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20 de abril de 2019
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20:26

Rafuagi, grupo gaúcho de hip hop, completa 15 anos com álbum que fala sobre lutas sociais

Por
Sul 21
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Ricky, Dj Croko e Rafa integram o grupo gaúcho de hip hop Rafuagi, que completa 15 anos neste abril. Foto: Bernardo Jiesel/Divulgação

Annie Castro

“Vocês dizem não soltar, mas seguram a mão de quem?”. O questionamento, uma referência à frase que ficou famosa entre a esquerda brasileira após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL), aparece em uma das músicas do novo álbum do grupo gaúcho Rafuagi, que completa 15 anos neste mês e fará uma turnê na Europa entre os dias 19 e 27 de abril.

Lançado na última segunda-feira (15), o novo disco, intitulado ‘Áudio Instrução’, traz em dez músicas o debate sobre militância, lutas sociais e busca conscientizar sobre temas como machismo e violência de gênero, por exemplo. Além das temáticas sociais, a produção colaborativa também é algo que marca as músicas do novo álbum, que conta com a participação de nomes nacionais e internacionais, como o professor e sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, a atriz Denise Fraga, o rapper cearense RAPadura Xique Chico, o cantor Vitin e mais. Em Porto Alegre, o show do ‘Áudio Instrução’ acontece dia 17 de maio, às 19h, no Agulha.

No dia do lançamento do novo álbum na internet, um dos fundadores do grupo, Rafael Diogo dos Santos, mais conhecido como Rafa Rafuagi, conversou com o Sul21 sobre as causas abordadas pelas músicas da nova produção, sobre militância, sobre o papel do hip hop no debate dos problemas sociais, sobre a censura voltada para as artes e sobre a necessidade de uma autocrítica por parte da esquerda brasileira.

O Rafuagi, que surgiu em Esteio, região metropolitana do Rio Grande do Sul, como uma brincadeira de escola entre dois amigos, traz no nome o “contraponto ao estereótipo que se tinha de rafuagi, de subjugar as pessoas ao usar essa expressão como vagabundos”, explica Rafa. Atualmente o grupo é formado pelos músicos Rafa, Ricky e Dj Croko.

Apesar da crítica social estar presente no nome do grupo desde sua criação, o entendimento do que o Rafuagi representava enquanto militância só chegou para Rafa em 2006, quando o grupo ganhou o Prêmio Hutúz, festival de hip hop brasileiro, realizado no Rio de Janeiro. “Foi lá que a gente conseguiu entender de fato qual era o nosso papel na questão da transformação que a gente gostaria. Antes a gente tinha essas letras mais politizadas, mas que era muito mais discurso do que prática. Então, depois o Rafuagi deu uma reviravolta tanto na carreira, quanto no dia a dia”, conta Rafa.

Ao longo dos anos, alguns projetos são destaques na trajetória do Rafuagi, como a mobilização para a aprovação da Lei da Semana do Hip Hop em Esteio, a criação da Casa da Cultura do Hip Hop, um espaço voltado para a comunidade, que recebe shows de artistas nacionais, disponibiliza oficinas sobre hip hop, uma biblioteca, quadras esportivas e um estúdio gratuito para gravações, atendendo mais de quatro mil jovens mensalmente. Outro ponto prático da militância do grupo está na criação da Associação da Cultura do Hip Hop em Esteio, em 2012. A ideia serviu de exemplo para a criação de outras associações no Estado e também no Uruguai. Ainda, Rafa conta que o Rafuagi conseguiu realizar um acordo com o prefeito de Nanterre, na França, para levar jovens do Rio Grande do Sul para a Semana da Juventude, que está acontecendo no local. No momento, o grupo também está preparando uma Universidade Popular dos Movimentos Sociais (UPMS), em parceria com Boaventura.

Fundador do grupo Rafuagi conversou com Sul21 sobre o novo álbum e o cenário atual da esquerda no país . Foto: Guilherme Santos/Sul21

Atualmente, Rafa enxerga a música como “um papel de comunicação”. Para ele, é necessário que os artistas falem de “temas politizados, questões de engajamento social, questões de conscientização, de uma visão periférica”, para que a população possa se conscientizar e somar-se às lutas sociais.

 

Sobre a participação de nomes nacionais e internacionais no novo álbum, Rafa explica que é reflexo de uma preocupação que o grupo sempre teve: usar o alcance que possuem para proporcionar uma maior visibilidade para o trabalho de outros artistas. “O Rafuagi talvez seja o grupo que mais apoiou os artistas locais, tanto na construção das carreiras, quanto na inserção no mercado de shows e no lançamento de músicas. Em 2014, a gente lançou o talvez maior disco de rap do mundo em número de participações. Tinham 63 participações de rappers e DJs aqui do Estado, desde os mais novos, que estavam começando, até os mais velhos”, conta.

O novo álbum também é marcado pela crítica ao contexto em que se encontra a esquerda brasileira e por uma autocrítica dos próprios integrantes do grupo enquanto militantes da esquerda. “A autocrítica que o Mano Brown fez, eu já tinha feito há milhões de anos. Aqui no Estado a gente viu que quando os governos de esquerda estavam com o poder na mão houve um distanciamento de fato da base, não houve contato com a base e muito menos formação para que essa base tivesse condições de emancipação. Eu vi que muitos projetos de esquerda optaram por manter o povo dependente, dependente da informação, do acesso, da parceria, de militar para depois receber. Isso eu vejo que atrasou muito não só o Brasil, mas o nosso Estado como um todo e os municípios”, afirma Rafa.

Confira a entrevista completa abaixo:

Sul21: A crítica social é muito marcante nas músicas da carreira vocês. Esse novo álbum também traz isso?

Rafa: O novo álbum é bem específico nisso porque o nome dele é ‘Áudio Instrução’, o que foi baseado no Manual do Guerrilheiro Urbano Carlos Marighella. E por que eu peguei o manual como referência? Na época, ele fazia alusão ao uso de armas, obviamente o contexto da ditadura militar necessitava de algo mais radical naquele momento, mas eu acho que a educação talvez seja o meio que a gente possa transformar a realidade social do Estado, do Brasil e da América do Sul. O álbum, por ter participação de pessoas de outros lugares, talvez vai conseguir conectar ações e relações de atores e atrizes sociais da América do Sul pra pensar essa nova forma de vida que a gente tá propondo e esse crescimento coletivo que a gente espera.

Sul21: E quais são os temas que vocês abordam nas letras do novo álbum?

Rafa: Cada música é uma temática, então, por exemplo, a música ‘Áudio Instrução’, que o Boaventura participa, fala sobre essas lutas que caminham para um mesmo objetivo, mas que não estão conectadas. Tem uma música chamada ‘Dissconstruir’, que a gente fez uma construção com o termo ‘diss’, que é utilizado no rap como uma indireta para alguém, com construir. A música fala do fim da violência contra a mulher, e como os homens podem estar participando desse movimento enquanto ser humano a se desconstruir e ser melhor. Tem músicas que falam do hip hop escola. A gente tem um projeto que chama ‘Partiu Aula’, por isso a alusão ao hip hop dentro do ambiente escolar. Cada letra é uma temática, mas de vivências que a gente já teve, de lutas que a gente já participou e sonhos que a gente quer fazer.

Sul21: Você mencionou que a música ‘Áudio Instrução’ fala sobre lutas que vão para o mesmo lugar, mas que estão desconectadas. Quais seriam essas lutas?

Rafa: É uma crítica e uma autocrítica enquanto esquerda. Na primeira frase da rima eu falo assim: ‘Quando esse áudio chegar no extremo da cidade com esperança como foi o vira voto Haddad’. Fazendo uma alusão ao que nos trouxe um pouco de esperança naquele final do ano passado, e trazendo mais pros movimentos sociais, muitas vezes de negros, de mulheres, dos LGBTS, do próprio hip hop. Os objetivos são comuns, mas, às vezes, a vaidade atrapalha, a maneira de um é um pouco mais truculenta, a do outro é mais pacífica. Então, é tentar encontrar o meio termo para que essas lutas que têm o mesmo objetivo possam se fortalecer. Essa é talvez a grande sacada dessa música.

‘Tu não vai conseguir transformar o todo se não começar no micro’, diz Rafa. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21: Você mencionou que a sua visão do papel político que o grupo tinha mudou ao longo dos anos. Como você enxerga hoje o papel da música, no caso de vocês do hip hop, em falar de temas sociais?

Rafa: O rap sempre falou dessas questões. Eu lembro que lá em 2013 a galera foi pra rua e falava ‘o gigante acordou’, mas na verdade esse gigante na periferia já estava acordado desde sempre, ele nunca dormiu. Talvez a classe média que tenha adormecido um pouco, a classe alta e a burguesia, mas na periferia ele nunca dormiu. A gente tentava trazer melhorias, mas não tinha condições ou ferramentas de fazer elas, como, por exemplo, internet e outras coisas que facilitaram o meio de quem é músico. Eu vejo que após 2010 houve o grande boom do YouTube e tal, e aí a gente não só conseguiu se adequar nessas novas ferramentas e tecnologias, mas utilizar elas a favor do que a gente achava que era certo, justo e bom. E acabamos vendo na prática, com o passar dos anos, que a maioria das soluções criativas pros problemas do Brasil inteiro emergiam das periferias, as melhores mentes pensantes e ideias estavam vindo de lá.

Acho que a música tem esse papel de comunicação e necessitamos trazer temas politizados, questões de engajamento social, questões de conscientização, de uma visão periférica pro povo pra que a galera tenha condições, não só de se somar a essas lutas,  mas também de fazer essa autocrítica interna de ser, enquanto ser humano e indivíduo, o melhor também. E eu vejo que isso nas nossas músicas está presente por conta da nossa vivência de ser jovem, periférico. Eu, enquanto negro, já passei por uma série de adversidades, então tudo isso somou na construção criativa.

A Casa da Cultura do Hip Hop, idealizada pelo Rafuagi, atende cerca de 4 mil jovens mensalmente. Foto: Divulgação

Sul21: Mais do que a realidade do país, as músicas são um recorte de situações que vocês também vivem ou vivenciaram?

Rafa: É. Eu acredito que enquanto transformador e revolucionários que somos, que, cara, tu não vai conseguir transformar o todo se não começar no micro. Eu acho que as pessoas estão muito preocupadas com o macro, embora a gente saiba a importância do macro, mas de tanto se importar com ele acaba se esquecendo da importância do micro. E é na comunidade que a vida se dá, não é enquanto Federação. Ainda que os problemas da Federação afetem o município. Mas se a gente conseguir transformar do município pra Federação, a coisa caminha diferente. Então eu tenho feito esse movimento: ações micros que reverberam no macro. Um exemplo disso é Nelson Mandela. Ele não fez uma revolução no mundo, fez na África do Sul, mas que serviu de exemplo pro mundo inteiro.

Sul21: Queria voltar um pouco para a ideia da autocrítica da esquerda, que você mencionou anteriormente. Há o debate de a esquerda se afastou da periferia e das camadas mais pobres da sociedade. Como você enxerga esse cenário?

Rafa: O discurso do Mano Brown foi um tapa na cara, né. E ajudou, talvez, alguém a acordar, muitos não gostaram, mas foi necessário ter falado disso. Agora, o que que eu vejo é que quando a gente fala do ‘gigante acordou’, mas que na periferia ele não tinha dormido, é que o rap sempre denunciou o que a galera só lá em 2013 acordou pra falar ou teve coragem de falar. Mas o rap sempre denunciou as problemáticas, mas uma coisa que eu acho que ele não fez foi não só apontar o problema, mas apontar uma solução, e eu acho que essa é grande diferença. Eu entendi que se eu apontasse somente os problemas, a gente não ia conseguir sair de onde a gente tava. Então começamos a apontar soluções e eu acho que ali foi a grande guinada que a gente conseguiu dar para poder ter um novo horizonte.

Nós somos militantes, somos da esquerda, apoiamos o projeto, mas tem uma série de questões. Essa autocrítica que o Mano Brown fez eu já tinha feito há milhões de anos, só que eu não sou o Mano Brown e daí a minha crítica não teve a repercussão que a dele teve. Aqui no Estado a gente viu que quando os governos de esquerda estavam com o poder na mão houve um distanciamento de fato da base, não houve contato com a base e muito menos formação para que essa base tivesse condições de emancipação. Eu vi que muitos projetos de esquerda optaram por manter o povo dependente, dependente da informação, do acesso, da parceria, de militar para depois receber. Isso eu vejo que atrasou muito não só o Brasil, mas o nosso Estado como um todo e os municípios.

O grupo ira realizar uma turnê na Europa entre 19 entre os dias 19 e 27 de abril. Foto: Bernardo Jiesel/Divulgação

Sul21: Estamos vendo crescer uma censura voltada para a arte. Como você enxerga a importância de falar sobre os temas que vocês abordam nas suas músicas dentro desse cenário?

Rafa: Eu vejo que o rap já sofreu muita censura também. E aí eu tento fazer essa autocrítica e não é por mal. Quando o rap foi censurado, marginalizado, criminalizado, não houve uma manifestação da classe artística para defender o rap e pra estar lá dizendo que ‘o rap faz uma grande diferença nas comunidades, é aliado e chega em lugares onde muitas vezes os governos e o sistema não chegam’ da mesma maneira que eu vi uma grande comoção da classe artística e da sociedade como um todo, na sua grande maioria branca, quando houve a censura da exposição [Queermuseu]. Há uma seletividade nas comoções. Assim como houve, por exemplo, uma grande comoção com Brumadinho, mas não houve comoção nenhuma em Moçambique. Isso prejudica muito porque todos somos alvos, independente de se é o rap de periferia, se é da burguesia, se a exposição vai estar no Santander ou vai estar na Casa do Hip Hop, mas é a arte num todo.

Quando eu lancei [o documentário] ‘Manifesto dos Porongos’ em 2016, nossa grande preocupação era contar a verdade e através dela abrir a cabeça das pessoas. Quando a gente lançou, não sofremos censura, mas recebemos três ameaças de morte. E eu não vi nenhuma comoção das pessoas quando um jovem negro que estava tentando uma revisão histórica do Rio Grande do Sul foi ameaçado por pessoas que eram gaúchos ferrenhos, que diziam que a gente estava mentindo. A nossa primeira preocupação foi se munir de informação para poder ter argumentos, porque não gostaríamos de falar algo e perceber que estávamos mentindo. Se fosse assim, estaríamos fazendo o que eles fizeram, que é mentir sobre Bento Gonçalves, Duque de Caxias e etc. Esses caras são glorificados enquanto temos Marielles, Evaldos, Amarildos morrendo, e eles não viram nome de rua. Nisso a gente vê que se existisse uma união da classe artística essa mensagem tinha chegado mais longe e essas pessoas que atentaram contra a gente não teriam cometido isso.

A gente vê muitos corte de verbas para a cultura, e acaba que todo mundo tem que se dar as mãos e ninguém pode largar a mão de ninguém. Tenho uma frase que fala ‘vocês dizem não soltar, mas seguram a mão de quem?’, que é justamente essa crítica para esse movimento que diz ‘ninguém larga a mão de ninguém’, mas pô, lá na periferia não tem ninguém segurando a mão de ninguém, não tem ninguém lá com o pé no barro na vila dando a mão e tentando fazer alguma coisa, esse movimento se dá na grande metrópole, de dá nos centros, na classe média branca. Ele não chega em quem de fato está sofrendo diretamente as atrocidades, por exemplo, do governo Bolsonaro, e de qualquer outro sistema municipário.

Sul21: E qual a expectativa de vocês com o lançamento do novo álbum?

Rafa: Eu tô bem ansioso porque o nosso último disco foi em 2014. Um dos fatores da gente ter entrado nesse hiato foi a depressão. Em 2016 eu fui assaltado. Estava com uma mochila e ali tava meu computador e meu HD, então eu estava com tudo que eu tinha da minha carreira na mochila. Naquela época obviamente não usávamos a nuvem ainda. Tem músicas que a gente não canta hoje porque eu não tenho mais o instrumental, que estava naquele HD. Começamos do zero em 2016, e as pessoas não sabem disso. Muita gente cobrou da gente que tínhamos que lançar, que fazer mais coisas, mas ninguém sabe desses processos internos que acontecem.

Esse disco por exemplo já era pra ter saído bem antes. Mas ele representa muito no sentido em que a gente sempre teve problemas para lançar discos. Esse disco representa isso: nós somos o que somos neste exato momento, as lutas são nossas lutas agora, as desconstruções são o processo. É a nossa verdade atual de vida.


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