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24 de março de 2019
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13:02

Criado durante a ditadura militar, grupo de teatro lança financiamento coletivo para manter espaço de apresentações

Por
Sul 21
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A Terreira da Tribo é espaço de apresentações e realizações de oficinas de teatro popular. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Annie Castro 

Em outubro de 2018, no Largo Glênio Peres, em frente ao Mercado Público de Porto Alegre, um grupo teatral participou de uma performance que mostrava pessoas ensanguentadas, presas a paus de araras, com sacos de lixos na cabeça ou sendo “afogadas” em baldes de água. O espetáculo tentava alertar a população para os riscos do autoritarismo. Dois meses depois, o mesmo grupo utilizou a Esquina Democrática como palco para uma intervenção urbana que relembrava os desaparecidos da ditadura militar no Brasil. As apresentações recentes mostram a união da arte com as questões políticas presentes nas sociedades, característica que permeia há quase 41 anos a carreira do grupo teatral Ói Nóis Aqui Traveiz, que precisou recentemente criar um financiamento coletivo para conseguir manter o seu espaço de apresentações, criações e oficinas gratuitas, que são abertas ao público.

Foi no Brasil de 1977 que o Ói Nóis surgiu. Em meio ao de período de rearticulação dos movimentos sociais durante a ditadura militar, dez jovens artistas se reuniram para criar em Porto Alegre um grupo teatral que criasse espetáculos que além da esteticamente interessantes, também abordassem temas sociais. ‘Nós falávamos que queríamos fazer um teatro de combate’, conta o ator Paulo Flores, que participou desde o início do processo de criação do Ói Nóis.

O ator Paulo Flores participa do Grupo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz desde o início. Foto: Guilherme Santos/Sul21

 

Após alguns meses de organização, em 31 de março de 1978 o grupo apresentou suas duas primeiras peças, em um espaço na Rua Ramiro Barcelos, que foi alugado pelos atores e nomeado de Teatro Ói Nóis Aqui Traveiz. Segundo Paulo, a data para a estreia do grupo foi escolhida a dedo: “Como o golpe foi em primeiro de abril, e é considerado dia do bobo, eles mudaram a comemoração para 31 de março. Então a gente escolheu essa data como uma forma sarcástica de ridicularizar a questão”. As primeiras apresentações exibidas ao público possuíam uma linguagem surrealista e abordavam temas do mundo capitalista, como especulação imobiliária e a medicina voltada para o dinheiro e não para o tratamento humano.

No espaço alugado na Ramiro, o grupo já começava a trazer para as produções uma ideia que marca seus trabalhos até hoje: o teatro de vivência. Segundo Paulo, nesse tipo de espetáculo o espectador está integrado à cena que acontece na peça e percorre os diferentes ambientes cênicos. “Era algo completamente inovador em Porto Alegre naquele momento. E pela sua radicalidade no sentido de linguagem, tivemos um grande impacto aqui, já que era uma cidade provinciana e bem conservadora”, conta Paulo.

Em dezembro de 2018, Ói Nóis Aqui Traveiz realizou a performance para lembrar dos desaparecidos da ditadura militar. Foto: Joana Berwanger/Sul21

Porém, não foi somente no teatro de vivência que o Ói Nóis inovou. O grupo também é considerado um dos pioneiros do teatro de rua no Brasil, pois foi um dos primeiros a trabalhar com apresentações em locais públicos. “Dá pra dizer que Ói Nóis Aqui Traveiz é um divisor de águas do teatro gaúcho porque a partir da nossa experiência surgiram vários grupos também com linguagem inovadoras”, afirma Paulo. Assim, além dos espetáculos apresentados na Ramiro, a trupe de atuadores também fazia apresentações em praças e parques da Capital. Em função do caráter político das peças e da ligação que o grupo tinha com movimentos sociais, o Ói Nóis acabou sendo alvo de alguns episódios de repressão.

Censurados pela ditadura militar

“No início da década de 80, começamos também a levar nosso teatro para as ruas. No início de uma maneira difícil, ainda com repressão”, lembra Paulo. Associado aos movimentos populares da época, principalmente ao ecológico, que ganhava fortalecimento na capital, o Ói Nóis começou a realizar intervenções cênicas durante os protestos que ocorriam na cidade. Uma das atividades eram cortejos antes do início da manifestação, por exemplo. “Logo no início elas foram duramente reprimidas. Até amenizar esse período repressivo, fizemos algumas intervenções cênicas. Por volta de 1983, quando a gente vê que vai para a rua e consegue fazer o trabalho sem interferência da polícia, aí começa uma preocupação maior com elaboração da cena para a rua, e que começa realmente o nosso teatro, com a montagem de encenações que vem até os dias de hoje”, conta Paulo.

O ator Paulo durante intervenção cênica que alertava para o risco do autoritarismo, em Porto Alegre. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Além das repressões durante as manifestações, o grupo também teve o seu teatro fechado e uma peça censurada. Nos primeiros dias de maio, pouco mais de um mês após a estreia do grupo, o espaço na Ramiro foi interditado pela polícia. A batalha jurídica durou alguns meses, e o Ói Nóis conseguiu reabrir no teatro no segundo semestre daquele ano.

Na época, as peças artísticas precisavam passar por órgãos do governo que avaliariam se ela seria censurada ou poderia ser mostrada para o público. Paulo lembra que além de mandar o texto para a Divisão de Censura do Departamento de Polícia Federal, os censores também assistiam às peças antes da estreia oficial. Nesse contexto, em 1980 o grupo teve um espetáculo que falava sobre a luta armada no Brasil, intitulado ‘O Amargo Santo da Purificação’, censurado. Anos depois, a peça foi liberada judicialmente, mas nunca foi apresentada. Entretanto, o título foi reutilizado pelo grupo nos anos 2000 para uma apresentação sobre a história de Carlos Marighella.

Financiamento coletivo para salvar a Terreira da Tribo

O primeiro espaço próprio do grupo foi uma antiga boate na Ramiro Barcelos, alugada especialmente para realizar as peças produzidas. Ter um local próprio e não precisar depender das salas convencionais de teatro da cidade era uma das preocupações dos artistas. “Não queríamos essa divisão entre palco plateia. Houve essa preocupação do grupo de à duras penas pagar um aluguel para ter mais liberdade para sua criação, para esse trabalho de investigação teatral”, conta Paulo.

Após a interdição, por volta de 1984, o grupo alugou um novo espaço na Rua José do Patrocínio, onde realizou seus espetáculos e atividades por 15 anos. Ali, nasceu a Terreira da Tribo. “Nos chamamos Grupo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveis, então né, a Terreira da Tribo dos atuadores”, explica Paulo. O motivo da mudança desse local foi o grande aumento no aluguel e do interesse do proprietário em vender o imóvel. Paulo conta que na época houve uma grande mobilização da população para que o grupo não saísse dali. “A gente começou uma campanha pública de preservação da Terreira e era época do orçamento participativo, onde por diversos anos fomos prioridade do orçamento. Só que o governo não teve vontade política de fazer. Tínhamos milhares de assinaturas, moção da Câmara de Vereadores, e não adiantou”, lembra Paulo. O novo endereço passou a ser a rua João Inácio, onde o grupo ficou por dez anos, até reviver a situação anterior.

Atual espaço da Terreira da Tribo conta com uma exposição em comemoração ao aniversário de 41 anos do grupo. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Enquanto essas mudanças precisavam acontecer, em 2016 o grupo conseguiu um terreno da Prefeitura de Porto Alegre, ainda no mandato de José Fortunati, para a construção do Centro Cultural Terreira da Tribo. O espaço seria construído na esquina da Rua João Alfredo com a Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto e teria galpão cênico, sala de convivência, camarins, cafeteria, biblioteca e outras tantas salas. A previsão era que a obra ficasse pronta até 2017, porém, atualmente só existem as fundações da construção no local. Paulo explica que como o projeto era uma parceria da Prefeitura com o Ministério da Cultura, era preciso que as novas gestões dessem continuidade a ele. “Passou todos esses anos e perderam o dinheiro. Sei que 1 milhão e 400 reais voltaram. Tá lá o terreno da Prefeitura, que todo mundo sabe, a cidade inteira sabe que aquele terreno é para construir a Terreira da Tribo”, afirma o artista.

Assim, ao sair da Rua José Inácio, a Terreira da Tribo foi parar no seu endereço atual: um extenso galpão na Rua Santos Dumont, no Bairro São Geraldo. Ali, o espaço é móvel, e a cada nova encenação o grupo monta os cenários como precisar. Há também um camarim improvisado e uma sala com araras de roupas, onde ficam as vestimentas dos espetáculos.

O espaço da Terreira também abriga as vestimentas de espetáculos que o grupo está apresentando. Foto: Guilherme Santos/Sul21

A Terreira da Tribo não serve somente para a apresentação dos espetáculos do grupo, mas também funciona como uma escola de teatro popular. Uma das modalidades de oficinas gratuitas oferecidas pelo grupo é de formação para atores, que dura dois anos, com aulas diárias. “Muitos atores da cidade passaram pela terreira”, afirma Paulo. Além dessa, há também propostas com uma menor duração, como a oficina de teatro livre, que é uma aula aberta durante os sábados à tarde. Nas quartas-feiras, acontece ainda a um curso para os moradores do bairro São Geraldo, mas que também recebe participantes de outros locais.

Algumas vezes, os cursos também acontecem fora da Terreira. Paulo conta que há anos o grupo atua em regiões periféricas da cidade, oferecendo as aulas de teatro para as comunidades da Restinga, Humaitá, Sarandi e da Bom Jesus. “Esse projeto já passou por diversos bairros, tem uns que ele passa a ter uma importância e aí ficamos anos e anos trabalhando naquele bairro”, conta o artista. Quando as oficinas acontecem fora da Terreira, geralmente são realizadas nas associações de moradores desses locais ou, como acontecia na Vila Pinto, no centro de reciclagem.

Atualmente o grupo de atuadores enfrenta outra vez um cenário já conhecido. Mais uma vez o custo para manter o espaço de apresentações e realizações de oficinas populares aumentou. Para tentar salvar a Terreira da Tribo, o grupo criou um financiamento coletivo no site Benfeitoria com a proposta de que as pessoas realizem assinaturas mensais, com valores que variam entre R$ 20,00 e 100,00.

Paulo explica que a dificuldade financeira é algo que o grupo enfrenta há diversos anos, mas que ela se intensificou conforme os projetos de incentivo para as produções artísticas foram diminuindo. “Até então havia algumas formas de fomento, poucas, mas havia. O Ministério da Cultura quando existia tinha um prêmio para montagem de espetáculos, e algumas vezes ganhamos ele. A Caixa Econômica Federal também abria edital para festivais de teatro, e nós temos um Festival de Teatro Popular e conseguimos. Algumas vezes ganhamos edital da Petrobras. Só que agora não existe mais nada, e a perspectiva é que vai piorar”. O grupo já chegou a levar seus espetáculos para diversas cidades do Brasil, viajando com o incentivo financeiro de editais.

Espetáculo ‘Os Sinos da Candelária’, do grupo Oi Nois Aqui Traveiz, em 2016. Foto: Eugênio Barboza/Divulgação PMPA

A meta inicial do financiamento coletivo do grupo é de 12 mil reais neste primeiro mês.. No momento, somente 12% do valor foi arrecadado. Segundo Paulo, a demanda financeira do grupo por mês é de 22 mil reais, somente para o aluguel e a manutenção da Terreira e de outro espaço que o grupo aluga para guardar o seu acervo, como roupas, máscaras e objetos das peças produzidas ao longo dos últimos 40 anos. Nesse valor não está incluso o valor de trabalho dos 23 atuadores que participam do grupo. Ainda existem gastos com energia elétrica, impostos, contabilidade e segurança.

Para Paulo, o sucateamento do investimento na cultura afeta não somente o Ói Nóis, mas também a arte como um todo: “O que vem pela frente é para o país inteiro, mas para a cultura é trágico”. Segundo o artista, o que está acontecendo é uma tentativa de estrangulamento econômico da cultural, a fim de que as produções artísticas diminuam cada vez mais.

Veja mais fotos: 

Foto: Guilherme Santos/Sul21
Foto: Guilherme Santos/Sul21
Ói Nóis Aqui Traveiz realiza a performance “Onde? Ação nº 2” na Esquina Democrática, em 2018. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Ói Nóis Aqui Traveiz realiza a performance “Onde? Ação nº 2” na Esquina Democrática, em 2018. Foto: Joana Berwanger/Sul21
Ói Nóis Aqui Traveiz realiza a performance “Onde? Ação nº 2” na Esquina Democrática, em 2018. Foto: Joana Berwanger/Sul21

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