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2 de junho de 2019
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12:32

Da comida in natura para a comida de caixinha: os efeitos de um sistema alimentar insustentável

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Sul 21
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Hoje em dia, apenas um quinto da população brasileira come majoritariamente (85%) comida in natura ou minimamente processada. (Foto: Alessandra Nahra)

Por Alessandra Nahra*

Antes uma pequena vila de pescadores descendentes de portugueses, a Guarda do Embaú, localizada a cerca de 40 kms ao sul de Florianópolis, foi “descoberta” pelos surfistas a partir dos anos 80 e hoje recebe milhares de turistas todo o verão. Dona Candinha, nascida lá há quase um século, toma o café da manhã: pão com margarina, bolacha, café com leite. Dona Candinha, o que a senhora comia no café da manhã antes do supermercado chegar? “Ah minha filha, a gente comia batata-doce, aipim, amendoim, arroz pilado, banana, ovo das galinhas que eram criadas aqui no quintal…”.

Hoje em dia, apenas um quinto da população brasileira come majoritariamente (85%) comida in natura ou minimamente processada, segundo um dado da POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares. Apesar de parecer pouco, não é ruim, se comparado a alguns países mais desenvolvidos, cuja alimentação da maior parte da população é totalmente baseada em “comida de caixinha”. A comida in natura é abundante e acessível no Brasil, o país das feiras-livres e restaurantes à quilo. Comida de verdade ainda pode ser encontrada mais barata, em certos lugares, do que alguns produtos ultraprocessados — mas eles estão ganhando cada vez mais espaço nas prateleiras de supermercados e vendinhas de bairros pelo Brasil todo. Quem viu o documentário Muito além do peso deve se lembrar da cena que mostra o “Supermercado Flutuante de Produtos das Nestlé” vendendo ultraprocessados para uma comunidade ribeirinha no Pará (aos 1:06 do documentário).

Como chegamos a isso? O que levou dona Candinha — e todos nós — a mudar a alimentação?

Começa com o processo de urbanização, passa pela industrialização, e deságua no acesso aos objetos e símbolos da contemporaneidade. Assim como aconteceu com dona Candinha e sua família, nas últimas décadas do século 20 fomos deixando de comer comida in natura, grãos, frutas e vegetais, e começamos a pegar pesado no açúcar, gordura, carne, derivados do leite. E a optar pela praticidade dos processados. Contamos com as facilidades da vida moderna para encarar longas jornadas de trabalho e horas no trânsito — e ainda ter que pensar no cuidado da casa e nas refeições da família — e nos vemos dependentes delas. Pizza congelada, nuggets, macarrão instantâneo, bolacha recheada, iogurtes cheios de açúcar e corantes, que “valem por um bifinho”. A gente terceirizou nossa alimentação. Não apenas a produção, distribuição e preparação, mas também a escolha e a decisão. Nos alienamos desse processo tão importante que é o se alimentar.

Hoje, o modelo agroalimentar foi sequestrado pelos interesses de um punhado de corporações do agronegócio e grandes varejistas, que buscam apenas ganhar dinheiro com algo tão essencial como é a comida. Comer de forma consciente envolve perguntar-se de onde vem o que consumimos, como foi elaborado, em que condições, e por que pagamos por isso um determinado preço. Significa tomarmos o controle de nossos hábitos alimentares, e não simplesmente delegar. (Esther Viva Esteves, O Negócio da Comida)

Nossa comida, a que a compramos no “super”, é produzida por um sistema agroalimentar baseado em cadeias de suprimentos globais que distribui os mesmos produtos, padronizados e encaixotados, praticamente no mundo inteiro, e envolve processos insustentáveis do início ao fim. Em sua base está a agricultura de larga escala que ocupa grandes extensões de terra na Amazônia e no Cerrado e faz uso intensivo de sementes geneticamente modificadas e agrotóxicos, dos quais o Brasil é o campeão mundial em consumo, segundo o Dossiê Abrasco, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva.

Guia Alimentar recomenda que a base da alimentação seja composta por alimentos in natura ou minimamente processados. (Foto: Alessandra Nahra)

Estes sistemas alimentares, na descrição Guia Alimentar para a População Brasileira 2014 (pg. 19), “operam baseados em monoculturas que fornecem matérias-primas para a produção de alimentos ultraprocessados ou para rações usadas na criação intensiva de animais. Dependem de grandes extensões de terra, do uso intenso de mecanização, do alto consumo de água e de combustíveis, do emprego de fertilizantes químicos, sementes transgênicas, agrotóxicos e antibióticos e, ainda, do transporte por longas distâncias. Completam esses sistemas alimentares grandes redes de distribuição com forte poder de negociação de preços em relação a fornecedores e a consumidores finais”.

A comida produzida por essa indústria não merece nem ser chamada de alimento. É o reino dos ultraprocessados: a gente olha o rótulo e não reconhece os ingredientes. Estamos sendo alimentados por grandes corporações multinacionais que não têm a saúde humana como prioridade e que mantêm a população refém do sabor artificial que vicia através de aditivos como glutamato monossódico ou a inebriante combinação de açúcar com gordura (levanta a mão quem nunca comeu um pacote inteiro de bolacha recheada de uma sentada só). No Brasil, a obesidade cresceu 60% nos últimos 10 anos, segundo pesquisa do Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico de 2016. O Guia Alimentar para a População Brasileira (assim como diversos estudos) aponta que a maior disponibilidade de produtos alimentares ultraprocessados é associada a uma maior prevalência de excesso de peso e obesidade em todas as faixas etárias.

O Guia Alimentar para a População Brasileira

Publicação do Ministério da Saúde, o Guia Alimentar para a População Brasileira recomenda que a base da alimentação seja composta por alimentos in natura ou minimamente processados; que se limite o consumo de alimentos processados, e que se evite completamente os ultraprocessados. “O Guia promove a valorização da cultura alimentar local”, diz Elizabetta Recine, docente e coordenadora do Observatório de Políticas de Segurança Alimentar e Nutrição da Universidade de Brasília e que ocupava o posto de presidente do Consea até a extinção do conselho, em janeiro.

Considerando a dimensão nutricional, o Guia Alimentar para a População Brasileira, do Ministério da Saúde, desenvolveu suas diretrizes para a promoção da alimentação adequada e saudável a partir de princípios que assumem que a alimentação é muito mais do que a ingestão de nutrientes, que a alimentação adequada e saudável depende de sistemas alimentares sustentáveis, que a ecologia de saberes é fundamental para compreender e promover a alimentação saudável e que é necessário ampliar a autonomia dos sujeitos e comunidades para suas escolhas alimentares. (Elizabetta Recine em artigo no portal Embrapa)

O Guia fala sobre ser crítico quanto a informações sobre alimentação veiculadas em propagandas comerciais. E da importância de buscar alimentos locais, da estação, produzidos sem veneno, pela agricultura familiar de base agroecológica. Ou seja, propõe a substituição do sistema alimentar agroindustrial por outro, ambientalmente sustentável e socialmente justo, que pressupõe a produção de alimentos sem agrotóxicos, pelo pequeno agricultor familiar. E a comercialização em circuitos curtos — que reduzem o número de elos que separa quem produz de quem consome alimentos. “Não importa se esse alimento for in natura, beneficiado ou minimamente processado, acessar alimentos diretamente com quem produz é incentivar uma cadeia — ou circuito — curto de alimentos. São vários os benefícios ambientais, sociais individuais e coletivos do fortalecimento de circuitos curtos”, explica a nutricionista e curadora alimentar Bruna de Oliveira em matéria no site Herbívora. Entre as opções de circuitos curtos estão as feiras de produtores, grupos de consumo, CSA – Comunidade que Sustenta a Agricultura (o IDEC tem um mapa dessas iniciativas pelo Brasil).

Regulamentação

Não basta, no entanto, o incentivo à mudança de comportamento individual. Somos presas fáceis de uma indústria multimilionária que conta com a publicidade em horários nobres — ou dedicados à programação infantil — em grandes veículos de comunicação. O glamour da comida pronta, dos produtos aromatizados, açucarados, saborizados e coloridos, e dos preparados e embutidos de carnes e derivados de animais é aspiracional. Artistas de TV fazem propaganda. A dona de casa quer. É só aumentar a renda que aumenta o consumo de produtos desse tipo. Dona Candinha não quer mais comer batata-doce no café da manhã — pois isso é coisa de “pobre”. Ninguém vê a família da zona sul carioca na novela da Globo comendo batata-doce.

Uma alimentação de qualidade é direito garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal Brasileira. (Foto: Alessandra Nahra)

Portanto, além de informação e educação, é preciso que se faça e se apliquem políticas públicas que facilitem e incentivem a produção e distribuição de alimentos in natura ou minimamente processados, de base agroecológica, como a lei nº 11.947, de 16/6/2009, que destina 30% do valor repassado pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE para a compra direta de produtos da agricultura familiar. Ações para a regulamentação da publicidade e venda de produtos em ambiente escolar também estão em tramitação: o Projeto de Lei 2640/15, que proíbe a promoção de qualquer atividade com conteúdo comercial nas escolas públicas e privadas de ensinos fundamental e médio, e o Projeto de Lei 1755/07, que proíbe a venda de refrigerantes nesses ambientes. A informação sobre alimentos processados e ultraprocessados também está em debate. A Anvisa discute atualmente um novo modelo de rotulagem nutricional com o objetivo de deixar mais claras para o consumidor as informações sobre os produtos.

Essas iniciativas estão sujeitas, naturalmente, ao tremendo lobby das indústrias. E a interesses políticos que também não parecem atender às necessidades da população. O Ministro da Saúde, por exemplo, recentemente defendeu, em entrevista à radio CBN, um modelo de rotulagem considerado ineficaz pelas organizações de saúde pública. O Consea, Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional — responsável por fazer controle social e abrir espaço para a participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas de segurança alimentar e nutricional, além de ser um dos três pilares do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricionalfoi extinto no primeiro dia do novo governo federal. Em São Paulo, o governo estadual está mudando o cardápio da alimentação escolar, diminuindo alimentos in natura e substituindo por processados.

A alimentação, direito garantido pelo artigo 6º da Constituição Federal Brasileira, atualmente é um negócio que movimenta uma indústria multimilionária. “O Brasil tem muita relevância no cenário da alimentação. Como é o maior país da América do Sul, é um grande mercado”, aponta Camila Maranha, da ACT Promoção da Saúde. A mercadoria principal, sendo vendida a “preço de banana” para aumentar os lucros dessa indústria, é a autonomia e a segurança alimentar — além da saúde do cidadão e do planeta.

*Jornalista e plantadora urbana, dá oficinas de horta, compostagem e alimentação política e escreve sobre sistemas alimentares, agricultura sustentável e consumo crítico no site herbívora.com.br, no medium.com/@alenahra e em outras publicações.


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