Cultura
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24 de fevereiro de 2019
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12:45

23 anos sem Caio F: “Ele nunca escreveu para vender. Ele escrevia o que o tocava de alguma forma”

Por
Annie Castro
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Parte da exposição ‘Caio Fernando Abreu – Doces Memórias’, que aconteceu em Porto Alegre, em 2014 | Foto: Annie Castro
Parte da exposição ‘Caio Fernando Abreu – Doces Memórias’, que aconteceu em Porto Alegre, em 2014 | Foto: Annie Castro

Durante as férias escolares, o irmão mais velho de Claudia de Abreu Cabral costumava contar para ela histórias com fantoches feitos de papel machê. Os bonecos eram criados por ele, assim como as narrativas dos teatrinhos. Na época, Claudia não imaginava que seu irmão se tornaria um escritor famoso, visto como um dos mais conhecidos e importantes nomes da literatura brasileira e reconhecido internacionalmente. “Eu nunca tive essa dimensão de Caio famoso. Ele era apenas meu irmão, como continua sendo até hoje”, conta Claudia em entrevista por telefone ao Sul21, dias antes da data que marca os 23 anos de falecimento de seu irmão, o escritor Caio Fernando Abreu.

As histórias dos teatros para as irmãs eram somente o início da vida de escritor de Caio. Desde que começou a criar narrativas, o gaúcho nascido em Santiago do Boqueirão, em 1948, desenvolveu uma literatura que perpassava por diferentes tipos de textos, como crônicas, novelas, contos, romances e peças teatrais. Com narrativas que dialogam sobre os temas romance, sexo, censura, drogas, solidão, amizade, sentimentos, AIDS, costumes sociais, população LGBT, preconceitos e autoritarismo, Caio criou obras que se mantém atuais ao longo dos anos.

Mas foi longe da família e do interior do Rio Grande do Sul que Caio trilhou grande parte da sua trajetória como escritor. Em 1963, mudou-se para Porto Alegre para cursar o colegial. Foi por volta dessa época que conheceu Luis Artur Nunes, que viria a se tornar um grande amigo. “Nossa amizade data dos nossos inícios como artistas. Ele como escritor, e eu como diretor de teatro. Eu já estava ingressando na faculdade, no curso de Letras e Caio estava há pouco tempo em Porto Alegre. Foi uma amizade instantânea, de muita intimidade intelectual, muita troca, muita cumplicidade”, lembra Luis, que é diretor e escritor de obras teatrais – atualmente, ele dirige a peça Caio do Céu, sobre o amigo e sua obra, que estreou em 2016 no Theatro São Pedro.

A dramaturgia que acompanha Luis até hoje foi um importante elo na sua amizade com Caio. Além de terem escrito peças teatrais juntos, Caio atuou em espetáculos dirigidos por Luis, e o diretor também teatralizou alguns textos do amigo. “O Caio dramaturgo e autor de teatro é uma parte de mim”, conta. Foi a relação que Luis tem com o texto teatral de Caio que o levou a organizar, junto com o ator Marcos Breda, o livro ‘Teatro Completo – Caio Fernando Abreu’, publicado em 1997. Segundo o diretor, até então não existia uma publicação que reunisse todo o conteúdo de dramaturgia de Caio. Dessa forma, para criar a obra foi preciso que ele e Breda buscassem os manuscritos que foram deixados pelo escritor.

Caio Fernando Abreu falava sobre assuntos que permeiam a vida de muitas pessoas e da sociedade como um todo. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Além do teatro, Luis destaca, em entrevista ao Sul21, um episódio vivido com Caio durante o período da ditadura militar no Brasil. Segundo Luis, enquanto ensaiavam no antigo Teatro de Equipe, que ficava na Rua da Praia, um informante do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) desrespeitou uma amiga deles, que estava com Caio no teatro para parabenizar Luis por seu aniversário. Caio foi defender a amiga e acabou brigando com informante. Dessa forma, todos foram parar na delegacia. “Como o Caio morava sozinho em Porto Alegre, durante um tempo ele ficou na minha casa. Eu ainda morava com meu pai, que era militar. Morávamos em um prédio de militares, então o Caio ficou meio que homiziado, protegido em um santuário para evitar que ele fosse perseguido ou atacado”, explica Luis. O episódio acabou por fortalecer ainda mais a amizade dos dois, criando uma relação de irmãos.

Mas a estadia de Caio em Porto Alegre não durou por muito tempo. Por volta de 1968, quando Claudia tinha quase oito anos, ela, os pais, a irmã e outro irmão mudaram-se para a Capital. Ela conta que Caio chegou a morar um tempo com eles na casa da família, no bairro Menino Deus. Porém, logo mudou-se para São Paulo para trabalhar na primeira redação da revista Veja. A carreira em veículos continuou em outras cidades, como Rio de Janeiro, onde trabalhou nas revistas Manchete e Pais e Filhos. De volta a Porto Alegre, em 1972, atuou como redator do jornal Zero Hora e colaborador do Suplemento Literário De Minas Gerais.

Entre as indas e vindas para a Capital gaúcha ao longo de sua vida, Caio morou novamente em São Paulo e foi editor na revista A-Z e redator no Caderno 2 do Estado de São Paulo. Também viajou para a Europa, onde viveu por um ano se sustentando com trabalhos como modelo e lavador de pratos e morando em casas compartilhadas. Na época, Caio já havia publicado os livros ‘Limite Branco’ e ‘Inventário do irremediável’. Segundo Claudia, o irmão não escrevia de maneira comercial e, por isso, grande parte de do reconhecimento de sua obra aconteceu de maneira póstuma. “O Caio não ganhou nada durante a vida dele. Ele viveu para escrever e poderia ter ganhado muito dinheiro se fosse mais comercial, mas ele nunca escreveu para vender. Ele escrevia o que o tocava de alguma forma”, afirma.

Caio publicou livros de romances, crônicas e contos. Foto: Guilherme Santos/Sul21

Mesmo de longe, a família acompanhava a escrita de Caio. “Sempre tivemos os livros dele. Tudo que saia em jornal a gente lia, guardava em casa”, lembra Claudia. E nos anos que se seguiram a ida de Caio ao exterior, mais publicações do autor foram lançadas, como as antologia de contos ‘Ovo Apunhalado’ (1975) e ‘Morangos Mofados’ (1982), que se tornou uma das obras mais conhecidas do escritor e que aparece atualmente na lista de leituras de vestibulares como o da Universidade do Rio Grande do Sul (UFRGS); a novela ‘Triângulo das Águas’ (1983), ganhador do Prêmio Jabuti de 1984, a novela infantil As Frangas (1988), o romance ‘Onde Andará Dulce Veiga?’ (1990), o livro Ovelhas Negras (1995), entre outras.

Em 1994, quando já era um escritor reconhecido nacional e internacionalmente, Caio descobriu ser portador do vírus HIV, tema que já era muito presente em seus textos. Devido à doença, Caio retornou para Porto Alegre para morar com a família. No mesmo ano, publicou no jornal O Estado de S. Paulo uma série de três crônicas onde falava sobre ter descoberto possuir AIDS e seus sentimentos a respeito disso. Em 25 de fevereiro de 1996, o escritor faleceu, aos 48 anos.

Apesar de ter falecido há 23 anos, Caio falava sobre assuntos que permeiam a vida humana e da sociedade como um todo, retratando as vivências de uma geração da contracultura, que experimentou o preconceito, a repressão e a liberdade sexual. Por isso, seus textos são presentes até hoje em livrarias, saraus, espetáculos e, principalmente, nas redes sociais. No ano passado, quando o escritor completaria 70 anos, foi lançado o livro ‘Caio Fernando Abreu – Contos Completos’, uma reunião de contos publicados entre as décadas de 1970 e 1990, além de textos inéditos do autor. No Facebook, por exemplo, uma das páginas destinadas a frases do escritor possui mais de 700 mil curtidas.

De acordo com Claudia, os jovens são os maiores leitores dos textos de Caio: “Depois que ele morreu eu fui me dar conta que o público dele é muito novo. São adolescentes, adultos jovens. É porque é uma obra atemporal. Se a gente pegar um crônica ou um conto dele, de mais de 20 anos atrás, uma época que essas pessoas não tinham nem nascido, ainda é muito atual. Os temas dele eram muito pertencentes ao ser humano desde sempre”.

“Virgínia Woolf” e “Robocop”, os instrumentos de trabalho utilizados por Caio, estavam na exposição ‘Doces Memórias’. Foto: Bernardo Jardim Ribeiro/Sul21

Luis conta que sabia da dimensão da obra de Caio desde que leu os primeiros textos que o escritor mostrou para ele. “Desde o início eu lia os textos do Caio, às vezes até antes de ser publicado, e me dava conta da alta qualidade da literatura que ele fazia. Evidentemente, eu não sabia se ela ia ser reconhecida de uma forma mais ampla, valorizada. Isso era uma coisa que só o tempo diria. Mas a qualidade dos textos dele eu reconheci desde o início”, lembra.

Em um de seus textos, Caio afirmou que queria tanto que alguém o amasse por algo que ele tivesse escrito. Talvez na época, o autor não imaginasse que sua obra se tornaria tão famosa e premiada, e que ele teria diversos fãs. Para Claudia, ver seu irmão reconhecido mundialmente é algo gratificante. “É saber que não foi em vão. Ele é amado pelo que ele escreveu. Não foi por alguma coisa, foi por tudo que ele escreveu”, afirma.


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