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18 de maio de 2019
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11:10

Nazaré, Brumadinho, Moçambique: a luta contra projetos que esvaziam territórios e expulsam populações

Por
Sul 21
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Evento organizado pela Amigos da Terra Brasil denunciou violações de direitos por transnacionais. (Fotos: Carol Ferraz/Sul21)

Marco Weissheimer

O que há em comum entre realidades vividas na Vila Nazaré, em Porto Alegre, na cidade de Brumadinho, em Minas Gerais, ou na província de Tete, em Moçambique? Nos três casos, as comunidades que vivem nestas regiões tiveram suas vidas e seus territórios impactados por grandes projetos de mineração e de infraestrutura, com perda de direitos, de laços sociais e de vidas. Nos três casos também, há uma conexão entre formas de opressão e de resistência. A confluência dessas realidades foi debatida no painel “Direitos dos Povos e Defesa dos Territórios: Resistências no Brasil e no Mundo”, organizado na noite de quinta-feira (16), no Clube de Cultura, em Porto Alegre, pelas organizações Amigos da Terra Brasil, Amigos de la Tierra America Latina y el Caribe e Amigos da Terra Internacional (Friends oh the Earth International).

O debate contou com a presença também de representantes do Conselho Estadual de Direitos Humanos do Rio Grande do Sul (CEDH-RS), do Programa Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), entre outras organizações. Dividido em três blocos, o encontro debateu como resistir frente à avalanche de retrocessos, de violência, de desmonte de políticas sociais e de cortes nos investimentos em educação, saúde, cultura. Além disso, tratou do poder que grandes corporações transnacionais têm hoje, sobrepondo-se ao dos estados e de suas instituições, e que vem promovendo uma grande ofensiva por recursos naturais, bens comuns e territórios, por todo o mundo.

Presidente da Amigos da Terra Internacional, a uruguaia Karin Nansen defendeu maior solidariedade internacional para enfrentar ofensiva conservadora. (Foto: Carol Ferraz/Sul21)

Ofensiva conservadora sobre terras públicas

O primeiro bloco contou com a participação de representantes do CEDH, do Programa Defensores e Defensoras de Direitos Humanos, e da Amigos da Terra Internacional. A advogada Consuelo da Rosa, que compôs a equipe do programa de proteção aos ativistas de direitos humanos entre 2013 e 2014, fez um relato da implementação dessa política que foi encerrada no final de 2014. Na conjuntura atual, destacou, programas desse tipo serão fundamentais para apoiar os ativistas do setor, que estão crescentemente ameaçados. Na mesma linha, Júlio Alt, que integra o CEDH-RS, chamou a atenção para a ofensiva conservadora sobre bens e terras públicas em todo o país. Essa ofensiva está avançando sobre territórios que até então eram protegidos, como unidades de conservação, terras devolutas, áreas indígenas e quilombolas. “Não estamos falando só de privatização da propriedade, mas também da posse de mais de 100 milhões de hectares que hoje são terras indígenas, quilombolas ou unidades de conservação”, alertou.

Presidente da Amigos da Terra Internacional, a uruguaia Karin Nansen manifestou solidariedade ao povo brasileiro pela ofensiva conservadora que vem retirando direitos, extinguindo políticas públicas e criminalizando lutas sociais. O Brasil se torna assim um dos principais terrenos de luta por justiça social e ambiental, em um cenário internacional de acirramento de uma confluência de crises: climática, alimentar, da biodiversidade, econômica e financeira. Essa confluência de crises, destacou, “tem a ver com um sistema regido por uma lógica perversa que privilegia a acumulação de capital acima de qualquer outra coisa”. “O capital quer avançar mais e mais sobre territórios e sobre nossas sociedades por meio de monoculturas, privatizações, grandes projetos de mineração e de infraestrutura. E avança com muita violência, pois precisa esvaziar territórios e expulsar populações para explorar os recursos que desejam”, acrescentou.

O caso da Vila Nazaré

Eduardo Osório, do MTST-RS. (Fotos: Carol Ferraz/Sul21)

Em função desta necessidade de esvaziar territórios, disse ainda Karin Nansen, esses projetos querem também fazer desaparecer as formas e organizações de resistência ao seu avanço. Ela citou como exemplo disso, a luta da comunidade da Vila Nazaré, de Porto Alegre, que estão sendo expulsas de seu território pelo projeto de ampliação da pista do aeroporto Salgado Filho, tocado agora pela empresa alemã Fraport. As famílias atingidas pelos rompimentos de barragens de mineração em Minas Gerais são outro exemplo do mesmo processo. Para enfrentar esse cenário, ela defendeu a necessidade de construir mais solidariedade internacional. “Estamos enfrentando não só uma política perversa, mas também uma lógica que pretende impor o racismo, a misoginia e a xenofobia nas nossas sociedades. Precisamos lutar pela democracia, contra o fascismo e a direita em nível internacional e não faremos isso sem fortalecer a nossa solidariedade internacional”, assinalou.

Eduardo Osório, da coordenação do MTST no Rio Grande do Sul, também falou sobre a realidade vivida pela população da Vila Nazaré. Ele lembrou que o acordo firmado em 2009-2010 entre governo federal e prefeitura previu a construção de dois assentamentos para realocar as famílias da Nazaré. No entanto, assinalou, o Condomínio Nosso Senhor do Bom Fim, construído para esse fim, tem 364 apartamentos, o que atende só 15% da vila. “As obras da pista estão andando. As primeiras famílias a sair devem ir para esse condomínio que é mais próximo de onde vive hoje a comunidade. Para as demais, o futuro é incerto”, disse Eduardo. Ele destacou também a importância da solidariedade internacional, especialmente na Alemanha, país sede da empresa que assumiu a administração do aeroporto Salgado Filho. “Com apoio da Amigos da Terra Alemanha, conseguimos articular uma denúncia que foi lida para acionistas da Fraport”.

Crimes sociais, ambientais e trabalhistas

Daiane Machado, do MAB-RS. (Foto: Carol Ferraz/Sul21)

Representante do Movimento dos Atingidos por Barragens, Daiane Machado disse que os rompimentos de barragens ocorridos em Mariana e Brumadinho foram criminosos em vários sentidos. “Foram crimes ambientais, sociais e contra os trabalhadores como ficou evidenciado na escolha da Vale em instalar o refeitório abaixo da barragem”, resumiu. No dia 5 de novembro de 2018, observou a militante do MAB, o crime de Mariana completou três anos sem que, até agora, nenhuma casa tenha sido reconstruída. Há uma grande fragilidade do poder público para enfrentar essas empresas, acrescentou, fragilidade que se mistura com cumplicidade em várias situações. “Há várias barragens em situação de risco que continuam trabalhando. Além disso, há uma tentativa da Vale e do Estado em coibir a participação dos atingidos. E a Justiça Federal suspendeu uma ação civil pública do Ministério Público que questionava o acordo para a reparação das famílias atingidas”.

As denúncias sobre a atuação da Vale não se limitam ao Brasil. Érika Mendes, da Amigos da Terra Moçambique, fez um relato sobre a atuação da empresa no país africano, onde ela explora carvão desde 2009. Para iniciar a operação de exploração de carvão, 1.365 famílias foram reassentadas, contou. “Elas foram divididas em duas categorias, rurais e urbanas, segundo critérios que não ficaram claros. A categoria urbana foi reassentada em uma comunidade que já existia, gerando uma série de conflitos. As famílias da categoria rural foram reassentadas em uma terra bastante árida e suas casas foram construídas com fundações de apenas 5 centímetros. Rapidamente ficaram com rachaduras nas paredes”. Essas famílias, acrescentou Érika, viviam em terras férteis. Perderam essas terras e vários serviços de que dispunham onde viviam. “Essas corporações usam muito o componente da ruptura social, procurando dividir as comunidades como está acontecendo na Vila Nazaré, aqui em Porto Alegre”.

Contra a arquitetura da impunidade

Érika Mendes, da Amigos da Terra Moçambique. (Foto: Carol Ferraz/Sul21)

Para tentar limitar o poder dessas corporações, mais de 250 organizações se uniram e lançaram uma campanha global em defesa da criação de um tratado vinculante no âmbito das Nações Unidas para responsabilizar as empresas transnacionais por violações de direitos humanos. A ideia, explicou Érika Mendes, é construir uma nova legislação internacional para acabar com a arquitetura da impunidade que existe hoje, possibilitando a responsabilização de empresas que cometam crimes ambientais e sociais e violem direitos humanos.

Leticia Paranhos de Oliveira, da Amigos da Terra Brasil, destacou ao final  a importância de enfrentar o tema da arquitetura da impunidade que coloca as grandes corporações fora do alcance do Estado e de suas instituições. “Quando o Estado não tem poder sobre uma empresa como a Vale, temos um grande problema”, resumiu. O Uruguai, lembrou, ganhou um processo internacional apresentado pela fabricante de cigarros Philip Morris. A empresa decidiu processar o Uruguai pelas regulações adotadas para o controle do tabaco. Em 2016, o Centro Internacional de Resolução de Disputas Relativas a Investimentos (CIADI) do Banco Mundial confirmou que as medidas aplicadas pelo país para reduzir o consumo do tabaco não violavam os direitos comerciais da empresa.

Por outro lado, a petroleira Chevron venceu uma disputa judicial milionária contra o Equador. Em setembro de 2018, o Tribunal Permanente de Arbitragem, de Haia, anulou uma condenação de 9,5 bilhões de dólares contra a petroquímica Chevron , destruindo a pretensão de cidadãos equatorianos de receber indenizações da empresa por danos causados ao meio ambiente.

As disputas de populações contra essas grandes corporações, concluiu Leticia, como a que a Vila Nazaré está travando com a alemã Fraport agora, em Porto Alegre, só podem ser vencidas com a construção de uma forte rede de solidariedade internacional.

Galeria de fotos

Leticia Paranhos, da Amigos da Terra Brasil. (Fotos: Carol Ferraz/Sul21)
Foto: Carol Ferraz/Sul21
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