maria da Penha e até mesmo indicações culturais. “A gente tem uma avaliação de que grande parte das questões das mulheres não chegam a elas na linguagem e nos discursos que deveriam chegar. Então, a gente começou a divulgar esse conhecimento nas redes sociais, no Facebook e Instagram”, explica Luciane.

O projeto pretende levantar as informações e criar uma rede de mulheres profissionais de diversas áreas que atendem mulheres. “É muito poderoso o encontro de mulheres. É mais ou menos isso que nós queremos: reunir mulheres que têm essa proposta de atender mulheres, mas também as que não têm acesso a esses atendimentos”, diz Luciane.

O projeto criado pelas advogadas possui duas pontes de atuação: uma paga e uma gratuita, com caráter assistencial. Foto: Luiza Castro/Sul21

Ainda, de acordo com as advogadas, o debate racial também é um tema presente dentro da consultoria. “Se a gente quer enfrentar o machismo e o patriarcado, não tem como dissociar da luta contra o racismo. São elementos estruturantes da nossa sociedade e não tem como as lutas andarem separadas. Os nossos programas de curso e formação, necessariamente, passam pelas questões das mulheres negras, dos direitos das mulheres negras, do enfrentamento ao racismo, do feminismo negro”, explica Ariane. A advogada Luciane complementa que para poder dialogar sobre esses temas, seja em cursos ou na consultoria, elas irão convidar mulheres que tenham o lugar de fala sobre esses assuntos para ministrar as palestras ou oficinas. “Para poder trabalhar os discursos relacionados a raça e a negritude tu tem que ter esses grupos, porque o lugar é nosso. A gente tem essa perspectiva de fazer a consultoria, mas isso não significa que quem vai fazer as formações todas somos nós”, diz.

“O Ó mulheres é para reafirmar esses compromissos em defesa dos direitos humanos”, diz Ariane. Foto: Luiza Castro/Sul21

Uma vez que a consultoria, além das frentes voltadas para o indivíduo e o empresarial, também se propõe a atender municípios, Ariane acredita que o projeto acaba desempenhando um trabalho que antes era feito pelos governos, principalmente no Rio Grande do Sul. “Quando nós tínhamos a Secretaria de Política Para Mulheres, ela servia como um espaço catalisador para os municípios nessa questão de consultoria, explicando como eles poderiam acessar recursos de políticas para mulheres do Governo Federal. Através da consultoria acabamos ocupando hoje um lugar que deveria ser do Estado”, diz.

Em um contexto de retrocessos de diversas políticas sociais e de menosprezo aos direitos humanos, Ariane explica que ‘Ó Mulheres’ busca realizar um trabalho de “manutenção do conhecimento de políticas públicas”. De acordo com ela, atualmente há um “momento político de retrocessos, onde os militantes a favor dos direitos humanos “se movimentam para manter minimamente não só as políticas, porque elas estão se esvaindo, mas também manter uma perspectiva civilizatória”. “O Ó mulheres é para reafirmar esses compromissos em defesa dos direitos humanos, da liberdade das mulheres e, sobretudo, de que o feminismo é um elemento importante para estar sendo colocado nesses debates, não só em políticas públicas, mas também no direito e na iniciativa privada”, diz.

Curso Feminismos

Entre os dias 6 de agosto e 5 de novembro acontece na Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do Estado do Rio Grande do Sul (FEMARGS) o curso ‘Feminismo’, organizado pela FEMARGS em parceria com a Associação Gaúcha de Advogadas e Advogados Trabalhistas (AGETRA) e com o apoio da Ó Mulheres. O curso, que durará cerca de dois meses e meio, tendo aulas semanais, irá abordar a produção teóricas dos diversos feminismos, a presença e ativismo de mulheres dentro dos espaços públicos e também a criação de redes de mulheres ao redor do mundo. “É um curso de formação feminista que vai ser realizado em um lugar que não discute sequer o direitos das mulheres”, afirma Luciane.

As organizadoras explicam que, embora o curso seja pago, também existe a proposta de inscrição solidária, ou seja, ao pagar a taxa para se inscrever no curso, alguém pode custear a inscrição de uma pessoa que não poderia pagar o valor para participar dele. “Tem por exemplo um escritório de advocacia lá de Novo Hamburgo que pagou cinco inscrições para a Universidade Popular dos Movimentos Sociais. São cinco mulheres que estão sendo agraciadas pela inscrição que vão fazer o curso por benefício da inscrição solidária”, conta Luciane. Ela afirma que quem pagar uma inscrição solidária pode deixar definido ou não quem irá ocupar a vaga. “Isso é muito legal porque consegue levar pro curso alguém que não teria acesso a ele. A ideia é que a gente possa mesclar advogadas, juristas, militantes e da periferia. Mulheres de todas as origens e lugares para que a gente possa fazer uma formação feminista mais plural”, afirma Luciane. As inscrições para o curso ocorrem até a primeira aula, ou seja, até o dia 6.

Além das aulas, o evento também contará com atividades paralelas e gratuitas. A próxima acontecerá no dia 5 de agosto e será o lançamento do livro ‘Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs’, que foi organizado pelo Conselho Federal de Psicologia e que aborda a experiência de pessoas LGBTIs que passaram pelo processo de ‘cura gay’. De acordo com as organizadoras, à medida que novas atividades paralelas forem marcadas elas serão divulgadas nas redes sociais da Ó Mulheres.


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