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4 de maio de 2019
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12:32

Poeta Sérgio Vaz: ‘A função da arte é contestar o sistema sempre’

Por
Sul 21
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O poeta Sérgio Vaz visitou a Emef Morro da Cruz, em Porto Alegre, na última quinta-feira (02). Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro

“30 anos de caminhada para chegar aqui, nessa escola em Porto Alegre, e saber que os alunos amaram meus poemas. Isso quer dizer que tudo valeu a pena”. A frase é do poeta Sérgio Vaz, dita a algumas professoras da Emef Morro Da Cruz. O escritor, que mescla em sua literatura temas sociais, como desigualdades e política, com assuntos sentimentais, esteve no local para participar, ao lado da também poeta Luna Vitrolira, de uma conversa educativa voltada para crianças da periferia da Capital.

Enquanto os escritores dirigiam-se para a quadra onde o evento, que foi promovido pela FestiPoa Literária, aconteceria, crianças e adolescentes puxavam conversa com eles, pediam autógrafos e fotos. Além dos alunos da escola, também estavam presentes jovens do Emef Dep Marcirio Goulart Loureiro, da Ong Cirandar e da Biblioteca do Chocolatão.

Durante o evento, os escritores declamaram poemas próprios e contaram sobre suas histórias e sua relação com a escrita. Sérgio Vaz iniciou sua fala recitando o poema ‘Os Miseráveis’, que aborda a diferença de oportunidades para diferentes classes sociais. Já Luna leu o primeiro poema que escreveu, sobre sua vivência enquanto mulher negra, gorda e nordestina.

Sérgio Vaz contou às crianças que produz uma “literatura periférica”, afirmando que ela não é “maior, nem menor”, mas sim uma literatura que representa o povo periférico. E, durante os momentos em que falou, fez com que os jovens repetissem em voz alta alguns poemas. Em algumas das vezes, livros foram sorteados entre quem estava no lado da plateia que falou mais alto.

Ao final do encontro, as crianças fizeram perguntas aos escritores. Uma menina questionou se quando jovens Sérgio e Luna preferiam ir à escola ou escrever livros. Sérgio respondeu que seu pai nunca deixou faltar nada em casa, “nem comida, nem livro”, e contou que estudou muito pouco na escola, pois precisou começar a trabalhar. “Não cometam o mesmo erro que eu”, disse o escritor para as crianças.

A presença de livros em casa e o gosto que seu pai tinha pela leitura foram o que influenciou Sérgio a gostar de literatura. O primeiro contato que eu tive com a escrita foi por causa do meu pai. O meu pai era um cara simples, humilde, mas que gostava de literatura”, disse o escritor ao Sul21, em entrevista após a conversa com as crianças. Sérgio conta que tinha uma pequena estante em sua casa, e que um dia, “por curiosidade”, pegou das prateleiras um livro, mas não entendeu sobre o que se tratava. A partir daí, seu pai começou a comprar livros infantis para que ele pudesse ler.

O gosto pela escrita chegou mais tarde na vida de Sérgio. “Demorou um pouco porque eu insisti no futebol”. O escritor, que desde os 5 anos morou na periferia da região metropolitana de São Paulo, conta que quando era criança ser jogador de futebol era o único sonho que os jovens periféricos tinham, mas que hoje se tornou “só mais um sonho”. “E também havia um estranhamento em mim por gostar de arte morando em uma região tão pobre e tão violenta. O livro me salvou. Quando eu li ‘Dom Quixote’ eu percebi que não, eu não sou estranho, sou um sonhador”, lembra.

Em sua escrita, o autor fala sobre os assuntos que permeiam o cotidiano de quem vive nas periferias, sobre direitos das minorias, sobre retrocessos políticos e sobre temáticas mais individuais, como amor, tristeza, resiliência e sonhos. “Aprendi que poesia é contemplar. Contemplar a vida, o bairro, as pessoas. Então, falo das coisas que eu vejo. O cotidiano me fascina muito. Às vezes, fico parado na rua olhando o movimento. Tem umas pessoas que o corpo fala, e acho que a rua fala”.

A visita educativa foi promovida pela FestiPoa Literária. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Cooperifa

Quase 19 anos atrás, Sérgio fundou o Sarau da Cooperifa, evento cultural que acontece semanalmente em um bar na zona sul de São Paulo. “Funciona como se fosse uma universidade. Tem um pessoal que passa uma época, pega um axé e depois vai embora. E tá sempre chegando gente nova. Tá sempre rebobinando as ideias e o conhecimento”, afirma Sérgio sobre o sarau.

O autor explica que a criação da Cooperifa se deu pela necessidade de realizar algo que pudesse ter um efeito real nas mudanças que ele sonhava para a sociedade. “Eu venho de uma época em que a gente sentava no bar pra beber e tocar violão falando em mudar o mundo, e não mudava nada. Muita teoria e pouca prática”, conta.

Após perceber que a mudança não partiria de uma conversa de bar, Sérgio resolveu criar uma ideia de “sonhar com as mãos”, o que o autor explica se tratar da tomada de atitudes sem esperar nada das autoridades. “No contexto em que eu vivia, o Estado sempre foi ausente. Não podia ficar reclamando pro Estado. Então eu fui fazer. Juntei-me com outros sonhadores e fomos fazendo”. Assim, o bar que frequentavam virou um ponto cultural, que hoje, além dos saraus, também conta com uma biblioteca aberta ao público.

De acordo com Sérgio, o maior mérito do Sarau da Cooperifa é influenciar os jovens que frequentam o local a se abrirem para o conhecimento e estimulá-los a entrar na universidade. Ele também pontua que a Cooperifa busca despertar o interesse pela leitura: “Para além de criar novos escritores, a nossa função é criar novos leitores também. Pra mim, sagrado não é quem escreve, é quem lê”.

Literatura periférica

Para o poeta, ao mesmo tempo em que as grandes livrarias enfrentam uma crise atualmente, o número de leitores no país está aumentando. Sérgio acredita que as livrarias mantiveram-se por muitos anos “presas em uma redoma intelectual se ancorando apenas nos autores ditos clássicos”, esquecendo que a população também se interessa por outros tipos de literatura, como a produzida por pobres, negros e mulheres.

O autor também pontua que com a literatura periférica, os autores chegam a um novo tipo de leitor: “O pobre se identifica com esse tipo de literatura porque nós não estamos falando deles, estamos falando com eles, com elas. Quando você lê um livro, quando alguém conta sobre a gente, alguém que não vive com a gente, há uma distância muito grande. A gente acaba sendo objeto de estudo. E nesse caso, a literatura periférica não é objeto de estudo. Nós somos protagonistas da nossa história”.

Cenário de retrocessos

Sérgio acredita que a literatura tem um papel de resistência dentro do cenário atual de ataque às universidades e aos cursos de ciências humanas, promovido pelo Governo de Jair Bolsonaro (PSL), e da censura dirigida à cultura. “A função da arte é contestar o sistema sempre. E essas pessoas que falam em resistir tem que entender que nós, que escrevemos esse tipo de literatura, já estamos resistindo há muito tempo. Pra nós que somos da periferia, somos negros, pobres, índios, mulheres, gays, todas pessoas que sofrem, já estamos resistindo”.

O autor também destaca a importância dos professores dentro do cenário atual: “Muito mais do que respeitar os professores, nós temos que protegê-los nesse momento tão perigoso do país”, afirma. Ainda, para o autor, participar da atividade promovida pela FestiPoa Literária, e estar ao lado das crianças é uma forma de “retribuir” suas vitórias. “Quando eu venho numa escola pública não venho ajudar ninguém, eu que sou ajudado. É a escola que coloca meu poema na lousa, que fala sobre o meu trabalho. Eu sou um parceiro da escola por acreditar que vida loka é quem estuda”.

Veja mais fotos do evento: 

Os escritores Luna Vitrolira e Sérgio Vaz participaram da conversa com crianças da periferia de Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21
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