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8 de maio de 2019
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11:38

Heloisa Buarque de Hollanda: ‘Querer que se use cor de rosa beira a piada’

Por
Sul 21
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A escritora Heloisa Buarque de Hollanda esteve em Porto Alegre para participar da FestiPoa Literária. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro

Em 2015, o projeto de lei criado por Eduardo Cunha (PMDB), que dificultava o aborto legal em caso de estupro, foi responsável por inflamar a onda atual do feminismo no Brasil, fazendo com que as brasileiras fossem às ruas para protestar pelos direitos das mulheres. A avaliação é da escritora, professora e pesquisadora Heloisa Buarque de Holanda, que estuda, dentre vários temas culturais, a história do feminismo no país e no mundo.

Na última semana, a escritora esteve em Porto Alegre para participar da programação do FestiPoa Literária, onde lançou dois livros, intitulados ‘Pensamento feminista brasileiro — formação e contexto’ e ‘Pensamento feminista — conceitos fundamentais’. Na ocasião, Heloisa conversou com o Sul21 sobre temas como o feminismo hoje no Brasil, o ódio ao movimento, as diferenças do momento atual para aquele vivenciado por ela nos anos 1980, o futuro das pautas feministas no país e debate de gênero.

Segundo Heloisa, que é um principais nomes nos estudos sobre cultura e sobre gênero no Brasil, os livros lançados em Porto Alegre são um meio de garantir repertório teórico acerca do feminismo para a geração atual. “Essas meninas têm muita força, mas talvez elas não conheçam essa história. Se elas conhecerem essa história e tiverem controle desses conceitos de gênero, sai de baixo, porque daí é fogo total”, afirma. As obras são uma coleção com cerca de 40 autoras que dialogam sobre feminismo.

Para Heloisa, o principal ponto que incomoda muitas pessoas ao se tratar do movimento feminista é o fato de que ele gera mudanças estruturais no modelo de família instituído como tradicional, ou seja, composto por um homem, uma mulher e filhos. “O feminismo discute a família, a família discute propriedade, propriedade discute o capital, o dinheiro. Isso mexe com toda uma estrutura econômica, política e religiosa. Então, as mulheres que querem defender aquele seu pedaço têm horror ao feminismo, e os homens também têm horror. Eu acho que não é uma luta do homem contra a mulher, é da família contra a inovação desse modelo de relação”, afirma. Segundo ela, esse cenário faz com que haja uma crescente no conservadorismo para tentar conter os avanços do movimento.

Sobre o feminismo no Brasil, Heloisa aponta que houve uma mudança nas estruturas do movimento. De acordo com a escritora atualmente ele funciona de maneira horizontal, não havendo uma líder que coordena e determina o que será feito. Nesse contexto, as feministas brasileiras utilizam duas plataformas de comunicação para lutar pelos direitos das mulheres: a internet e o próprio corpo. “No meu tempo era objeto, onde você apanhava. Se te matavam, era seu corpo que matavam; te olhavam, abusavam, você era vítima por causa do seu corpo Ele era objeto de disputa. Agora o corpo virou uma plataforma de comunicação”.

A pesquisadora também menciona que a história do feminismo é marcada por constantes “refluxos” no movimento. “Não é por acaso que se chamam as ondas feministas. Porque vem e volta. No final dos anos 90, por exemplo, já tinha acabado o feminismo, tinha até nome, era o pós-feminismo. E depois veio aquela onda tsunamica,” explica Heloisa. Porém, segundo ela, é possível que o feminismo atual não sofra um forte refluxo, devido à potência da internet e da força que o movimento vem ganhando. “Vai ter um refluxozinho porque vai ter censura. Só que censura nunca calou a boca de ninguém, fecha provisoriamente”, afirma.

Confira e entrevista completa:

Sul21: Como a escrita entrou na sua vida?

Heloisa: Entrou com dificuldade, porque eu achava que escrever era muito difícil. Eu tinha um superego gigantesco. Eu escrevo na universidade, então é uma responsa. A universidade faz você não escrever, é muito engraçado isso. É tanta fórmula, tanto julgamento, tanto ‘é bom, não é bom’, que você acaba tendo um texto duro, ruim, como é a maior parte dos textos acadêmicos. Aí depois eu fui soltando até ter uma hora que virou.

Em 1979, eu fiz uma tese de doutorado em que comecei o texto em primeira pessoa. Aí a banca inteira falou que estava errado falar em primeira pessoa, que aquilo não era científico, que era pragmático, que era uma impressão que eu tava dando. A banca se amarrou tanto no ruim que era essa frase que isso me deu uma chave, e eu nunca mais parei de escrever em primeira pessoa. Passo a passo comecei a fazer uma coisa acadêmica mais livre, solta, que ficou o meu estilo marcado, falando do meu ponto de vista sempre, do que eu tô pensando, porque estou fazendo o texto. Isso é uma coisa que na academia é muito execrado, mas eu fiquei muito feliz porque peguei públicos que não são acadêmicos, meus leitores a maioria não é.

Hoje a escrita é algo totalmente natural, escrevo em cinco minutos. E eu também passei por um exercício nos anos 80 em que eu tive uma coluna no Jornal Do Brasil, já falecido. Era uma coluna diária e para escrever você desapega né. Mas você não sabe o ruim que é escrever uma coisa acadêmica. São mil olhos te julgando, te dizendo que não é assim. Graças a deus que eu sou uma péssima acadêmica.

Sul21: Em que momento você decidiu compartilhar com a sociedade a sua escrita?

Heloisa: Foi na tese de doutorado que eu pensei ‘por que que eu não posso falar do meu ponto de vista? Que proibição maluca é essa?’. Aí eu escancarei a escrita, tipo malcriação. Essa tese já era sobre a poesia marginal, e chegou até um público jovem, todos da contracultura que tinha naquele momento. Aí depois que eu entrei nesse nicho eu não saí mais. O livro chama-se ‘Impressões de viagem’, que já não é um nome de tese.

‘Se você destrói a família você está interpelando todo um modelo econômico baseado na família’, afirma Heloisa. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Su21: E quando você se aproximou do feminismo?

Heloisa: Eu sou da geração dos anos 60, então eu era ativista e estudante, porque todo mundo era ativista. Não era uma vantagem ou uma qualidade, aquela juventude era proativa, fazia passeatas. Existia a ditadura, então isso era uma coisa muito viva. E tinha o feminismo, mas era muito localizado, muito quietinho, e eu nunca me envolvi tanto.

Eu achava que era privilegiada porque eu fazia o que eu queria. Não sentia tantas restrições em cima de mim. Eu achava que ser mulher era legal, que não tinha problema. Aí eu fui pros Estados Unidos fazer um doutorado em 1982. E 1982 foi quando a onda teórica feminista e o pensamento feminista foi deflagrado. Era uma festa, porque tinha teólogas falando de deus, tinha gente falando mal do Freud, tinha Marx revisando tudo, tinha mulheres fazendo, falando e acontecendo. Eu me apaixonei e saquei que o que eu pensava não era verdade, que não tinha sido tão fácil a minha vida.

Isso é um traço muito interessante, porque tem um estudo que mostra que naquela época quase 90% das feministas vieram para o Brasil de fora, do exílio em algum outro país. Elas voltavam feministas, não se faziam feministas aqui. Toda a geração dos anos 70 foi assim. Para você ver como a nossa sociedade é cordial entre aspas. O Brasil é violento, é racista, é machista. A gente não tem muito essa lente. Hoje tem, mas no meu tempo ainda não tinha com essa força.

Sul21: A partir dos seus estudos, como você avalia o feminismo hoje no Brasil?

Heloisa: O feminismo hoje no Brasil está irreversível, se deus nos ajudar. A virada tecnológica da internet ajudou as feministas mais jovens, quer dizer, aquela geração toda que participou em 2013 dos movimentos das massas. As massas silenciaram um pouco, teve um refluxo, mas as feministas, as mulheres, continuaram postando coisas. Aí veio o Eduardo Cunha, que queria retroagir a lei que permitia que mulheres fizessem aborto em caso de estupro. Aí as meninas enlouqueceram. Foi ele que deflagrou esse feminismo factualmente. Já estava quente por causa de 2013, mas aí deflagrou no Brasil inteiro e as meninas começaram a ir pra rua. E a internet tem uma potência muito diferente da sala de aula, das reuniões feministas em que se falava de você pra você mesma. O blog Primeiro Assédio e todos aqueles blogs viralizaram, dando uma força incrível.

Sul21: E quais são as diferenças entre o feminismo que temos hoje no Brasil e aquele que você vivenciou?

Heloisa: No meu tempo a gente tinha líderes, as lideranças feministas. Era bem diferente. Hoje não, hoje é uma coisa horizontal, mas quem é a líder hoje? Sempre tem uma popstar, por exemplo Djamila [Ribeiro], mas é uma popstar, ela não manda, não tem palavra de ordem. Não é uma liderança. Então, agora você tem uma coisa horizontal, não precisa de mediação, e no tempo da gente precisava. Existia o Lobby do Batom, que foi brigar para conseguir artigos na Constituinte. Você ia para o Congresso, você fazia as coisas formalmente, através de uma intermediação que era o Congresso, ou uma ONG, mas tinha uma intermediária.

Hoje você vai direto, você pede. E sempre usando duas plataformas, que são a internet e o próprio corpo. O corpo passou a ser uma plataforma. No meu tempo era objeto, onde você apanhava. Se te matavam, era seu corpo que matavam; te olhavam, abusavam, você era vítima por causa do seu corpo. Ele era objeto de disputa. Agora o corpo virou uma plataforma de comunicação. Elas conseguiram se fazer ouvir usando o corpo, a performance. Como na Marcha das Vadias, por exemplo. Qualquer marcha é performática, tem tudo escrito no corpo, andam peladas, mulheres gordas ficam nuas. É uma grande novidade que a gente não tinha antes.

Sul21: Muitas pessoas, inclusive mulheres, enxergam o feminismo como algo negativo. Você acha que isso acontece por qual motivo?

Heloisa: É que o feminismo é uma coisa muito perigosa. O feminismo discute a família, a família discute propriedade, propriedade discute capital, dinheiro. Então não é uma coisa leve o feminismo. Se você mexe na estrutura de uma família você vai mexer com todo o capital envolvido ali. Inclusive com a mulher em casa, que permite que o marido trabalhe mais, renda mais; com formação de filho naquele modelo só para reproduzir. Você tem toda uma estrutura econômica montada em cima das funções que a família heteronormativa te dá, que é o pai, a mãe e os filhinhos, unidos num bloco proprietário. De repente você começa a fazer outros tipos de família. Você começa a dar outros padrões, outros paradigmas. Isso mexe com toda uma estrutura econômica, política e religiosa. É muito barra pesada. Então as mulheres que querem defender aquele seu pedaço têm horror ao feminismo, e os homens também têm horror. Eu acho que não é uma luta do homem contra a mulher, é da família contra a inovação desse modelo de relação. É muito forte a ideia da família porque ela não é só parentesco, é propriedade.

Sul21: E vemos crescer o discurso a favor de um único modelo de família…

Heloisa: Exatamente. Para o conservador, a mulher existe para preservar a família. É a função dela manter aquela unidade econômica funcionando. Então é perigosíssimo o feminismo porque vai mexer com essas relações. Se você destrói a família você está interpelando todo um modelo econômico baseado na família.

Esse feminismo novo já desmontou todos os meios de comunicação que tinham uma líder. Agora é publicar ‘meu tio abusou de mim’ e isso vai direto pro mundo. Não tem líder, não tem intermediário nenhum. É uma coisa muito forte, subversiva e perigosa.

Você sabe o blog o ‘Primeiro Assédio’? Ele nasceu dentro de um blog chamado Think Olga. Uma menina postou que tinha sido assediada e aí outras 1500 postaram relatos imediatamente, que nem o caso do João de Deus. Aí a fundadora do Think Olga postou também. Ela tinha sido estuprada há 27 anos atrás e nunca tinha dito, e ela era feminista, tinha o blog e tudo. Ela entrou no Primeiro Assédio. Você tem que destampar isso que todo mundo sai falando.

Sul21: E a grande visibilidade que esses casos ganharam motiva outras mulheres a falarem sobre suas histórias…

Heloisa: Sim, que falem também e que criem correntes. Você faz horizontais, multidões e não lideranças. O que se divide hoje é pelo lugar de fala, as negras, as brancas. Isso nesses livros que eu estou lançando você vê. O primeiro é internacional e aparece a ideia de gênero, porque antes se falava em identidade. Depois em outra seção vem a questão interseccional com raça, orientação sexual, um monte de coisa interpelando a ideia de relação de gênero heteronormativa.

Agora já não tem mais essa ideia, agora você já está interpelando a biologia. [Paul] Preciado, diz que não se nasce mulher, que tem zonas erógenas em outros lugares, que uma pessoa que nasceu mulher pode ter uma vida de homem, porque isso não tá inscrito no corpo. Aí essas pessoas tomam hormônio, e a sociedade diz ‘tá mexendo no corpo’, mas a mulher toma hormônio na menopausa, faz cirurgias enormes e tira peito, bota o peito, puxa a cara, e são cirurgias que agridem o corpo. Por que que não pode alguém tirar o pênis? Se tira o peito, tira o pênis. Então, ele [Preciado] começou a mostrar que a cultura toda é pra fabricar uma mulher, pra desconstruir essa mulher os mesmos métodos são vistos como complexos. Agora é a biologia que tá sendo interpelada, você tem uma vagina mas você tem a opção de não querer usá-la, ou usá-la de alguma outra forma.

Sul21: E ao mesmo tempo em que existe o avanço nos estudos sobre as questões de gênero, machismo, feminismo e racismo, vemos também, por outro lado, o crescimento do ataque ao debate desses temas. De acordo com seus estudos, por que há esse cenário hoje?

Heloisa: Porque se deu um passo para a frente. Tem a onda conservadora e nós estamos numa, mas é o mundo inteiro. Essa questão de família e de gênero já foi longe demais, e quando você começa a questionar a biologia, você abre um radicalismo incrível. Antigamente era identidade, depois virou sobre a relação entre duas pessoas, aí alguém disse ‘não, essas duas pessoas não são o que dizem que são’, então você está em um avanço.

Por exemplo, as trans que lideraram essas últimas manifestações LGBTs, e o aparecimento do translegítimo, que antes você tinha um travesti, que era um homem vestido de mulher e que era prostituta invariavelmente. Agora trans não é necessariamente prostituta, pode estar defendendo uma tese na universidade, ser uma professora de filosofia, e não se travestir como uma drag, ter uma roupa normal de mulher low profile. Pra quem defende barreiras é muito aflitivo ver isso. E a família nessa história de trans? Então, eu acho que isso tudo gera um conservadorismo maior para tentar conter.

Sul21: E dentro disso vemos o ataque aos espaços que propõem debates sobre esses e outros temas, como as universidades.

Heloisa: Claro. Estudo de gênero, que é uma pesquisa científica, virou ideologia de gênero. Como ideologia de gênero? Não tem ideologia. Mas enxergam como uma ideologia pra acabar com a família. O problema é a família, não é a mulher. É outra lei.

Heloisa é um dos nomes mais importantes nos estudos culturais e de gênero no país. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Qual é papel do feminismo no Brasil dentro desse contexto atual?

Heloisa: Você vê que não é por acaso que se chamam as ondas feministas. A primeira onda, a segunda… Porque vem e volta, vem de novo e volta, vem depois em outro formato. Nós estamos na quarta e vai ter um refluxo, mas eu acho que não vai ser total porque está muito espalhado. Dessa vez não vai ser um recuo total.

No final dos anos 90, por exemplo, já tinha acabado o feminismo, tinha até nome, era o pós-feminismo. Não fazia mais sentido e, de repente, veio aquela onda tsunamica que apareceu não se sabe de onde. Em 2015, há quatro anos atrás, foi a primeira marcha de mulheres dessa nova onda. Então, eu acho que é assim. Mas nem sei se tem refluxo dessa vez, porque a coisa da internet é fogo para controlar. Acho que nas universidade, por exemplo, os estudos de gênero vão dançar, porque é só cortar as bolsas. Cortando as bolsas, a área de estudos fica muito comprometida, mas eu acho que a área da experiência social está sendo muito suportada pela internet, então não sei como é que vai ser isso. Pode proibir as marchas, mas aí vai ter uma marcha reclamado que não vai ter marcha. Eu acho difícil, está muito poderoso.

Sul21: Então esse refluxo não irá acontecer da mesma forma?

Heloisa: Vai ter um refluxo, mas não dentro. Vai ter um refluxozinho porque vai ter censura. Só que censura nunca calou a boca de ninguém, fecha provisoriamente. E é tão estapafúrdio tudo que está acontecendo. Tanto que não dá nem pra levar muito a sério. Porque se fosse uma coisa focada contra o feminismo em si, mas não é, é querer que se use cor de rosa. Beira a piada. Então é tão primário tudo, que eu não sei.

Sul21: E voltando mais para a literatura. As obras escritas por mulheres e que falam sobre questões vividas pelas mulheres ganham cada vez mais visibilidade. Para você, qual a importância de tantas pessoas consumirem esse tipo de conteúdo?

Heloisa: Eu acho importante que consumam isso. Eu estou lançando dois livros que reúnem escritoras. Um que é com as teóricas estrangeiras, mas que tem a Sueli [Carneiro] e a Lélia Gonzalez de brasileiras. Ele é só esses conceitos. E o outro é sobre a formação do pensamento feminista brasileiro, que foi durante a ditadura, quando a esquerda o oprimia muito por estar focada na revolução, então a mulher atrapalhava. Era reprimido de todos os lados, mas foi muito valente porque criou várias instituições.

Eu escrevi os livros que vou lançar por isso. Ano passado escrevi um livro chamado Explosão Feminista, que era sobre essa quarta onda e a internet a partir de 2015, e eu me apaixonei pelas meninas que conversei, porque uma feminista dos anos 60 ver uma coisa dessas é de cair o queixo. E esses livros são para isso, para dar repertório teórico porque essas meninas têm muita força, muito talento, mas talvez elas não conheçam essa história. Se elas conhecerem essa história e tiverem controle desses conceitos de gênero, sai de baixo, porque daí é fogo total. Eu achei que fosse importante dar isso pra essa geração. E esses dois livros que vou lançar são escritos para essa geração.


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