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24 de março de 2019
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18:00

Poetas Vivos: usando poemas como armas para salvar vidas

Por
Luís Gomes
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Natália Pagot e Barth Vieira fazem parte do coletivo Poetas Vivos, que nasceu em Porto Alegre e hoje atua em diversos estados do Brasil | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Luís Eduardo Gomes

*Real Idade
Qual é a idade certa para descobrir que sua mãe apanha do marido até cair?
Afinal o que é real?
Gastar 300 contos na balada
ou tomar atraque gratuito do policial?
Umas catando latinha
outras tomando Clericot com as amiguinhas

É uma poesia que fala das vivências, das aflições do povo negro, da vida nas periferias. É uma poesia que também é luta, contra o racismo, contra a violência policial, contra as políticas defendidas e representadas no governo Bolsonaro. É Poetas Vivos. Um coletivo cultural que surgiu em Porto Alegre no início de 2018 e hoje já conta com mais de 30 artistas que realizam performances e intervenções culturais no Rio Grande do Sul, Bahia, Acre, Rio de Janeiro e em processo de expansão para outros estados. Podem ser vistos em escolas, em apresentações de ruas e também manifestações, como a que ocorreu em Porto Alegre no último dia 14 de março para marcar o primeiro aniversário da execução de Marielle Franco e Anderson Gomes.

*E nessa onda de mudar a realidade
tem preta entrando na universidade
é minha filha!!!!
não quer ser preta porrada?
com diploma e boa de fala

Então luta, não surta
sua puta
pura pretura
sem penúria
Enfrente

Barth Vieira, 23 anos, tinha 11 anos quando começou a fazer poesia, incentivado por uma professora da 5ª série da escola Anísio Teixeira, no bairro Hípica, em Porto Alegre. “Ela viu nos meus textos que eu tinha capacidade para escrever e me incentivou”, diz.

Ele caracteriza sua poesia como um desabafo, sobre a luta, a resistência e o revide da população negra. Muitas vezes, a inspiração para os poemas vem de “momentos simples” de sua vida. “Nem sempre a poesia surge de vez. Tem versos que escrevo, fica guardado lá e só depois eu vejo que encaixa em outra coisa e se forma a poesia. Mas também tem muito disso, acontece um fato ruim, a revolta bate, sobe o sangue e a nossa forma de combater isso é escrevendo”.

Para ele, a poesia é um instrumento para salvar vidas, a dele a de outros. “Eu tive muitos momentos na minha vida que podiam me levar para o caminho errado. Muitas influências. A poesia é uma forma de escapar disso, eu me salvar e salvar outras pessoas que também só tinham a mesma visão que eu lá onde vivo e me criei. Eu falo na minha poesia que quero salvar vidas, principalmente os mais novos, para perceberem que existe outro caminho, mesmo vindo lá da onde a gente vem, no extremo sul [de Porto Alegre], que é ruim mesmo. Para acabar com essa fita de que o traficante é o cara que as crianças querem ser, porque ele tem uma corrente de ouro, porque ele tem um tênis mais bonito. Para mim, [fazer poesia] é lutar para que a gente seja o exemplo deles, seja referência”.

Natural de Bento Gonçalves, na Serra gaúcha, Natália Pagot, 24 anos, conta que, recentemente, visitaram uma escola que pouco tempo antes tinha registrado um caso de suicídio de um aluno. Ao chegarem no local, encontraram pessoas emocionadas. Por um lado tristes, com a perda, mas também em um momento de alegria, pois era um exemplo para daquele aluno e, ao fazerem sua arte, também as ajudavam a lidar com a dor e o sofrimento.

“Hoje em dia, a população negra não está só morrendo de tiro, de overdose, de fome e nem falta de saúde, a gente está morrendo de falta de amor. Estão acontecendo muitos suicídios. No início desse ano, teve um jovem que é do movimento que acabou também tirando a vida. Então, ao mesmo tempo que a gente faz poesia combativa, no sentido de combater o sistema, eu falo de depressão na mesma poesia”, diz Natália.

Para ela, a poesia e a escrita já representavam um espaço de “auto-cura” e “auto-cuidado” desde cedo.  “Eu não consigo fazer poesia para os outros. Meu processo criativo vem muito de eu estar revoltada, angustiada, e é a minha válvula de escape. É assim desde que eu sou criança”.

Natália conta que, inicialmente, guardava para si os poemas que escrevia. A confiança para começar a mostrar aos outros e entender que isso poderia ser de fato um trabalho veio após ingressar no movimento negro na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde estuda Ciências Biológicas desde 2013, especialmente a partir das ocupações da Reitoria em 2016 e 2018. Intelectualidades negras ficaram reunidas no mesmo espaço durante uma semana. Aí a gente foi começando a ter trocas culturais. Nisso me disseram que estava rolando um Slam”.

*Estamos em todas as linhas de frente
não pararemos,
mulheres, de cabeça erguida
nada de sermos atendentes
como referência bibliográfica,
mudamos a lógica trágica.

Tiramos os menor da biqueira
botamos todos a recitar
no maior clima de brincadeira.

Felipe Deds e Agnes Mariá, os fundadores do Poetas Vivos | Foto: Reprodução/Facebook

A origem no Slam

A cultura do Slam, competição de poesia falada, surgiu nos guetos dos Estados Unidos na década de 1980. No Brasil, chegou tarde, no início dos anos 2010, em Brasília. Nos últimos anos, Porto Alegre tem sido palco de diversas dessas competições de poesias. Os criadores do Poetas Vivos, Felipe Deds e Agnes Mariá, são oriundos da cultura do Slam. Em maio de 2018, eles conquistaram um torneio nacional, em São Paulo.

Depois de também se destacarem em competições realizadas em Porto Alegre, Natália e Barth foram convidados para participar do Poetas Vivos em 2018. Ela conta que, no primeiro momento, apenas observava, mas posteriormente passou também a competir. Em 2017, se classificou para a final regional do Slam Rio Grande do Sul. “Nisso acabei entrando para a poesia, me integrando ao ambiente dos poetas”.

Porto Alegre conta atualmente com um calendário de torneios de poesia, com uma parte deles sendo realizados na região central da cidade e outras em bairros periféricos. Barth diz que a questão geográfica produz diferenças nas poesias apresentadas. “Nos slams da zona central, eu trago a realidade lá de onde eu moro para cá, porque eles não vivem, não conhecem, não põe o pé lá. Também tem os slams da quebrada, que aí o pessoal cola lá e vê a realidade de perto”, diz.

*E na rima crescente
damos voz aos descendentes
vamos conquistando todos ambientes
para tornamos não mais as sobreviventes
mas agentes
que com mandinga, ginga
buscamos a força da rainha Nzinga
para lutar nesse Porto
que já foi mais Alegre

feche seus olhos e reze.

Ele destaca que as competições realizadas na periferia também cumprem o papel de dar oportunidade para jovens que, em muitos casos, sequer tem recursos para pagar a passagem de ônibus para acompanhar eventos no Centro. “Muitas vezes as pessoas da quebrada querem colar, mas não tem a grana pro passe. Eu acho importante para a gente espalhar de uma maneira diferente. Se não fosse o Slam, a gente nem teria se conhecido [os Poetas Vivos], para a começar. Eu não teria a oportunidade de chegar numa zona central e recitar a minha poesia sem apanhar da polícia”, afirma.

Atualmente, há uma rede empresas e organizações, como o Sesc, que apoiam a cultura do Slam, seja dando visibilidade ou com o financiamento de premiações e de viagens de competidores. “Eu tive a oportunidade de andar de avião pela primeira vez com 22 anos, no ano passado, indo para a competição nacional de Slam. São oportunidades que o Slam está dando”, diz Barth.

Natália aponta ainda outro fator positivo nesse movimento cultural, o de propiciar uma opção cultural para crianças e jovens que têm poucas opções de lazer. “Uma tarde que um moleque passa no Slam da Tinga, no Slam da Bonja, no Slam da Beira, que vai rolar agora na zona sul também, em Alvorada, qualquer um, são quatro ou cinco horas que esse moleque não está envolvido com nada, não tem ninguém aliciando ele, não está em uma zona de conflito, não está em situação de vulnerabilidade. Querendo ou não, os poetas estão fazendo o papel do Estado pela cultura”, afirma.

**Eu vou contar uma história…

Era mais um negãozinho das perna fina
Mas esse já tinha but de mil e as prata fina
Tinha tudo o que queria
Dinheiro, poder e no bolso outras fita
E que fita,
Se eu conto ninguém acredita
Com menos de 2 patos na Lagoa ainda
Tinha um ferro na cinta e o celular, mas ninguém liga
Só que ele também não liga, porque agora ele tem notas
E tudo que hoje em dia importa são notas
Não tinha mais família então ele quer notas
Queria tantas notas que se afogou nas notas

Barth e Natália atualmente fazem as apresentações do coletivo no Rio Grande do Sul | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Promoção da cultura negra

Natália classifica o Poetas Vivos como uma iniciativa cultural que visa promover a cultura urbana, popular e negra, mas também destaca que o coletivo tem o objetivo de gerar renda para poetas negros. Para isso, participam de trabalhos em escolas — não cobram a participação em escolas públicas –, centros de juventude, vendem livros com suas poesias e com uma marca criada para vender uma linha própria de produtos, como peças de vestuário.

Nas visitas às escolas, além de apresentarem a arte para as crianças, também cumprem o papel de mostrar a elas que é possível seguir o mesmo caminho. Barth conta que já ocorreu de jovens entrarem em contato com ele nas redes sociais para dizer que inspiravam nele. “Antes de eu ir para São Paulo, no ano passado, veio um gurizinho no Instagram me chamar: ‘Bah, eu sou muito teu fã, quando crescer quero ser que ninguém tu’. Aquilo ali me quebrou as pernas. É uma fita que eu agradeço por ter tido essa oportunidade e por estar dando essa oportunidade, principalmente para as crianças”, diz.

Natália destaca ainda que poesia pode ser utilizada como instrumento de comunicação, para ajudar a levar a informação sobre o que acontece na periferia e que os meios de comunicação tradicional não mostram. Para isso, muitos poetas estão utilizando indicadores sociais e de violência em seus trabalhos.

**Sem dó os inimigos deram ré
Mi disseram que ele até tentou dar no pé
Mas fa..lhou na missão
Não vai ver mais o sol nascer no mundão
Naquela hora lá nem importava os but de mil que é estouro
Porque tinha sangue, dor e choro… ele si foi

Nem contrariou as estatísticas
Mas como iria, se sem conhecer o amor
Já enfrentava ódio, dor e ira

No dia em que conversou com a reportagem, a Polícia Militar do Rio de Janeiro fazia uma operação na favela Cidade de Deus, onde parte do grupo está hospedada e onde Natália e Barth também estavam por um mês quando passaram pelo Rio. “Eles estão atirando de helicóptero nas pessoas, na TV não falam nada. Os amigos nossos estão lá. Enquanto eu estava esperando, com essa angústia, comecei a escrever sobre isso. Para mim, é bem ‘vômito’ de coisas que me afligem”.

Natália diz que prefere evitar rótulos sobre o que o grupo faz. “Muita gente fala de poesia combativa, poesia marginal, eu diria que é poesia. Machado de Assis e Fernando Pessoa falavam de todas essas coisas fazendo poesia. Nossa busca é salvar vidas mesmo, levar cultural, levantar a auto-estima das pessoas negras, oferecer uma caneta quando derem um fuzil. É isso, poesia”.

Ela prefere falar em revolução, por ser uma palavra que tem várias outras dentro dela. Uma revolução que começou pela vida deles. “A gente está basicamente saindo do nada. Do negativo. Cinco pé rápados que estavam em São Paulo em dezembro, em janeiro a gente estava no Rio. A gente nunca imaginou que andando na Andradas e fazendo poesia a gente conseguiria e a gente conseguiu. Fomos em diversas escolas, em diversos espaços, a gente faz ação, não estamos só reclamando. A gente age da nossa forma, com as nossas palavras, nós vai, nós vem, não interessa. A mensagem está sendo levada. A gente está fazendo amor, está fazendo ação e revolução também. Estamos usando uma arma que não mata, que salva vidas”.

**No outro dia é crítica “ele merecia” 
O que ele merecia era perspectiva de vida
E ninguém deu
Agora mais um Nelson sem a oportunidade de se tornar Mandela morreu
Fodeu
Olha quantos desses ainda tão ganhando a vida gritando perdeu
E agora o azar é teu
Porque os bens materiais são seus e não meus
Irmão, eu já disse e vou repetir pra quem ouviu e não entendeu, se eu não tirar pelo menos um menor do crime, essa porra não valeu
Porque podia ser eu
Agora tu imagina, eu lá, altas horas da matina
Gritando: vai passa a bolsa, celular e o dinheiro tia
Ah tu não aguentaria e ninguém aguentaria
Por isso eu resolvi salvar vidas
Agora é eu tentando salvar as criatura q o sistema não atura depois que cria
Mas eu não desisto, ponho verdade e sentimento toda vez q eu recito
E é pelos meus e pelas minhas que eu grito: É O TERRORISMO LÍRICO RESISTINDO!!!

POETAS VIVOS

§§§§

*Trechos de poema de autoria de Natália Pagot
**Trechos de poema de autoria de Barth Vieira


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