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29 de junho de 2019
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16:26

Revolta de Stonewall faz 50 anos: marco de que ‘as ruas são local de disputa e de luta’

Por
Annie Castro
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A Rebelião de Stonewall completa 50 anos neste 28 de junho. Foto: Luiza Castro/Sul21
A Rebelião de Stonewall completa 50 anos neste 28 de junho. Foto: Luiza Castro/Sul21

“Origem da liberação moderna dos direitos de lésbicas e gays ”. A frase, originalmente escrita em inglês, está gravada em uma placa na frente da casa onde existia o bar Stonewall Inn no bairro Greenwich Village, em Nova York. Ali, em 28 de junho de 1969,  gays, lésbicas, bissexuais, transexuais, travestis e drag queens revoltaram-se contra a forma truculenta e abusiva com que eram tratados pela polícia nova-iorquina, desencadeando uma série de embates que duraram dias e tornaram os protestos, conhecidos como Revolta de Stonewall, o mais importante acontecimento para a liberação do movimento homossexual e da luta pelos direitos da população LGBT+ nos Estados Unidos e em outros países do mundo.

Por volta dos anos 1950 e 1960, Nova York era uma cidade cheia de restrições que impactavam a vida da comunidade LGBT. “Era proibido existirem bares e boates LGBTs, as pessoas também eram proibidas de saírem vestidas com o gênero diferente do biológico”, explica o ativista Célio Golin, coordenador do Nuances – Grupo Pela Livre Expressão Sexual. Até 1962, relações entre pessoas do mesmo sexo eram consideradas crime, com punição em regime fechado ou até mesmo pena de morte, em todos os estados americanos. No mesmo ano, o estado de Illinois modificou o Código Penal, descriminalizando a homossexualidade.

Em 1968, uma vez que a homossexualidade ainda era criminalizada em Nova York, o Stonewall Inn era um bar gay que funcionava clandestinamente. Tendo como donos mafiosos, o local constantemente era alvo de ações da polícia, que cobrava propina dos proprietários. Na época, era comum que policiais fizessem batidas nos bares e boates clandestinos frequentados pela população LGBT+ e cobrassem propinas, conforme explica Golin: “Existiam esses espaços, mas eram tudo clandestino, e, como era clandestino, os donos achacavam os clientes, ofereciam um péssimo serviço. A polícia se aproveitava dessa situação da clandestinidade, extorquia não só os donos dos bares e boates, mas também os clientes”.

Ainda assim, o Stonewall era o bar gay mais frequentado pela comunidade LGBT+, que estava acostumada a sofrer abordagens policiais, geralmente violentas. Entretanto, na madrugada do dia 28, quando a polícia realizava uma batida no bar, agredindo e prendendo funcionários e clientes, alguns frequentadores do Stonewall se recusaram a se identificar. Enquanto a batida truculenta acontecia dentro do bar, do lado de fora clientes e pessoas que passavam pelo local começaram a formar uma multidão, que logo passou a atacar os policiais com moedas, pedras, paralelepípedos e garrafas. Até mesmo um jornal com fogo foi atirado para dentro do Stonewall, criando um princípio de incêndio, que foi contido pela polícia.

Atualmente, a casa onde era o Stonewall Inn funciona como memorial e monumento nacional aos direitos da população LGBT+. Foto: Luiza Castro/Sul21

O embate entre clientes e policiais no Stonewall na madrugada do dia 28 deu início a uma série de protestos que aconteceriam por seis dias consecutivos. No dia 29 o bar abriu novamente e uma multidão foi até o local para protestar pelos direitos da comunidade LGBT+. Ao longo dos dias que se seguiram, os nova-iorquinos que integravam ou apoiavam o movimento protestaram pacificamente, com danças, cantos, mãos dadas e beijos.

De acordo com Golin, as manifestações aconteceram porque a população LGBT+ de Nova York percebeu que precisava ir para as ruas lutar por seus direitos. “Era um período de muita clandestinidade, então a Revolta de Stonewall aconteceu porque eles não aceitaram mais aquele tipo de achaque. Os e as LGBTs se obrigaram a pensar que não dava mais pra ficar no armário, sendo subjugado”, afirma.

No último dia de protestos, a polícia conseguiu conter os manifestantes, a mobilização, no entanto, trouxe visibilidade para essa população que era marginalizada, além de se tornar símbolo da luta pelos direitos LGBT+. Segundo Golin, a partir daquele momento houve uma mudança, que fez com que gays, lésbicas, bissexuais, travestis e trans “saíssem da perspectiva de ficar submisso e fossem para as ruas falar que não aceitavam mais viver daquela forma”. Para ele, Stonewall possibilitou que “as pessoas vissem que as ruas são local de disputa e de luta”.

Após a Rebelião de Stonewall começaram a surgir as primeiras organizações voltadas para a luta pelo direito da população LGBT+ nos Estados Unidos, sendo uma delas a Frente da Liberação Gay. Entretanto, somente em 1980 a relação entre pessoas do mesmo sexo deixou de ser crime em Nova York. No mesmo ano, a homossexualidade foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).

Para Golin, Stonewall gerou uma consequência mundial para a pauta LGBT+, que também passou a ganhar força em outras lutas. “Essa mudança também estava atrelada a outras questões, como maio de 1968, os movimentos feministas, o movimento negro, a contracultura; drogas, sexo, liberação do corpo, mini-saia, as mulheres tendo direito ao anticoncepcional. Tudo isso fez parte de um um movimento mundial onde a pauta LGBT também foi muito importante”, diz Golin.

Em 2015, o Stonewall foi considerado monumento histórico da cidade pela Prefeitura de Nova York. Já em 2016, no governo do presidente  Barack Obama, a casa onde funcionava o bar foi transformada em monumento nacional aos direitos da população LGBT+.

Uma vez que o movimento da liberação da população LGBT+ foi impulsionada pela Revolta de Stonewall, o Dia do Orgulho LGBT+ é comemorado mundialmente na data em que tiveram início os protestos em Nova York, em 28 de junho. Também é em função de Stonewall que a maioria das paradas do orgulho LGBT+ são realizadas no mês de junho.

De acordo com Golin, assim como Stonewall, as paradas possuem um enorme papel na luta pela desestigmatização e pelos direitos de homossexuais, bissexuais e trans. Ele afirma que, no Brasil, o “boom da visibilidade e do empoderamento na sociedade LGBT” se deu com o surgimento das paradas. “Elas ocasionaram uma outra mudança de paradigma, como foi a Revolta de Stonewall. O tema ocupou todos os espaços possíveis da sociedade, tomando uma dimensão muito grande. Já não tinha mais como não ver que existiam essas pessoas, já que até então a gente vivia aquele impasse de uma dupla cidadania, em clandestinidade”, diz. As paradas de Porto Alegre e de São Paulo, criadas em 1997, foram as primeiras no país.

O movimento pelos direitos de pessoas LGBT+ no Brasil teve início em 1978, com o surgimento do jornal Lampião da Esquina e do Somos – Grupo de Afirmação Homossexual, criado em São Paulo e considerado o primeiro grupo em defesa da população LGBT – o grupo atuou por cerca de cinco anos, até dissolver-se por problemas internos. Entre os anos 1980 e 1990, com o crescimento dos casos de AIDS no país, os LGBTs ganharam visibilidade, conforme pontua Golin: “Ter HIV era um atestado de ser gay. Isso deu uma visibilidade pros LGBTs”.

De acordo com o ativista, a estigmatização que se criou em torno dessa população em função da AIDS fez com que “houvesse uma reação muito grande da sociedade em termos de organização”. Foi nessa época que o Nuances, criado em 1991, e outras organizações sociais pautadas pela causa começaram a surgir. “Isso deu um certo escopo de disputa política, ainda muito limitado, mas começou a surgir o tema nas assembleias, nas câmaras de vereadores. Saímos daquela ideia de deboche, de doença, daquela referência negativa. Adquiriu uma referência de cidadania, de direito, e foi um mérito do movimento LGBT que rompeu com isso”, afirma Golin.

As paradas de Porto Alegre e de São Paulo, criadas em 1997, foram as primeiras no país. Foto: Guilherme Santos/Sul21

No Brasil, existem atualmente cerca de 20 milhões de gays, 12 milhões de lésbicas e 1 milhão de transexuais, de acordo com dados do relatório Mortes Violentas da População LGBT no Brasil, publicado em fevereiro pelo Grupo Gay da Bahia (GGB).

No último domingo (23), aconteceu em São Paulo a 23º edição da Parada do Orgulho LGBT da cidade, que reuniu centenas de milhares de pessoas na Avenida Paulista. O evento, que é considerado a maior parada do mundo, teve como tema desta edição os 50 anos da Revolta de Stonewall e misturou, durante sete horas de duração, shows e atrações artísticas com discursos de ativistas e políticos, além de falas contrárias ao Governo de Jair Bolsonaro (PSL), que profere discursos abertamente LGBTfóbicos e de ódio às minorias.

De acordo com Golin, só no Rio Grande do Sul acontecem atualmente cerca de 20 paradas do orgulho LGBT. Em Porto Alegre existem duas paradas anuais, a Parada Livre e a Parada de Luta LGBT+, geralmente realizadas em novembro e junho, respectivamente.

De acordo com Célio Golin, as paradas do orgulho LGBT+ ocasionaram uma outra mudança de paradigma, assim como a Revolta de Stonewall. Foto: Luiza Castro/Sul21

Neste ano, a Parada de Luta LGBT+, que é realizada pelo Grupo Desobedeça LGBT e pelo Projeto Conexão Diversidade da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), também tem como tema os 50 anos de Stonewall. Diferente de outras edições, em 2019 a programação dura três dias, de 28 a 30 de junho, com oficinas, saraus, apresentações de teatro, shows, festas em casas noturnas e outras atividades.

O encerramento da programação acontece no domingo (30), com a Parada de Luta, que será realizada das 10h às 15h no Parque da Redenção, onde acontecerão shows de Roberto Seitenfus, Gloria Crystal e de Angel Lisboa. Após às 15h, acontecerá uma caminhada em direção à Orla do Guaíba, onde o evento continuará com apresentações artísticas até as 23h. O trajeto entre os dois pontos contará com trios elétricos e com o show da cantora Valesca Popozuda.

Além da Parada de Luta, Porto Alegre também está lembrando a revolta do dia 28 com a exposição ‘De Stonewall ao Nuances: 50 anos de Ação’, realizada pelo Nuances, em parceria com o Laboratório de Criação Museográfica (CRIAMUS), do curso de Museologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Na mostra, que acontece até 14 de julho, no Memorial do Rio Grande do Sul, estão presentes fotografias dos dias de protestos em Stonewall, assim como documentos e boletins médicos da época. Até mesmo um mini bar foi criado para retratar Stonewall. A exposição também celebra os 41 anos do movimento LGBT+ no Brasil e os 20 anos de atuação do Nuances.

Foto: Luiza Castro/Sul21
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