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15 de janeiro de 2019
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10:05

Cacique kaingang lamenta mudanças na Funai: ‘Nossa luta já estava difícil, agora ficou ainda mais’

Por
Sul 21
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Cacique Antônio dos Santos lamentou mudanças na Funai | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Débora Fogliatto

Há quase cinco anos, Antônio dos Santos tornou-se cacique da aldeia kaingang Por Fi Gá em São Leopoldo, comunidade de 57 famílias que foram reassentadas para a área há pouco mais de uma década devido a obras da BR-386, que passavam pelo seu território anterior. Localizada no bairro Feitoria, a comunidade de oito hectares é uma das terras no Rio Grande do Sul consideradas reserva indígena pelo governo federal, a partir de demarcação realizada pela Fundação Nacional do Índio (Funai).

Em entrevista realizada na sede da Coordenação Técnica Local da Funai em Porto Alegre, o cacique falou dos diversos desrespeitos que os povos originários enfrentam no Brasil e demonstrou preocupação com a nova estrutura de governo. Com a retirada da atribuição de demarcação de terras da Funai pelo governo de Jair Bolsonaro (PSL), os indígenas temem ter ainda mais dificuldades em garantir seus direitos. “Tanto o município quanto estado e a União são totalmente contra as reivindicações indígenas, a busca dos índios, a vivência da liberdade indígena. E isso nos incomoda”, afirmou Antônio.

O próprio local onde a entrevista foi feita mostra sinais de esvaziamento e falta de estrutura, com quatro funcionários para suprir toda a demanda, que versa principalmente sobre questões de direitos sociais e cidadania dos indígenas. Após as mudanças realizadas pelo novo presidente, os servidores ainda aguardam diretrizes específicas por parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, do qual a Funai agora faz parte.

Para Antônio, os direitos indígenas não são uma questão que envolve política, tratando-se de um direito originário previsto na Constituição que deve ser respeitado pelos governantes. “O governo deve muito para nós. Temos que sempre estar vivos, fortes e lutando para ter a nossa liberdade e garantia da nossa saúde e educação, e os governos têm que nos respeitar”, avalia.

Confira a entrevista completa:

Sul21 – O senhor poderia fazer um balanço da situação dos kaingangs atualmente no Estado?

Cacique Antônio – Eu posso dizer que sempre foi prejudicada a situação indígena, a causa indígena, a nossa vivência de liberdade. As reivindicações de terras, demarcações, pelo nosso ponto de vista, agora ficou ainda mais complicado devido aos governos que hoje estão atuando. Nossa luta já estava difícil, mas agora ficou ainda mais, em termos de colocar em prática como tem que ser tratada a comunidade indígena. Porque o nosso direito não envolve políticos, o nosso direito é originário, é de nacionalidade, vem de tradições, de gerações, desde os nossos antigos, nossos pajés, caciques que já foram mortos, inclusive na luta pelas suas terras, pela liberdade de viver, de ter um sustento.

Em Porto Alegre, sede do órgão mostra sinais de falta de investimentos | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Essa situação de desrespeito político acontece em todas as instâncias?

Cacique Antônio – O governo do Estado e o brasileiro não querem ver os indígenas circulando no meio urbano, trabalhando, vendendo artesanato na cidade, acampados numa rodovia para reivindicar suas terras. Tanto o município quanto estado e a União são totalmente contra as reivindicações indígenas, a busca dos índios, a vivência da liberdade indígena. E isso nos incomoda, muitas vezes nós, lideranças indígenas do interior do Sul aqui, nos preocupamos muito. Já morreram vários caciques buscando suas reivindicações, buscando melhorias para suas comunidades, têm morrido lideranças indígenas importantes, guerreiros, talvez eliminados pelos grandes fazendeiros ou pelos pistoleiros.

Nós vemos que para organização da ONU que contempla os indígenas, eles acham que os índios são bem mais atendidos pelo governo brasileiro, mas na prática não é. Os indígenas não são tratados como pessoas que precisam de direitos específicos, e isso vai desde a questão da comercialização das nossas vendas, que é de onde tiramos nosso sustento, de manter nossas famílias. E agora vai piorar, durante quatro anos vamos ficar oprimidos, vamos ter que engolir tudo o que vier. Mas vamos ficar sempre na expectativa de que uma hora pode mudar. Nossas autoridades têm que nos reconhecer e respeitar, porque nós não somos adotados de algum país para vir para cá, nós somos daqui, somos originários daqui. Então, os políticos têm que dar esse respeito. Nós temos que ter a nossa liberdade, isso queremos que seja garantido.

Tem que mostrar a realidade, da mãe indígena amamentando seu filho sem ter terra, mata, água potável, uma fruta boa para ela se alimentar com seus filhos. Isso é um crime para nós. Um pai indígena hoje não tem liberdade de ir pescar um peixe para alimentar seus filhos, isso nos incomoda. O governo deveria fortalecer as instituições que nos apoiam, como o Conselho Estadual dos Povos Indígenas, para que também possam fazer a parceria e acompanhar as demandas da causa indígena. Assim como também a Funai, que é um órgão que vem do governo, mas não tem que ser terminado, e sim fortalecido. Eles são a única instituição que acompanha e assessora em todas as áreas das nossas reivindicações de apoio ao índio.

Sul21 – O senhor citou a questão do comércio. Os kaingangs se sustentam do comércio de artefatos produzidos nas comunidades?

Cacique Antônio – Olha, o nosso sustento que a gente tira é só mesmo da venda de artesanato. E muitas vezes o espaço que buscamos nas secretarias de Indústria e Comércio dos municípios eles também negam para nós. Por exemplo, a gente prefere um espaço público, onde tem bastante circulação de pessoas. Tem municípios que colaboram e outros que negam, que temos que fazer audiência, reuniões, debates, para a gente ter espaço para comercializar os nossos artesanatos. Era muito pior ainda, hoje já temos alguns pontos nos municípios para que nossos indígenas tenham oportunidade de comercializar os nossos artesanatos, de onde sai o lápis, o calçado, a mochila para as crianças que estudam. O indígena também está contribuindo com o Estado, ele também vive da compra, ele vende, mas compra no mercado também. Isso que os governantes não percebem.

Sul21 – Vocês se preocupam com essas mudanças na Funai anunciadas pelo novo presidente?

Cacique Antônio – Mesmo sendo uma instituição que depende do governo federal, a Funai é necessária para apoiar os indígenas, mas para isso tem que ser fortalecida em Brasília, as filiais de cada estado tem que ser vistas. Essa instituição não pode acabar, que é o que o governo pensa, de tirar a questão indígena da Funai. Querem terminar com o Conselho Estadual, que defende a causa indígena, e com a Funai. Querem terminar com a causa indígena, nós somos agredidos, é bala de borracha, spray de pimenta. Para que isso? Se não fosse as instituições não-governamentais que nos ajudam, a Funai… eu sou um apoiador da Funai, quero que continue para nós trabalharmos juntos, para podermos ter acesso, representar a nossa causa. Ela tem que ser vista. Temos que trabalhar em cima disso aí.

O que estou falando aqui é a situação da realidade, que não é inventada, que não estamos acatando de algum branco, é de um próprio cacique, sobre a questão de saúde e de terras, de ter uma boa água, ter fruta, verdura, uma terra para poder se assentar. Mas os governos que tomaram nosso estado e nosso Brasil hoje são totalmente adversários dos índios. Mas a luta é essa, nunca vamos desistir, somos indígenas e vamos morrer indígenas e o que nós queremos é a nossa liberdade e a nossa garantia de direitos que está contemplada na Constituição.

Antônio com uma lança confeccionada por indígenas kaingang | Foto: Guilherme Santos/Sul21

Sul21 – Vocês encontram dificuldades no atendimento de saúde também?

Cacique Antônio – É a mesma situação, hoje o indígena não tem suas ervas medicinais, suas raízes. Temos que buscar longe, procurar, e não era assim. As nossas grandes matas, reservas, foram destruídas, poluídas. Nossos pajés não têm mais como tratar adequadamente as moças, as mães, crianças. Temos grande preocupação com as ervas medicinais. Hoje estamos criando projetos com as instituições nos quais fazemos o reflorestamento e plantamos ervas medicinais dentro das aldeias. As crianças que estão nascendo nas cidades e as novas gerações, elas têm que conhecer quais são as ervas boas para determinadas doenças, quais chás são bons, tudo isso nos preocupamos em mostrar e garantir. Nossas ervas medicinais têm que ser respeitadas.

A Sesai [Secretaria Especial de Saúde Indígena],  que trabalha com a saúde indígena, também está sendo ameaçada. Nossos pajés hoje não são vistos, não são valorizados. Para nós, isso é uma ameaça de terminar com os índios, parece que nós estamos incomodando as cidades, mas não. Um índio nunca incomodou uma cidade, nunca incomodou um não-indígena. Quanto que os governos devem para nós de indenização de todos os desmatamentos, prejuízos para os peixes, os rios, toda a criminalidade do ambiente em que os índios viviam historicamente? O governo deve muito para nós. Temos que sempre estar vivos, fortes e lutando para ter a nossa liberdade e garantia da nossa saúde e educação, e os governos têm que nos respeitar. Não importa o político que for, nosso direito tem que ser respeitado. A gente preserva muito a nossa cultura, idioma, danças, indígenas, batismo dos pajés. As nossas escolas têm professores bilíngues também.

Sul21 – Vocês têm dificuldades de acessar os benefícios do governo, cestas básicas, auxílios financeiros?

Cacique Antônio – O que é necessário eles não fornecem. O governo da União manda para a Funai cesta básica a cada três meses, mas não é assim que tem que funcionar. Eu acho que tem que ser mensal a cesta básica. Porque o indígena não pensa em ser agricultor, ficar rico, morar em apartamento. O indígena tendo uma alimentação para comer com a sua família é isso que importa, a gente não quer passar fome. Eu critico muito o governo nessa questão. Mas estamos aí lutando, porque hoje a gente só grita, só chora, derrama lágrima, mas quem tem a chave do cofre é eles lá em cima. Isso que me magoa muito.

Nós temos que torcer para que a cada quatro anos, quando muda o governo, melhorar, e olhar para todos. Os negros, quilombolas, guarani, kaingang, outras etnias no Brasil. É assim que se trabalha um político bom. Agora tem político que olha só para um lado, mas os pequeninhos parece que não afeta eles. Até Deus não gosta disso, ele condena essas pessoas. Porque Deus fez o mundo para nós vivermos em liberdade, ter uma boa água, boa alimentação, boa saúde. Ele criou a terra, os rios, os grandes mares. O governo que faz isso está indo para um caminho que algum dia Deus vai cobrar deles. Eles não estão sabendo que tem uma coisa preparada para eles pela maldade que eles estão fazendo com o ser humano. Porque não importa se é rico, pobre, branco, negro, indígena, o ser humano tem a alma dele. E é isso que eles têm que entender, que somos seres humanos livres e queremos ter a nossa liberdade.


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