Últimas Notícias > Geral > Areazero
|
19 de maio de 2019
|
11:37

Fundador do Teatro Mágico: ‘Não se pode acreditar que com mais violência vamos acertar as coisas’

Por
Sul 21
[email protected]
O cantor Fernando Anitelli realizou em Porto Alegre o show da turnê ‘Teatro Mágico: Voz, Violão e Circo’. Foto: Day Montenegro/Divulgação

Annie Castro 

Nas apresentações do grupo Teatro Mágico não restam dúvidas: arte também é política. Seja na defesa da educação pública, ameaçada pelos cortes promovidos pelo governo de Jair Bolsonaro, ou na homenagem à vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, a apresentação realizada no Teatro da Unisinos, em Porto Alegre, no dia 10 de maio, foi permeada por temas atuais.

Durante o show, ao cantar as músicas do grupo que desde 2003 mistura teatro e elementos circenses, Fernando Anitelli, fundador do Teatro Mágico,  explicava o contexto em que cada letra foi criada. Além do cantor, a apresentação teve a participação do palhaço Toicinho, que há alguns anos acompanha o Teatro Mágico e leva ao palco o clima das apresentações de circo, e do duo Gêmeas Dias, formado pelas irmãs Nathália e Nayara, que realizaram performances artísticas durante algumas das músicas. Ao longo da noite, também aconteceram falas sobre o cenário político brasileiro, sobre educação e sobre preconceitos.

Uma delas ocorreu em meio à música ‘Zazulejo’, uma homenagem à Jô, uma senhora que trabalhava na casa da família de Fernando desde que ele era criança. A letra da canção é composta por palavras que Jô costumava dizer, muitas delas contento a grafia errada para as normas da língua portuguesa. Antes de começar a música, Fernando afirmou que “Jô inventava palavras, que é o que todo poeta deveria fazer” e lembrou que muitas pessoas ainda não têm acesso a uma educação de qualidade no país, mencionando também os cortes de verbas para as universidades federais, anunciado no último mês pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL).

Antes de terminar a música, ele contou que um dia Jô disse para ele ter cuidado com o teatro, pois “o [deputado federal] Alexandre Frota começou com o teatro e agora está fazendo filme com homem pelado”. “Aí eu respondi pra ela ‘mas Jô, o problema não é fazer filme com homem pelado, o problema é pensar que nem esse cara pensa’”, disse Fernando, ovacionado pela plateia.

Pessoas de diversas idades, incluindo crianças de colo, acompanharam o show de Fernando Anitelli. Foto: Day Montenegro/Divulgação

Outro momento em que houve menção a educação foi durante um trecho de uma das canções do grupo que repete diversas vezes a frase ‘somos heróis’. Enquanto cantava, Fernando pediu aos professores presentes na plateia que levantassem a mão.

Durante música ‘O sol e a peneira’, lançada em 2016 e que aborda temas sociais como manifestações, repressão, justiça e assassinato da juventude periférica pela polícia, o duo Gêmeas Dias foi responsável por falar um dos trechos da música. “O preconceito eleito”, “homofobia, quem diria, amplificada pela má-fé” e “onde sobra intolerância, falta inteligência” foram algumas das frases da música que foram ditas pelas Gêmeas Dias.

Ao fim da canção, Fernando disse que a população precisa mudar a ideia de que não se deve discutir política, e criticou o ódio direcionado a quem pensa diferente, independente do partido político. “Se diz que futebol e política não se discute, aí a gente toma de 7×1, todos os pastores são donos das maiores empresas de comunicação e o país está nessa situação. Se discute sim, mas não precisa gritar ou matar quem pensa diferente”, disse.

A vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018, também foi lembrada durante o show. Antes de cantar a música ‘Quantas mais’, lançada no final do ano passado, o músico contou que a canção é inspirada em Marielle e que possui esse nome devido a uma das frases mais conhecidas da vereadora. “Essa música é inspirada em uma colega nossa que vivia dizendo ‘quantas mais vão precisar morrer antes que essa guerra acabe?’, ‘quantas mais mulheres vão precisar passar por isso?’. Essa amiga faleceu com quatro tiros de fuzil no rosto. Essa amiga é Marielle. Isso não é partidário, ela era nossa uma amiga, que ia em todos os nossos shows no Rio. Ninguém merece morrer dessa maneira. Essa música é uma ode à vida”, disse Fernando. Ao fim de sua fala, uma mulher gritou da platéia a frase ‘Marielle vive’.

Em entrevista ao Sul21, o músico afirmou que as músicas do ‘Teatro Mágico’ buscam trazer sempre uma “moral da história” e uma mensagem construtiva. Para ele, nesse momento enfrentado pelo Brasil de censura à arte e ao pensamento crítico, as canções produzida pelo grupo têm a função de “despertar” e “provocar” os ouvintes: “Todo mundo tem seus anseios, suas críticas para fazer em relação ao governo. O que não pode é a gente acreditar que com mais violência, com mais ignorância a gente vai acertar as coisas. Nesse sentido, a gente traz nas canções todas essa relevância do pensar construtivamente, da realização das coisas com amor, com paz; tem humor nas canções, tem críticas também”, disse.

Confira abaixo a entrevista completa:

Sul21: Em qual contexto se deu a criação do Teatro Mágico e quais foram as motivações para criar um grupo musical com esse formato que mistura música, poesia e elementos circenses?

Fernando: O teatro mágico surge inspirado nos saraus, na pluralidade artística que existe dentro desses movimentos. A poesia, a música, o teatro, as artes plásticas. Eu frequentava muitos saraus e sempre no final esses encontros acabavam numa catarse, com todo mundo unido, participando. Então, a inspiração veio daí, por que não levar isso para o palco? Naquele momento, isso era em 2003, eu estava fazendo teatro também. Fui mesclando o que eu tava aprendendo no teatro com o que eu tava aprendendo no sarau, com as vivências mesmo, e coloquei tudo nesse projeto, no Teatro Mágico, que essencialmente é uma companhia artística que busca trabalhar com a pluralidade. Foi essa a essência da coisa desde o início.

Sul21: Como se dá a composição das músicas? Você é o responsável ou ela é feita de maneira coletiva?

Fernando: De variadas maneiras. Eu componho a maioria das letras. Também tenho grandes parceiros, o Danilo Souza, Daniel Santiago, Gustavo Anitele, Maíra Viana, são grandes parceiros de composição, de criação.

Alguns álbuns foram feitos coletivamente, outros álbuns os arranjos foram feitos pelo próprio Daniel Santiago em parceria comigo. E a gente sempre pensa o que está acontecendo no nosso cotidiano, no contexto da nossa atualidade. A gente busca traduzir isso de uma maneira crítica, ao mesmo tempo a gente busca levantar, provocar algumas coisas através de humor, e em alguns outros momentos através de acidez nas letras, mas a essência é essa. Sempre poder no final da canção, da poesia, ter aquela moral da história.

Sul21: Muitas músicas de vocês mesclam temáticas mais individuais, como sentimentos inerentes aos seres humanos, com outras coletivas, mais sociais. Quais são os temas que motivam a escrita das canções?

Fernando: Bom, os temas que motivam as canções são relações do cotidiano, são querências, são sonhos, coisas que a gente vê e ficamos chocados. Qualquer coisa é capaz de inspirar o compositor. Por isso que existe o jingle, a pessoa faz uma música para a pasta de dente e o país inteiro canta, então é isso. É o cotidiano, são as relações e como eu disse na outra resposta, a gente não faz nada aleatório, toda letra eu busco pelo menos que tenha uma mensagem positiva, construtiva.

Sul21: O que o ‘Teatro Mágico’ busca transmitir para a sociedade a partir das músicas?

Fernando: Várias coisas, dependendo da letra é uma coisa, dependendo da canção é outra. A gente tem músicas que falam sobre movimentos campesinos, outras que falam sobre a questão política do país no momento, tem música que fala sobre o mar que se apaixona por uma menina, outra que fala sobre a saudade do irmão mais velho que já fez sua passagem. A gente tem inspiração para tudo quanto é coisa.

Sul21: Para você, qual o papel da arte e da música produzida por vocês no cenário político atual do país, onde vemos o crescimento da censura voltada ao pensamento crítico?

Fernando: A função é despertar, é provocar, é trazer o porque não. Acho que todo mundo tem seus anseios, suas críticas para fazer em relação ao governo, coisa e tal. O que não pode é a gente acreditar que com mais violência, com mais ignorância, a gente vai acertar as coisas. Não é por aí. Então, nesse sentido a gente traz nas canções todas essa relevância do pensar construtivamente, da realização das coisas com amor, com paz; tem humor nas canções, tem críticas também, mas é esse universo de trazer uma coisa boa, emanando muita luz na caminhada de todos. O Teatro Mágico tem esse viés.

Sul21: O último álbum do Teatro Mágico foi lançado em 2016, mas vocês lançaram uma música nova no ano passado. Ela é apenas um single ou faz parte de um novo álbum?

Fernando: A gente lançou essa música ano passado, a ‘Quantas mais’, inspirada na história da Marielle [Franco], que era uma companheira amiga nossa, que sempre ia nas apresentações do Rio de Janeiro. E fala um pouco sobre isso. Quantas pessoas mais vão precisar passar por essa violência? Quantas pessoas mais vão precisar sofrer? E ela dizia sempre isso, quantas mais, quantas mais. E a música se chama assim por isso. Então a música diz ‘tuas lutas são presentes’, ‘quantas mais revoltas clamam paz de volta?’. A gente fez um clipe que não trazia esse teor nas imagens porque já estava muito esgotado e tóxico pro país essa notícia, mas ela fala sobre isso.

E faz parte sim de um novo álbum, que a gente pretende lançar agora no segundo semestre ou logo adiante.

Sul21: Como foi para você ver o ‘Teatro Mágico’ aparecer em uma questão do Enem no ano passado?

Fernando: Foi uma baita realização de um sonho, porque eu amo quando o ‘Teatro Mágico’ é levado para dentro da sala de aula, quando o ‘Teatro Mágico’ é colocado nesse universo da educação. É um lugar que eu aprecio muito e foi com grande surpresa que a gente viu isso. Era um domingo eu tava em casa e recebi o recado Não tava entendo nada, quando eu fui ver a pergunta era para comparar a semelhança entre o Teatro Mágico e a ópera alemã do século XIX. E eu falei ‘uou, mas nem eu sei isso’. Liguei para uma amiga minha professora e ela explicou que era justamente essa junção de pluralidades artísticas. Então todo mundo ficou muito feliz, para nós é uma grande conquista.

Em Porto Alegre, o show da turnê ‘Voz, Violão e Circo’ foi marcado pela interação com o plateia. Foto: Day Montenegro/Divulgação

Sul21: Podemos ver por meio das músicas que o ‘Teatro Mágico’ mudou bastante no contexto musical desde o início do grupo. O último álbum, por apresentar uma influência mais pop, se diferencia bastante dos outros álbuns, principalmente do primeiro. Como você define o momento atual do Teatro Mágico?

Fernando: O momento atual é voz e violão. Se você colocar cada álbum um do lado do outro você vai ver que muda a trupe, as texturas, os timbres, as letras. A ideia sempre foi fazer com que cada álbum fosse uma peça de teatro. A nossa única constância é a nossa mutação. A gente nunca foi uma banda, a gente sempre foi uma companhia artística, então tem sempre gente entrando, gente saindo. E essa é a força da pluralidade do TM. O ‘Allehop’ é um álbum inspirado em arranjos com timbres dos anos 80, uma coisa mais dançante e eu adoro esse álbum. E também adoro o ‘Recombinando Atos’ que traz toda aquela coisa mais orgânica do ao vivo, e o ao vivo é aquela potência toda. Então, o atual momento tem sido essa turnê do voz e violão, que a gente vai gravar agora dia 24 de maio um DVD no Sesc Paladium para 1200 pessoas lá em Belo Horizonte, e os ingressos já estão todos esgotados. Tá sendo uma maravilha fazer essa turnê.

Sul21: Atualmente você está realizando os shows ‘Voz, violão e circo’. O que motivou a decisão de realizar esse tipo de apresentação mais acústica, com um ar mais intimista?

Fernando: O próprio público. O público pedia que nós fizéssemos mais saraus. O público queria estar mais próximo. E depois de 13 anos com a trupe sempre em movimento e trazendo coisas novas, já tínhamos sido acústicos, já tinha sido um rock pesado, mais pop, um quebra cabeça; a gente só não tinha sido ainda voz e violão, a gente só não tinha sido a própria essência da canção.

Se olhar momentos das apresentações de voz e violão vai ver que de intimista não tem nada, e nem de introspectivo, é um show com pressão pra cima, com participação do público, visceral. É onde o público está com atenção é na voz, é na palavra, o público participa. Tem momentos que eu faço microfone aberto e as pessoas participam com poesia, com música, com dança. Tem mulher que chega ‘posso pegar o violão?’ e toca uma composição própria. É uma dinâmica muito pra frente e muito bacana.

Sul21: Os fãs podem esperar novos show com o grupo completo?

Fernando: Sim, no segundo semestre a gente terá shows com a trupe completa. No ano passado, nós fizemos uma turnê de 15 anos em BH, Rio de Janeiro, Curitiba, São Paulo, São Bernardo do Campo. A gente fez uma turnê que foi muito bonita, foi muito jóia e um grande sucesso. Quando está todo mundo junto é uma grande explosão e isso a gente não vai abandonar nunca.


Leia também
Compartilhe:  
Assine o sul21
Democracia, diversidade e direitos: invista na produção de reportagens especiais, fotos, vídeos e podcast.
Assine agora