Geral
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31 de março de 2019
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16:49

Filho de Jango repudia celebração de 1964: ‘Projeto de nação ainda os assusta’

Por
Sul 21
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João Vicente: ‘O problema para que gosta de atirar com armas é não fazê-lo com o cano sujo, pois o tiro pode sair pela culatra’. Foto: Geraldo Magela/Agência
Senado

Por Vitor Nuzzi
Da RBA

A determinação do governo de “celebrar” o golpe dado há 55 anos não surpreende o filho do principal personagem daquele período, o ex-presidente João Goulart, o Jango, que teve o mandato constitucional interrompido e morreu no exílio, em 1976. “Não esperávamos outra coisa de um presidente que que durante toda sua vida nada mais fez do que pregar o ódio e praticar o aprofundamento divisional da diversidade ideológica, política e comportamental da uma sociedade como a brasileira”, diz João Vicente, filho mais velho do ex-presidente.

Ele tinha 7 anos em 31 de março de 1964. Em seu livro de memórias, lançado em 2016, conta estava em Brasília com a mãe, Maria Thereza, e a irmã, Denise, enquanto Jango se encontrava no Rio de Janeiro. No dia seguinte, a família viajou às pressas para o Rio Grande do Sul.

“Lembro-me de que não foi possível levar alguns dos brinquedos que queríamos, como sempre fazíamos nas viagens ao Rio, a Porto Alegre ou a São Borja. Levávamos tudo o que queríamos, mas nessa viagem, não. Parecia uma viagem diferente. E seria diferente para sempre”, escreveu.

Para João, a postura de Jair Bolsonaro tem um viés positivo: “Nada mais mostra o medo que o projeto de nação proposto por Jango ainda subsiste nos pesadelos da casta militar. Isto nos mostra cada vez mais que Jango vive! E com ele, os anseios da construção do nacional-desenvolvimentismo”.

Candidato à Presidência da República em 2018 pelo PPL – que acaba de se incorporar ao PCdoB –, ele acredita que é momento de pensar em uma ampla frente política. “De todos aqueles que repudiam o fascismo, o totalitarismo, de todos os democratas, de esquerda ou direita que respeitam as divergências ideológicas, mas que sabem que só a verdadeira democracia pode avançar, construindo um caminho onde soluções de desenvolvimento possam ser alcançadas com a participação de várias correntes políticas.”

RBA: Como filho do presidente deposto em 1964, como o senhor recebeu a determinação do atual presidente de “comemorar” a data no próximo fim de semana?

João Vicente: Na verdade, não nos surpreendeu em nada. Não esperávamos outra coisa de um presidente que durante toda sua vida nada mais fez do que pregar o ódio e praticar o aprofundamento divisional da diversidade ideológica, política e comportamental da uma sociedade como a brasileira que, evidentemente, como outras tem na formação na sua origem civilizatória, diferentes matizes culturais e éticos na construção de nossa brasilidade.

RBA: Considera-se pessoalmente ofendido por essa postura?

João Vicente: Não. Depois de 55 anos do golpe de Estado de 1964, depois de 21 anos de opressão, censura e manipulação da mídia através de tratativas não só da obsessão da perseguição, cassação, e prisões de políticos e jornalistas que não podiam falar sobre liberdade, democracia e justiça social, e ainda hoje, esta postura do Bolsonaro nada mais mostra o medo que o projeto de nação proposto por Jango ainda subsiste nos pesadelos da casta militar. Isto nos mostra cada vez mais que Jango vive! E com ele, os anseios da construção do nacional-desenvolvimentismo.

RBA: O Ministério Público Federal recomendou aos comandos militares que evitem celebrações. O sr. acha suficiente?

João Vicente: É uma grande atitude dos instrumentos democráticos, mas o mais importante é que a ordem de comemoração de um período por eles instalado, onde se matou dentro dos quartéis, se torturou, se praticaram torturas dentro dos quartéis, onde desapareceram pessoas sobre a tutela do Estado, onde se cassaram mandatos eletivos, onde se fechou o Congresso Nacional pela força das baionetas, está criando uma consciência novamente de resistência, e isto é bom. Está na hora de pensarmos em uma grande frente política, de todos aqueles que repudiam o fascismo, o totalitarismo, de todos os democratas, de esquerda ou direita que respeitam as divergências ideológicas, mas que sabem que só a verdadeira democracia pode avançar, construindo um caminho onde soluções de desenvolvimento possam ser alcançadas com a participação de várias correntes políticas.

RBA: O senhor acredita que é uma bravata, ou algo dessa natureza, ou uma estratégia para desviar atenção sobre assuntos de interesse do governo?

João Vicente: O problema é que o presidente Bolsonaro ainda está em campanha, não se deu conta que já assumiu a Presidência da República e hoje é presidente de todos os brasileiros. Sua lógica é a perseguição constante a todos os adversários, que para ele são inimigos. Sua lógica é sempre embaixo do travesseiro ter uma arma, engatilhada pelas dúvidas que apareça um inimigo dentro de seu quarto no Palácio da Alvorada. Por isso acredita piamente em suas bravatas. O problema para quem gosta de atirar com armas é não fazê-lo com o cano sujo, pois o tiro pode sair pela culatra.

RBA: A Comissão Nacional da Verdade fez várias recomendações que até hoje não foram seguidas. O Brasil, diferente de países vizinhos, segue tendo dificuldades de fazer o resgate da memória daquele período. Por quê?

João Vicente: Na verdade, tivemos no país uma auto-anistia. Isto foi muito debatido na Comissão da Verdade e em outras associações de perseguidos e desaparecidos políticos, que continuam a lutar para que em algum momento possa-se ajustar estas deficiências da lei, e incluir cláusulas de direito internacional que não podem faltar em nenhum país que preze e defenda os direitos humanos, como a “imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade”, assim como a condução da investigação de crimes praticados por agentes do Estado, não estejam incluídos nesta “anistia”.

A condução da investigação criminal deve ser feita por um juiz e não por procuradores do MPF, pois a dificuldade de agir em outros países é imensa. E muitas vezes os crimes cometidos eram internacionais. A Operação Condor é um exemplo. Há três anos, o Ministério da Justiça brasileiro solicitou ao Itamaraty que enviasse o pedido aos Estados Unidos, através de Departamento de Estado, a oitiva dos agentes sob proteção, que foram citados na investigação da morte de Jango, e até hoje apesar de já ter sido entregue pelo embaixador brasileiro em Washington, o governo americano sequer deu resposta ao governo brasileiro. Para que, se eles já compraram nossa soberania? Receberam agora, na visita de Bolsonaro a Trump, a escritura quitada.

RBA: Passados apenas três meses, o governo enfrenta desgaste e queda da popularidade. O sr. acredita que consegue se manter? 

João Vicente:  Cair 15% em três meses é, sem dúvida, um precipício vertiginoso. Mas para quem tem guru de cabeceira, e o mesmo vaticinando que seguindo assim em seis meses estaria liquidado o governo, é bom termos atenção no movimento do tabuleiro. Para quem não presta atenção, o xeque-mate pastor é bem possível.

RBA: Mourão é uma opção?

João Vicente: Democraticamente ele é o vice-presidente. A evolução do quadro político é de fundamental interesse para as oposições, pois temos que fortalecer as opções de luta e analisarmos as correlações de força. Sabemos que ele está longe de ser um Lott, mas quem sabe, todos algum dia evoluímos. Ele deve saber que o golpe não foi para colocar um freio no comunismo. Foram cassados quase 7 mil militares nacionalistas que apoiavam as reformas nacionalistas de 1964. Tem muito militar que não quer bater continência e pedir licença para entrar na Base de Alcântara, dentro de nosso território, para militares americanos

RBA: A democracia está sob ameaça?

João Vicente: Ela não está sob ameaça nos moldes pelos quais o conceito democrático nos é expressado pelo dicionário. Ela já foi corroída, e suas instituições, sem o menor pudor se locupletaram dela, desta democracia, para atrapalhá-la, para subvertê-la, e submetê-la à tutela da “interpretação” constitucional, pelo Judiciário de uma forma política interpretando leis com novos conceitos moldados ao momento político, assim como pelo legislativo através do acesso a ele pelo volumem de recursos aplicados na obtenção de mandatos, transformando a representação do exercício parlamentar a serviço de empresas e não dos interesses populares, e no executivo favorecendo subsídios, vantagens, e outras benesses econômicas que colocam e drenam pelo ralo recursos que deveriam ser canalizados para educação, saúde pública, segurança, moradia e outras reformas estruturais necessárias ao desenvolvimento do povo brasileiro.

RBA: Nos últimos dias, houve uma reunião entre o governador Flávio Dino (PCdoB), o ex-prefeito Fernando Haddad (PT), o ex-governador Ricardo Coutinho (PSB), o ex-candidato Guilherme Boulos e sua vice, Sonia Guajajara (Psol), para discutir ações comuns. A oposição tem condições de organizar resistência e de se articular para apresentar projetos alternativos? 

João Vicente: Temos sim, desde que não coloquemos os cavalos à frente da diligência que trasportará nosso povo à redenção.


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