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20 de julho de 2019
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18:04

Crime oculto: O massacre que tentaram apagar da história da construção de Brasília

Por
Luís Gomes
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Havia resistência política à ideia de mudar a capital, e um massacre, se viesse à tona, traria graves prejuízos aos planos de JK | Foto: Mario Fontenelle / Acervo Público do DF

Pedro Rafael Vilela
Do Brasil de Fato

A revolta de um grupo de operários que atuou na construção de Brasília, que acabou sendo vingada com um verdadeiro banho de sangue, é a expressão de como poderosos interesses atuam para reescrever a história ou silenciá-la.

O chamado massacre da construtora Pacheco Fernandes, ocorrido em 8 de fevereiro de 1959, em pleno carnaval, pode ser considerada uma das maiores tragédias brasilienses. Mas a história oficial buscou desacreditar sua gravidade, e até mesmo a sua existência. Até hoje não é possível afirmar com exatidão quantas pessoas morreram naquele dia.

Meses antes da sua inauguração, Brasília chegou a abrigar mais de 40 mil operários, trabalhando em jornadas extenuantes de trabalho, que não raro ultrapassada as 18 horas, em turnos ininterruptos. Muitos desses trabalhadores trouxeram familiares, que se aboletaram em barracos precários ao redor dos principais monumentos da cidade.

Alguns anos mais tarde, uma operação de remoção retiraria as mais de 80 mil famílias desses locais, realocando-as em zonas distantes do centro da capital, sem qualquer amparo do poder público.

A área que hoje abriga uma das principais metrópoles do país era um imenso canteiro de obras no final da década de 1950 | Foto: Mário Fontenelle/Arquivo Público do DF

Chacina

A história do massacre começa com uma revolta no refeitório da construtora Pacheco Fernandes, local onde hoje existe a Vila Planalto, bairro que fica a poucos quilômetros da Esplanada dos Ministérios e da Praça dos Três Poderes.

As condições oferecidas pelas construtoras aos seus operários eram muito precárias, segundo a professora Nair Bicalho, da Universidade de Brasília (UnB), autora do livro “Construtores de Brasília”, que narra a trajetória desses trabalhadores.

“Os galpões possuíam dez a quinze quartos com beliches de dois a três andares. Os sanitários eram um buraco cavado no chão e protegidos com uma porta de lona. O acampamento também tinha problema de falta de água. As camas tinham colchões de capim e predominava enorme falta de higiene: pulgas, percevejos e piolhos se espalhavam pelo ambiente, sendo necessário diversas vezes queimar os colchões. As cantinas tinham longas filas devido ao grande número de operários dos alojamentos, o que deixava trabalhadores famintos esperar muito tempo para o café, almoço ou jantar. Esta situação de desconforto e privação resultava inúmeras vezes em quebras das cantinas por motivo da comida crua, estragada ou com pequenos animais mortos dentro dela”, detalha.

A indignação com a comida servida no acampamento foi o estopim para o massacre. Dois operários foram reclamar do que seria uma refeição estragada, o que gerou uma confusão.

Chamada para reinstalar a ordem no acampamento, a Guarda Especial de Brasília (GEB) – criada para cuidar da segurança pública da capital em construção – enviou dois soldados, que foram cercados pelos operários e recuaram. Horas mais tarde, quando boa parte dos trabalhadores estava dormindo nos alojamentos, a GEB retorna com quase 30 homens e executa vários deles. O inquérito oficial sobre o incidente confirma a versão de que os soldados retornaram ao acampamento e atiraram, mas a apuração só teria oficializado uma morte e 48 feridos.

“O que consta nos depoimentos que eu recolhi é que a polícia atirou nos operários enquanto eles dormiam. Obtive depoimentos sobre dezenas de operários atingidos. Um total 120 malas nunca foram buscadas no alojamento”, relata Nair Bicalho, que entrevistou mais de 30 pessoas sobre o caso, inclusive um coronel responsável pela operação policial. “Eu não tenho a menor a dúvida sobre massacre na empresa Pacheco Fernandes. Eu interpretei assim a partir dos documentos e algumas entrevistas”, acrescenta.

Trabalhadores fazem fila para se cadastrar na construção de Brasília | Foto: Arquivo Público do DF

Silenciamento

No filme “Conterrâneos Velhos de Guerra”, do cineasta Vladimir Carvalho, o massacre é contado em detalhes por quem testemunhou o episódio.

Dezenas de corpos de operários mortos teriam sido recolhidos com caminhão basculante e depositados em lugar ignorado. A repercussão na imprensa foi mínima. Os dois únicos veículos a noticiarem o massacre foram os jornais O Binômio, de Belo Horizonte, que chegou a mandar um repórter, e o diário O Popular, de Goiânia.

Ao longo dos anos acabou prevalecendo o discurso oficial que nega a existência da chacina. Até mesmo Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, respectivamente o arquiteto e o urbanista que desenharam a cidade, disseram desconhecer totalmente esse acontecimento.

“Foi uma tentativa de apagamento. As mídias se curvaram aos poderosos do momento”, o cineasta. “Como a capital estava sendo construída para ser inaugurada, naquela política de crescer 50 anos em cinco – do Juscelino Kubitschek –, então estavam todos muito empenhados que a capital não ficasse manchada com esse acontecimento histórico”, afirma Nair Bicalho.

Parte da classe política resistia à ideia de mudar a capital do país, e um massacre como esse, se viesse à tona, traria graves prejuízos políticos aos planos de JK.

Retirantes, que ficaram conhecidos na história como candangos, chegam para trabalhar na construção da nova capital, em janeiro de 1959 | Foto: Arquivo Público do DF

O papel da Guarda também é emblemático. Essa força militar era formada, em boa medida, por jagunços oriundos de outras regiões do país, sem treinamento, e cumpriu um papel de forte repressão durante a construção de Brasília.

“[A GEB] era recrutada pelos piores elementos que vieram a Brasília, que só conheciam a linguagem da violência. Havia uma impunidade, um deserto, uma coisa que não tinha polícia constituída, não tinha Justiça constituída. Era plausível que um conflito como esse terminasse em brutalidade”, afirma Vladimir Carvalho.

Segundo ele, a impunidade pode ser vista como um fator cíclico, recorrente pano de fundo na história do Brasil. “O distanciamento, o desprezo e o descaso que orientam essa relação. Dizimaram os índios, escravizaram os negros e a fusão de tudo isso está aí”, analisa Carvalho.

Outro aspecto importante sobre o massacre, afirma Nair Bicalho, é a construção da memória, que exclui o papel das classes populares como atores políticos. “Qual é o papel do povo brasileiro na história brasileira? Onde ele fica? Os estudos vão para os vencedores, a história oficial. Tanto que o Juscelino tem vários livros, mas você não vai achar isso nos livros dele”, assevera.

Para ela, o “Massacre da Pacheco Fernandes” é um desses casos em que se aplicou a lógica de manipulação da história. “É todo um pacto de silêncio que as nossas elites sempre tiveram, em relação a eventos, acontecimentos, violências cometidas contra as classes populares. É uma tradição brasileira de não reconhecer o lugar da memória nacional que exige os esclarecimentos de todos os fatos históricos, bons ou ruins”, afirma.


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